O Supremo Tribunal Federal e a prevalência do negociado sobre o legislado

1 de julho de 2022

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O mundo do trabalho tem sofrido profundas e rápidas transformações. A difusão do teletrabalho, sobretudo no pós-pandemia, o surgimento de novas profissões ou sua adaptação ao universo digital, bem como a dinamicidade própria de nosso tempo – e mesmo as sucessivas crises econômicas enfrentadas – têm exigido que também as normas trabalhistas se adaptem a fim de acompanhar essas mudanças.

Os acordos e convenções coletivas são instrumentos de negociação entre sindicatos e empresas que permitem que as próprias partes, por meio da negociação e do diálogo, elaborem as normas que regerão a atividade laboral de determinado setor, categoria ou empresa.

O Supremo Tribunal Federal (STF), em recente e importante decisão, concluiu pela prevalência das normas coletivas sobre o direito legislado, entendimento este que também encontra respaldo na Lei no 13.467/2017, que implementou a reforma trabalhista. O STF reputou constitucional a questão e afetou o julgamento à sistemática de repercussão geral, com o seguinte tema: “validade de norma coletiva de trabalho que limita ou restringe direito trabalhista não assegurado constitucionalmente”.

Para além da discussão do caso concreto, que versava sobre acordo coletivo que havia suprimido o pagamento das horas in itinere (horas gastas no trajeto entre a casa e o local de trabalho), o julgamento traçou verdadeiras balizas para a valorização e o reconhecimento da autonomia coletiva da vontade e da liberdade sindical.

Conforme destacou o relator, Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, a Constituição de 1988 assegurou, em seu art. 7o, inciso XXVI o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho como um direito fundamental do trabalhador. Para ele, referida disposição revela a superação da concepção paternalista que vigorava no regime anterior, no qual o trabalhador não tinha meios para se posicionar de forma igualitária ao empregador, haja vista a sua posição de inferioridade.

Com a criação dos sindicatos, a garantia da liberdade sindical e sua presença obrigatória nas negociações coletivas, não se pode falar em hipossuficiência do trabalhador no que tange às negociações coletivas. Conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal em julgamento anterior, no qual também avaliou o alcance da autonomia coletiva no âmbito trabalhista, nesses casos não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais, não se sustentando o princípio da hipossuficiência do trabalhador. Aplica-se, nessas hipóteses, o princípio da equivalência dos contratantes coletivos, que impõe tratamento semelhante ao empregador e à categoria de empregados.

Nesse sentido, o relator destacou a inviabilidade de interpretação de convenções e acordos coletivos com fundamento em princípios do direito individual do trabalho que mitigam a autonomia coletiva, como é o caso do princípio da hipossuficiência do trabalhador, aqui já mencionado e do princípio da primazia da realidade, por meio do qual prevalecem as condições reais de trabalho em detrimento daquilo que fora pactuado.

A negociação coletiva é um dos instrumentos mais relevantes do Direito do Trabalho. Trata-se de mecanismo por meio do qual ambas as partes podem contribuir na definição das regras que irão reger o dia a dia no ambiente laboral, além de dirimir eventuais conflitos e estimular a evolução das condições laborais. Por meio dela, se privilegia o entendimento entre as partes, em detrimento do conflito judicial, evitando, assim, a sobrecarrega do Judiciário.

O voto condutor, que fora acompanhado pela maioria do Tribunal, também ressaltou que a anulação dos acordos, na parte em que supostamente interessa ao empregador, mantidos os ônus assumidos no que diz respeito ao trabalhador, ao mesmo tempo em que viola o reconhecimento dos acordos e convenções coletivas (art. 7o, XXVI da Constituição), leva a um claro desestímulo à negociação coletiva, que deveria ser valorizada e respeitada.

De fato, os acordos e convenções são fruto de concessões recíprocas e possuem natureza sinalagmática, razão pela qual invalidar apenas concessões de um dos lados que negociam atrai o desequilíbrio do instrumento negocial. Além disso, cria-se um cenário em que o Judiciário passa a se substituir à vontade das partes, substituindo os critérios por ela eleitos pelos seus próprios, em prejuízo à autonomia negocial.

As convenções e acordos coletivos configuram verdadeira lei entre as partes. Os princípios da lealdade, da boa-fé e da transparência devem ser observados na negociação e no cumprimento dos acordos coletivos, traduzindo-se, ainda, na proibição do comportamento contraditório. Vale dizer: a entidade sindical que anuiu de forma regular a uma estipulação coletiva não poderia, no futuro, voltar-se contra ela, requerendo perante o Poder Judiciário a anulação de cláusulas.

Com esses fundamentos, o Supremo Tribunal Federal pacificou a questão e concluiu pela prevalência dos acordos e convenções coletivas, mesmo que restritivos de direitos, desde que não atinjam direitos absolutamente indisponíveis, constitucionalmente assegurados.

A tese de repercussão geral ficou registrada nos seguintes termos: “são constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.

A decisão fortalece a liberdade sindical e as normas provenientes da negociação coletiva em benefício da segurança jurídica e da confiança acerca do legítimo cumprimento do quanto pactuado. Trata-se de importante valorização da autonomia das partes coletivas e no reconhecimento de sua liberdade e legitimidade para negociar e elaborar as normas que melhor se adequem a sua realidade específica.

Notas___________________

1 Trata-se do tema 1046 de repercussão geral, cujo leading case é o ARE 1.121.633, julgado pelo Plenário do STF em 2/6/2022.

2 Trata-se do Recurso Extraordinário 590.415, tema 152 de repercussão geral, de relatoria do Ministro Roberto Barroso.