Entrevista com o Desembargador Mauro Martins, Conselheiro Supervisor do Departamento de Monitoramento e Fiscalização Carcerária do CNJ
Segundo dados divulgados pelo Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil atingiu no ano passado a marca de 919 mil pessoas presas, número que o consolida como o País com a terceira maior população carcerária do mundo. Prende-se muito e aparentemente prende-se mal, com unidades superlotadas e insalubres, que em muitos casos atentam contra a dignidade da pessoa humana e afastam o sistema penitenciário do objetivo de ressocialização dos presos para sua reintegração à sociedade.
Para saber mais sobre o que tem sido feito pelo CNJ para enfrentar este quadro, entrevistamos o Conselheiro Mauro Martins, que é Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e atualmente ocupa o cargo de Supervisor do Departamento de Monitoramento e Fiscalização Carcerária (DMF/CNJ).
Revista Justiça & Cidadania – Em 2015, no julgamento da ADF nº 347, o STF considerou a situação prisional no País um “estado de coisas inconstitucional”, com “violação massiva de direitos fundamentais” da população prisional, por omissão do Poder Público. O que avançou desde então?
Conselheiro Mauro Martins – Transformar e incidir sobre uma situação de “massiva violação de direitos” que atinge centenas de milhares de pessoas encarceradas não é uma tarefa simples, que se possa endereçar em poucos anos. Ouso dizer, contudo, que iniciativas em andamento têm contribuído para melhorar a situação do sistema carcerário brasileiro.
Dentre todas, destaco – não apenas em razão do lugar institucional que ocupo, enquanto Conselheiro Supervisor do DMF/CNJ, mas pela amplitude das tarefas a que se propõe – o Programa Fazendo Justiça.
Iniciado com o nome “Justiça Presente”, e atualmente em sua terceira fase ou ciclo de realização, o Programa projeta a parceria inédita entre o CNJ e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Depen/MJ) é um dos principais financiadores do projeto, que conta com dezenas de parceiros institucionais.
Dividido em quatro eixos (proporcionalidade penal, sistema socioeducativo, cidadania, sistemas e identificação), a iniciativa abrange atividades e incidências que vão desde a intervenções na porta de entrada à porta de saída dos sistemas penal e socioeducativo, incluindo a implementação e qualificação de um sistema único de execução penal para todo o País.
Atualmente estão sendo desenvolvidas 29 ações, das quais destaco algumas que dizem respeito ao problema prisional: (a) a implementação e o fortalecimento das audiências de custódia, (b) o incentivo à adoção das alternativas penais, (c) o apoio à instalação de centrais de regulação de vagas, (c) a regulação do monitoramento eletrônico, (d) os planos nacionais de fomento à leitura e ao esporte dentro do sistema, (e) o incentivo à participação social na execução penal (sobretudo através da consolidação dos conselhos da comunidade), (f) a qualificação dos escritórios sociais, (g) a qualificação das inspeções judiciais e o enfrentamento à tortura nos ambientes de privação de liberdade, (h) o cuidado à saúde mental, (i) o plano nacional de geração de trabalho e renda, (j) a implementação do Sistema Eletrônico de Execução Unificada (SEEU) em todos os tribunais do País e (l) a construção de fluxos para emissão de documentação civil às pessoas presas e egressas do sistema.
Essas diferentes atividades, disseminadas de modo sistematizado e estruturado, incluem a publicação de normativas instituindo políticas judiciárias, bem como se ocupam de fomentar a articulação entre os poderes do Estado e a sociedade civil, com vistas ao surgimento de políticas públicas eficientes e sustentáveis, comprometidas com o equacionamento de diferentes fatores que compõem o cenário de inconstitucionalidade do sistema carcerário brasileiro.
A inserção do sistema prisional nos quadrantes do Estado de Direito e o respeito aos direitos fundamentais das pessoas presas, como afirmou o STF no julgamento histórico da ADPF 347, é tarefa que exige atuação conjunta de todas as instituições. Não tenho dúvidas de que a continuidade das ações desenvolvidas pelo Fazendo Justiça levará, paulatinamente, os sistemas prisional e socioeducativo a uma situação menos degradante.
JC – Os dados estatísticos sobre as inspeções do Departamento apontam que em 25% dos estabelecimentos prisionais as condições são “péssimas”. O que é preciso melhorar para que as prisões brasileiras apresentem padrões mínimos de dignidade e possibilidade de ressocialização dos apenados?
MM – O primeiro desafio é a “racionalizar” o quantitativo de pessoas presas. É impossível prover condições dignas de encarceramento a tantas pessoas, em razão da finitude do orçamento público. O Estado brasileiro gasta muito dinheiro para manter o funcionamento do sistema prisional nas condições atuais e há inúmeras outras demandas sociais, que o próprio sistema prisional deveria delas se ocupar, e não o faz por falta de recursos. Não é factível aumentar significativamente os recursos alocados para esse fim. Até porque a abertura de uma vaga no sistema custa caro e transforma-se em gasto permanente (são estruturas de financiamento contínuo) a ser administrado pelos estados ou pela União.
Paralelamente ao enfrentamento da superlotação, é necessário investir em ações educativas e laborais, intra e extra muros. A garantia dos direitos ao estudo e ao trabalho no cárcere, para além de ativar o direito à remição de pena e à constituição de pecúlio, possibilita à pessoa presa imaginar (sonhar e ter esperança com) um futuro diferente para si. A rotina da pessoa presa transforma-se em algo próximo ao suportável quando a expectativa de um futuro melhor se faz presente. O Programa Fazendo Justiça busca investir nesta perspectiva, fomentando o exercício desses direitos, atuando por planos nacionais de geração de trabalho e renda, e de fomento à leitura.
É preciso lembrar, contudo, que os direitos ao estudo e ao trabalho integram um amplo leque de assistências à pessoa presa contidas na Lei de Execução Penal (LEP/ Lei nº 7.210/1984), com base na ideia central de que a pena privativa de liberdade não pode aniquilar a dignidade da pessoa, valor intangível que sustenta a democracia e o Estado de Direito.
Mas não é só. A transformação da realidade das unidades prisionais depende também da participação da sociedade civil na execução penal, a qual tem sido fomentado pelo CNJ a partir da Política Judiciária para o Fortalecimento dos Conselhos da Comunidade, instituída pela Resolução nº 488/2023. Este importante órgão, previsto na LEP, tem atribuições legais que o habilitam à condição de aliado de primeira grandeza para a melhoria das condições de aprisionamento e dos serviços penais.
Por esses fundamentos, creio que a resposta à pergunta passa necessariamente pela diminuição da superlotação, pelo respeito integral aos direitos previstos no ordenamento jurídico, pela efetivação das assistências previstas na Lei de Execução Penal e pelo fortalecimento da participação da sociedade civil na execução da pena.
Devemos ter em mente que o sistema penitenciário em particular, e a questão penal como um todo, dizem respeito a toda a sociedade. As centenas de milhares de pessoas presas, bem como as centenas de milhares de servidores públicos dedicadas ao funcionamento diuturno das unidades prisionais e dos serviços penais têm uma história de vida, têm laços significativos com milhões de pessoas fora dos muros, de maneira que a realidade prisional projeta consequências para além dos muros de uma prisão, subjugando à sociedade como um todo. As organizações criminosas que nasceram e cresceram no interior do sistema prisional são talvez o exemplo mais significativo dessa constatação, porque nasceram e aí estão quando o Estado deixou de cumprir com suas atribuições elementares.
JC – O sistema prisional brasileiro possui mais de 1.700 estabelecimentos distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal. O DMF tem braços suficientes para fiscalizar as condições dos presos em toda essa malha?
MM – O DMF em si, enquanto departamento do CNJ, fisicamente situado em Brasília, certamente não tem braços suficientes para fiscalizar todas as unidades prisionais distribuídas pelo País. Ciente desta limitação, o CNJ publicou a Resolução nº 96/2009, determinando aos Tribunais de Justiça a instalação de grupos de monitoramento e fiscalização do sistema carcerário nos respectivos estados. Em seguida, a Resolução nº 214 estendeu essa obrigação (de estrutura) aos Tribunais Regionais Federais. Dessa forma, idealmente, há uma estrutura do Poder Judiciário em cada estado da federação e na Justiça Federal que se ocupa desta realidade.
As atribuições dos GMFs, contudo, espelham as diretrizes instituídas por lei ao DMF e vão muito além da realização de inspeções nos estabelecimentos penais – atividade de altíssima relevância. Elas estão elencadas no art. 6º da Resolução CNJ nº 214/2015 e englobam desde o controle da entrada e saída nos sistemas prisional e socioeducativo, até o auxílio às atividades dos escritórios sociais, responsáveis pelo atendimento às pessoas egressas dos sistemas.
Não bastasse, compete aos GMFs, também, a realização de atividades de natureza diversa, previstas nas normativas aprovadas pelo plenário do CNJ ao longo dos últimos anos, destinadas à proteção e garantia de direitos das pessoas integrantes de grupos vulneráveis, dentre as quais cito as Resoluções CNJ nº 287/2019 (pessoas indígenas), nº 348/2020 (população LGBTI), nº 405/2021 (pessoas migrantes), nº 369/2021 (gestantes, mães, pais e responsáveis por crianças e pessoas com deficiência) e nº 425/2021 (pessoas em situação de rua).
Os GMFs, enquanto estruturas integrantes dos TJs e TRFs, estão em posição privilegiada, na medida em que devem capitanear a recondução dos sistemas prisional e socioeducativo aos ditames do Estado Democrático de Direito. O DMF, por sua vez, desdobra-se para fornecer apoio logístico e técnico necessário para que os GMFs cumpram com suas atribuições, em articulação fundamental para a construção dessa nova realidade.
JC – Mesmo após quase 15 anos da criação dos Mutirões Carcerários, as inspeções continuam encontrando presos que estão privados da liberdade há mais tempo do que a sentença determinada pela Justiça. Por que isso ainda acontece? O que o DMF tem feito para enfrentar esse problema?
MM – Para além da qualificação das inspeções prisionais e dos mutirões, a grande aposta do DMF/CNJ para enfrentar o problema das pessoas presas para além do tempo determinado na decisão condenatória é a implementação nacional e o aperfeiçoamento do Sistema Eletrônico de Execução Unificado em todos os tribunais do País.
Não por outra razão, foi com este objetivo que o CNJ firmou Termo de Execução Descentralizada (TED 13/2018) com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, no valor de R$ 35 milhões, buscando realizar essa proposta. A tarefa foi encampada e se realiza através do Programa Fazendo Justiça, que desde então vem realizando missões juntos aos Tribunais para implantar o Sistema e auxiliar na capacitação permanente dos servidores para a sua utilização. O sistema já está em funcionamento em mais de 30 tribunais, contando com mais de 1,4 milhão de processos em tramitação eletrônica.
O SEEU dispõe de ferramentas tecnológicas que possibilitam aos juízos de execução o cumprimento estrito dos prazos de progressão de regime, livramento condicional e tempo de condenação. A implementação do Sistema em todos os tribunais do País tem o condão de extinguir, virtualmente, situações como as descritas na pergunta. Não é mais recorrente, nem corriqueiro, em um cenário de curto prazo, processos esquecidos e pessoas abandonadas no sistema prisional.
JC – O processo desencadeado pelo CNJ em 2008 com os Mutirões Carcerários institucionalizou as medidas de reinserção social dos egressos do sistema prisional, papel que até então era desempenhado principalmente por organizações do terceiro setor. Quais são hoje as principais iniciativas com esse objetivo mantidas pelo CNJ e pelo Poder Judiciário como um todo?
MM – A grande aposta do CNJ para o apoio necessário à reintegração das pessoas egressas é a instalação dos escritórios sociais em todo o País, política essa que complementa e reforça a pioneira iniciativa do Programa Começar de Novo, dos idos de 2010. Os Escritórios Sociais estão desenhados na Política de Atenção a Pessoas Egressas do Sistema Prisional no âmbito do Poder Judiciário (Resolução CNJ nº 307/2019) como estruturas multisserviços e que apostam na articulação entre Judiciário e Executivo para uma melhor atenção às pessoas egressas e seus familiares.
Atualmente existem 48 unidades pactuadas em 22 unidades da Federação, tendo por meio deles sido realizados mais de 17 mil atendimentos nos últimos dois anos.
Essa iniciativa, de grande fôlego, soma-se à edificação de fluxos de identificação biométrica e emissão de documentação civil para que as pessoas egressas consigam acessar as políticas públicas quando em liberdade. Em parceria com o TSE e diversas instituições responsáveis pela emissão dos diferentes documentos, o objetivo a ser alcançado por detrás dessa estratégia é o de que todas as pessoas que deixam o cárcere o façam com os documentos necessários para o exercício de seus direitos em liberdade.
Mas para além das iniciativas endereçadas ao período após o fim da execução da pena, a reintegração social das pessoas egressas igualmente deve ser pensada sob uma perspectiva anterior e em sentido negativo: a pena privativa de liberdade deve ser executada de maneira a não destruir, nem impedir, na medida do possível e do desejável, os laços comunitários, familiares, laborais e culturais existentes antes da prisão, possibilitando-se um retorno menos traumático ao convívio em liberdade. Sob essa perspectiva, a maioria das iniciativas encampadas pelo Fazendo Justiça podem ser compreendidas enquanto práticas fomentadoras da reintegração social.
JC – Ao que o senhor atribui as dificuldades para superar a cultura do encarceramento no Brasil?
MM – É uma boa pergunta. O superencarceramento, sob qualquer ponto de vista, é uma aposta cara e onerosa. Até hoje, ineficiente. Não temos uma segurança pública que nos conforta a todos com mais de 800 mil pessoas presas. E amontoar centenas de milhares de pessoas em condições subumanas, gastando bilhões de reais por ano, tem se revelado uma péssima política pública. Em primeiro lugar, porque viola estruturalmente direitos humanos elementares.
Aliás, o sistema carcerário representa uma chaga para a democracia brasileira. É vergonhoso que pessoas sob a tutela do Estado sejam vilipendiadas em sua dignidade. Grande parte das condenações do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos decorrem do descumprimento de regras elementares que descendem da Constituição Federal e da Lei de Execução Penal.
Em segundo lugar, porque custa muito caro para a sociedade brasileira, com tantas outras necessidades mais prementes, seguir apostando em algo que deve funcionar para o estritamente necessário. Não há dúvidas de que seria mais adequado gastar os bilhões de reais do orçamento público com saúde, educação e saneamento básico. E tratar da prisão como exceção e não como regra.
Em terceiro lugar, porque as consequências práticas do funcionamento de um sistema prisional nos moldes atuais são opostas ao que se busca como sociedade justa, fraterna e solidária: ao invés de colaborar para a tutela de bens jurídicos, o que o sistema carcerário dos dias de hoje dissemina é mais violência e o fortalecimento de facções criminosas, na medida em que joga jovens – com nítida preferência a pretos e pobres – nos braços do crime, desenganando-os da convivência social.
O punitivismo, percebe-se logo à primeira vista, não é sustentável racionalmente. Quem haveria de afirmar ser razoável gastar bilhões de reais para manter um sistema punitivo enorme, que viola direito básicos enquanto faz aumentar a criminalidade? Seremos cobrados, e duramente cobrados no futuro, por insistir nestes contextos de descalabros, se não for para dar um basta a essas situações.
Penso, portanto, que as dificuldades para superar a cultura do encarceramento no Brasil decorrem mais do acúmulo de práticas instituídas e reproduzidas de maneira irrefletida, do que de opção consciente das razões e consequências que continuam a pautar a nossa forma de atuar institucionalmente.