O sistema de Justiça pelas mulheres*

4 de maio de 2023

Presidente do Conselho Editorial/Ministro do Superior Tribunal de Justiça/Corregedor-Geral da Justiça Eleitoral

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A igualdade de gênero é uma pauta não apenas das mulheres, mas do Brasil e de todo o mundo, uma pauta da sociedade contemporânea. Exemplo disso são os diversos debates, jurídicos e sociais, em torno da Lei Maria da Penha.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, discutiu-se caso muito interessante em 2014, no julgamento do Recurso Especial 1.419.421/GO, sobre a aplicação desse importante diploma legal no campo cível, não limitado ao Direito Penal. Na ocasião, a Quarta Turma trouxe histórico de alguns dados a respeito da violência de gênero, que, em quase 70% dos casos, ocorre no ambiente privado, de difícil observação. Trata-se de pesquisa realizada em termos de taxa de espancamento de mulheres, que havia crescido muito nos anos anteriores.

Naquele julgamento, foi possível constatar que a questão não se limita à violência contra a mulher, transbordando para a própria sociedade, além de implicar perdas financeiras, porque a mulher deixa de trabalhar por conta da agressão, com outras consequências indiretas também muito significativas. No caso, foram aplicadas as medidas protetivas da Lei Maria da Penha mesmo sem a existência de demanda criminal, uma das principais consequências daquele julgamento. Com efeito, podem sim ser utilizadas todas as medidas cautelares de que a lei dispõe, mesmo sem a prática da violência, pois as medidas protetivas têm sentido muito mais amplo.

Em síntese, a Quarta Turma proclamou que as medidas protetivas previstas na lei podem ser pleiteadas de forma autônoma para proteger a mulher da violência doméstica, independentemente da existência presente ou potencial de processo criminal ou de ação penal contra o suposto agressor.

Relativamente ao mercado de trabalho, vale destacar que, no âmbito do Poder Judiciário, felizmente houve forte ingresso das mulheres na carreira da magistratura após a Constituição de 1988, fenômeno que talvez não seja tão natural para outras profissões ou para outras gerações. 

Nesse contexto, é muito importante resgatar a história das mulheres pioneiras no Direito e na magistratura nacional, como Esperança Garcia, a primeira mulher a praticar ato de advocacia no Brasil; Myrthes de Campos, a primeira bacharel de Direito a exercer a profissão no País; Auri Moura Costa, a primeira juíza; Mary de Aguiar Silva, a primeira magistrada negra brasileira; e Maria Rita Soares de Andrade, a primeira juíza federal.

Na pesquisa “Diagnóstico da Participação Feminina no Poder Judiciário”, recentemente lançada pela Associação dos Magistrados Brasileiros, foram feitas várias abordagens sobre esse tema.

Por sinal, é muito salutar a produção das pesquisas, principalmente no campo do Poder Judiciário, porque a cultura nacional é a do empirismo. Para implementar mudanças, para ministrar qualquer remédio, é preciso saber qual é o estado do paciente, qual é a circunstância em que deve ser adotada qualquer medida, para aferir, minimamente, se esta será eficaz.

Foi justamente para tentar mudar as coisas para melhor que se buscou traçar, pela primeira vez, o perfil das magistradas brasileiras nessa pesquisa, que tem como subtítulo “Perspectivas rumo à equidade de gênero nos tribunais”. Trata-se de estudo realmente rico que a Associação promoveu, coordenado por várias valorosas colegas. 

Foram muitas as respondentes, o que confere peso e elevado grau de credibilidade. Ao serem questionadas sobre “qual foi a fase de ingresso”, a fim de identificar quando ingressaram na magistratura, a maioria respondeu entre 2000 a 2009, que é a geração mais ativa em termos de participação feminina.

Por outro lado, a pesquisa detectou dado que os sociólogos Luiz Werneck Vianna e Maria Alice Rezende já haviam constatado em 2019, na segunda edição da pesquisa “Quem somos, a magistratura que queremos”. Qual seja, lamentavelmente está decrescendo o ingresso de juízas, nos concursos. Entre 1990 e 1999, havia 26% de mulheres na magistratura, percentual que subiu para 36% entre 2002 e 2009, o maior atingido na história, mas que voltou a cair na década seguinte para 28%, entre 2010 a 2019, e de volta a 26% nos anos subsequentes.

Esse fato tem de ser objeto de preocupação e estudos, porque está diretamente relacionado com outra pergunta feita nessa pesquisa, sendo os cruzamentos de dados essenciais para a correta leitura das informações. Indagou-se de quais carreiras jurídicas são oriundas as mulheres que ingressaram na magistratura. As respostas mostram que a maioria delas, quase 60%, vêm da advocacia privada. Portanto, não são pessoas que trocaram de carreira para ingressar na magistratura, ao menos não das carreiras públicas. Uma parte é formada por servidoras do Judiciário, mas a grande maioria vem da iniciativa privada. É algo a ser examinado, cujos impactos ainda não são conhecidos. Ao que parece, há preferência das mulheres por concursos em outras carreiras jurídicas, com menor grau de exigência do que a magistratura.

Outro ponto da pesquisa diz respeito a uma das perguntas mais incisivas: “Depois de ingressar na magistratura, você já foi vítima de assédio moral no trabalho?”. O percentual que disse “não” foi de 69%, mas há quantia sugestiva de quase 20% que marcou “sim”, o que precisa ser examinado com lupa, assim como a questão relacionada às consequências: “Que tipo de providência você escolheu adotar à época dos fatos?”. A resposta “silenciei para não me expor” foi dada por 70% das respondentes da pesquisa. Por sua vez, a grande maioria afirmou que, caso isso acontecesse, buscaria a Corregedoria para denunciar o fato.

Algo semelhante se notou na pergunta: “Caso você venha a sofrer algum tipo de constrangimento ou discriminação, que tipo de providência escolheria adotar?”. Quase 50% disse ter noticiado o fato à Corregedoria local solicitando providências, o que denota a relevância do papel das Corregedorias.

Chamou também atenção outra resposta aos questionamentos, no sentido de que, mesmo se tratando de matéria objeto de regulação pelo Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução nº 351/2020 – de aplicação então opcional por parte dos tribunais, mas atualmente convertida no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, tornando-se obrigatória – 41% das juízas não tinham conhecimento da Política de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação traçada pelo Conselho.

É, portanto, muito sugestiva a necessidade de mudar a cultura e fazer com que essas medidas e possíveis soluções sejam, em primeiro lugar, conhecidas pelas magistradas.

Por fim, sobre as setenta páginas da pesquisa, que renderia um livro a partir do cruzamento de dados do CNJ com os de outras entidades que estão pesquisando a temática, vale mencionar a última questão: “Qual é a sua percepção a respeito da participação institucional feminina na magistratura brasileira? A grande maioria, quase 80%, respondeu que “houve avanços, mas que ainda há muito a ser feito”.

Sem dúvida, há muito a ser feito, mormente considerando o princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei. Assim, a sociedade deve estar empenhada na pauta relacionada à equidade de gênero e pronta para agir, buscando promover constantes mudanças positivas que visem, acima de tudo, à pacificação e à justiça em todas as relações interpessoais.

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*Texto extraído do Seminário “O Sistema de Justiça pelas Mulheres”, promovido em 23 de março de 2023 pelo Conselho Nacional de Justiça, pela Escola Paulista de Magistratura e pela Revista Justiça & Cidadania, que contou com a participação de magistradas, procuradoras, defensoras públicas, advogadas e acadêmicas. Leia a cobertura completa do evento.

NOTAS______________________________

1 DIREITO PROCESSUAL CIVIL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. MEDIDAS PROTETIVAS DA LEI Nº 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA). INCIDÊNCIA NO ÂMBITO CÍVEL. NATUREZA JURÍDICA. DESNECESSIDADE DE INQUÉRITO POLICIAL, PROCESSO PENAL OU CIVIL EM CURSO.

1. As medidas protetivas previstas na Lei nº 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor.

2. Nessa hipótese, as medidas de urgência pleiteadas terão natureza de cautelar cível satisfativa, não se exigindo instrumentalidade a outro processo cível ou criminal, haja vista que não se busca necessariamente garantir a eficácia prática da tutela principal. “O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas” (DIAS, Maria Berenice. “A Lei Maria da Penha na Justiça”. 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012).

3. Recurso especial não provido.

(REsp nº 1.419.421/GO, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 11/2/2014, DJe de 7/4/2014.)

2 Essa temática, além de muito interessante, retornou em diálogo com a Juíza Federal Caroline Somesom Tauk – também Juíza Auxiliar da Corregedoria-Nacional de Justiça – sobre texto para o livro que está no prelo: “Juristas que formaram o Brasil”, sendo importante valorizar as pioneiras no campo da magistratura. Nosso texto tem o significativo título “Auri, Mary e Maria Rita: a história de três juízas pioneiras na magistratura brasileira”.

3 A Diretora de Redação da Revista Justiça & Cidadania, Dra. Erika Branco, e sua equipe pinçaram a ideia de batizar os painéis dos seminários com os nomes dessas ilustres pioneiras.

4 Pesquisa mencionada na palestra da Conselheira Salise Sanchotene, que também falou sobre o papel do CNJ e o recém-aprovado “Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero”. O CNJ cumpre papel muito interessante na elaboração de políticas públicas relacionadas à matéria.