O Suicídio e o Seguro de vida – Aspectos contratuais e sociais – Parte 2

29 de novembro de 2011

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Nessa perspectiva, o que é mutualidade? É a cooperação entre os segurados: num conjunto de segurados, em que há uns com maior risco, outros com menor risco, dilui-se o risco entre todos. Forma-se, grosso modo, aquilo que se chama de captação de recursos ou poupança suficiente para as indenizações.
 
Também não se calcula isso aleatoriamente. A mutualidade tem impacto principalmente no preço do prêmio. É necessário, portanto, realizar o cálculo atuarial da apólice, que leva em conta, sobretudo, a mutualidade, o risco e a idade do segurado. Daí se falar em “escadinha”.
 
É lógico que alguém com 35 anos de idade oferece menos riscos que outro de 70 anos. Não pagam ambos o mesmo preço. O fato é que aquele que viveu 70 anos está mais perto do evento morte (somos finitos, essa é uma realidade); em razão disso, o risco aumenta.
 
Esses parâmetros, sem dúvida alguma, são todos imprescindíveis para a estipulação do preço do prêmio.
 
Além disso, é oportuno lembrar que, quanto à relação contratual de seguro, a lei não fala apenas em boa-fé. A lei se refere à mais estrita boa-fé; em outras palavras, à boa-fé objetiva. Entre os fatores da boa-fé objetiva, estão, por exemplo, o dever de o segurado informar a doença preexistente, bem como o risco da atividade exercida.
 
Tudo isso é fundamental para o cálculo do prêmio. Após essas considerações, é possível falar sobre os aspectos contratuais e sociais do seguro de vida na hipótese de suicídio, questão ainda hoje polêmica no Superior Tribunal de Justiça. Não há consenso quanto ao pagamento do capital segurado quando o fato gerador é o suicídio.
 
Surge, então, a questão da interpretação do art. 798 do Código Civil. Desde a sua origem, o contrato de seguro sempre repeliu o pagamento do capital na hipótese de suicídio. O seguro já traz, em sua concepção, a mentalidade de exclusão da indenização do suicídio.
 
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao tempo em que aquela Corte ainda detinha a competência para julgar matéria infraconstitucional, firmou-se no sentido de que, quando não voluntário nem premeditado o suicídio, a seguradora deveria indenizar, e essa discussão abarrotou os fóruns brasileiros por muitos anos.
 
O novo Código Civil expressamente tratou da matéria no art. 798, ali colocado até em razão da legítima pressão feita pelos representantes do setor de seguros sobre o Congresso, a fim de que resguardados fossem seus interesses.
 
A redação do dispositivo em questão foi clara e objetiva. Eis o que dispõe o art. 798 do Código Civil:
 

“O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos dois primeiros anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente.”

 
Não há dúvidas de que o Código adotou um critério, data venia dos que pensam em contrário, objetivo e claro. Para o pagamento de seguro em caso de suicídio, examina-se o tempo de adesão à apólice ou da formação do contrato. Se já decorreram mais de dois anos, nada se discute. Paga-se o capital segurado. Se o contrato ainda não atingiu os dois anos, não há o que pagar, ou seja, o Código traçou um critério objetivo, temporal.
 
A pretensão do legislador foi pôr fim, de vez, a essa discussão de suicídio premeditado ou voluntário, porque algo extremamente difícil, quando não impossível, é provar que o suicídio foi cometido dessa forma.
 
Na minha concepção, não se pode produzir tal prova, e por uma razão muito simples: é difícil demonstrar que o cidadão se matou com o intuito de deixar o seguro para alguém.
 
Apenas numa hipótese talvez fosse possível fazer essa prova: quando o segurado deixa uma carta. Todavia, quando isso acontece, a família não apresenta tal documento à seguradora. Quem apresentaria? Bom samaritano em matéria de segurado é difícil. Só quando o segurado deixa a carta e se imputa a morte a alguém da família. Nesse caso, o familiar certamente vai comunicar à seguradora que a morte foi premeditada e apresentar a carta deixada pelo suicida só para se ver excluído da ação criminal. Com exceção dessa hipótese, é praticamente impossível ou irreal a prova, e o Direito é uma realidade que regula fatos sociais que se concretizam, surgindo daí o conflito, que ao Judiciário cabe resolver, subsumindo os fatos às normas.
 
Mas não é que o Judiciário adora uma polêmica, quando não, criar! Causou-me perplexidade o julgamento de um caso em que figurava como parte o Banco Icatu. Tratava-se de decisão proveniente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
 
O recurso especial foi afetado à Segunda Seção pela ministra Nancy Andrighi, que proferiu voto no sentido de que, não obstante a redação do referido art. 798, o não pagamento do capital segurado nos dois primeiros anos só poderia ocorrer se a seguradora lograsse demonstrar a premeditação do suicídio.
 
Levando em consideração a composição da Seção daquela época, sabia que o resultado do julgamento seria pela interpretação literal do artigo. O advogado, em nome da parte, contudo, desistiu do recurso. Quando meu voto já estava para ser proferido, foi feito acordo entre as partes. A questão, portanto, não ficou definida.
 
Novo recurso foi julgado; dessa vez, no âmbito da Terceira Turma. O julgamento estava empatado (dois a dois). Vindo um terceiro ministro para definir a questão, seguiu a tese defendida pela ministra Nancy Andrighi.
 
A questão está em aberto na Quarta Turma. Sou relator de um caso. Já proferi meu voto no sentido de que, em matéria de suicídio, o Código adotou critério objetivo. Amparei-me nas lições de Pablo Gagliano, de José Delgado e de Fábio Ulhoa Coelho.
 
O Ministro Benetti apresentou um fundamento sociológico bastante razoável. Votou pelo não pagamento do prêmio nos dois primeiros anos como incentivo à vida. Não se deve criar um produto que permita ao cidadão pôr fim à própria vida com o intuito de deixar algo para a família.
 
Deveras relevante, mas o fundamento de que me vali no debate da Quarta Turma foi de que o Código não mudou por mudar.
 
Trouxe, então, à memória uma frase colhida da obra O leopardo, de Lampedusa. O sobrinho da nobreza italiana pergunta: “Mas, tio, a revolução vai mudar?”. Eis a resposta: “Meu filho, as coisas precisam mudar para continuar como estão”.
 
Data venia, é o que vai acontecer se o Superior Tribunal de Justiça partir para dar interpretações ao art. 798 do Código Civil. 
Será que o legislador teria alterado o texto para fazer subsistir o mesmo critério? Teriam as seguradoras atuado no Congresso para que se criasse um sistema mais rígido quanto ao pagamento do que o reinante na jurisprudência vigente?
 
Com todo o respeito ao Código de Defesa do Consumidor, que é um primor em termos de legislação brasileira, um dos mais avançados do mundo, com todo o respeito a esse sistema que regula o consumo e a matéria de seguro, não me parece razoável, em relação ao art. 798 do Código Civil, adotar conclusão que fira o seu texto e o próprio espírito da lei. A vontade da lei é clara, límpida.
 
Surge a pergunta: por que tal afirmação? Porque não se deve olhar o caso concreto apenas. Quando se paga o capital segurado ao beneficiário, cria-se, para o sistema, um ônus. Ora, se o pagamento é devido nos dois primeiros anos, salvo se demonstrado que o suicídio foi voluntário ou premeditado, isso haverá de ser precificado.
 
Observe-se a importância dessa mercadoria no sistema social. Dependendo da forma como for interpretada a norma do dispositivo legal em questão, o efeito imediato será o aumento da precificação do prêmio de seguro, é evidente. O resultado será todos os segurados pagando pelo risco de suicídio de alguns.
 
Inexiste razão para essa solidariedade. Seria melhor viabilizar o seguro como produto acessível em termos de preço a uma escala maior de consumidores, a fim de que todos possam proteger seus entes em caso de falecimento.
 
Não se pode negligenciar a função social do contrato de seguro. É indispensável a observância do princípio do equilíbrio entre o prêmio e o risco, entre o prêmio e o capital. Não pode ser diferente.
 
Um bom exemplo é o da Allianz do Brasil. Na apólice dessa seguradora, não havia a chamada “escadinha”. O Banco do Brasil, que tinha uma participação naquela instituição financeira, buscou trazer investidores internacionais para se associar à Allianz do Brasil. A intenção era fazer da Allianz uma seguradora pujante, competitiva no mercado, mas nada acontecia.
 
Em reunião com a Prince, uma parceira do Banco do Brasil no sistema de previdência privada, foi levada a proposta de parceria também na área de seguro. A resposta não foi outra senão a de que, com aquela apólice, considerada insolvente, a seguradora quebraria. O fato é que não se pode investir dinheiro bom em cima de dinheiro ruim.
 
Daí a necessidade da revisão da apólice, o que gerou polêmica. Há alguns casos sendo julgados no STJ, contudo, de modo geral, os segurados já migraram para uma nova apólice. De fato, o sistema não vive, como alguns pensam, da sorte. O sistema vive da atividade empresarial sujeita a risco, mas depende de planejamento, depende de uma apólice atuarialmente solvente, sólida, correta.
 
Não sendo assim, o inadimplemento será total, acarretando uma série de prejuízos, tal como o não pagamento aos últimos segurados do capital segurado e desemprego, pois à medida que a seguradora quebra, demissões aos montes ocorrem, e tudo isso porque não se compatibilizou o preço com o risco assumido. Em termos de mercado, nada pode ser mais perverso para os consumidores do que desequilíbrios dessa natureza.
 
Eis, em suma, minha convicção acerca do seguro de vida na perspectiva do suicídio. Com essas considerações, minha pretensão não foi outra senão chamar a atenção para o aspecto contratual desse tipo de seguro, sem olvidar, é claro, o seu tão importante aspecto social, por todos nós amplamente reconhecido.
 
Creio que comungamos, os senhores e eu, no pensamento de que o aumento das exigências do mercado soa como imperativo, de um lado, de aperfeiçoamento do contrato de seguro, sobretudo do seu texto quando estipula o preço e prevê os riscos; de outro, de mudança na jurisprudência pelas razões aqui expostas. Daí a importância de encontros com este – fundamentais, diria eu -, voltado para o debate de matéria de inquestionável relevância social, sobretudo pela proposta de aprimoramento da cultura jurídica e das instituições.
 
Encerro, portanto, estas palavras dizendo que não se pode andar na contramão da história: é preciso disposição para se adequar às exigências dos novos tempos.
 
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