Edição 70
O Transporte Rodoviário de Passageiros e a cobrança do ICMS
31 de maio de 2006
Adilson Rodrigues Pires Advogado
1. A evolução legislativa do tema
Convém, preliminarmente, destacar a evolução histórico-legislativa da base de cálculo do ICMS incidente sobre a prestação de serviços de transporte rodoviário intermunicipal de passageiros.
O primeiro ato legislativo que confere tratamento especial à atividade em tela é a Lei nº 2.657/96, como se depreende do preceito contido no seu artigo 4º, verbis:
“Art. 4º – A base de cálculo reduzida em 90% (noventa por cento) se incidente o Imposto Sobre as Prestações de Serviços de Transporte Rodoviário de Passageiros, executados mediante concessão, permissão e autorização do Estado do Rio de Janeiro, inclusive os de turismo, (…)”.
Diz-se especial o tratamento, tendo em vista que, à exceção do transporte rodoviário intermunicipal de pessoas, a base de cálculo da prestação do serviço de transporte intermunicipal e interestadual por qualquer outra via (ferroviária ou hidroviária, por exemplo), seja ele de pessoas, bens, mercadorias ou valores (inciso II do artigo 2º da Lei Estadual nº 2.657/1996), é o preço do serviço (inciso IX do artigo 4º do citado ato legislativo).
A esta altura, cabe abrir um parêntese para salientar que a constitucionalidade de parte do disposto no artigo 4º, supra reproduzido, de iniciativa do Parlamento estadual, mereceu o veto do então Chefe do Poder Executivo. Derrubado pela Assembléia Legislativa, a validade do texto foi contestada pelo Senhor Governador do Estado do Rio de Janeiro, à época o Doutor Marcello Alencar, através da ADI nº 1.577-0-RJ, ajuizada junto ao Supremo Tribunal Federal, cujo mérito ainda pende de julgamento.
Não obstante, o Excelso Pretório resolveu conceder Medida Cautelar na citada ADI para suspender, com eficácia ex nunc, os efeitos da expressão “reduzida em 90% (noventa por cento) se incidente o Imposto sobre as Prestações de Serviços de Transporte Rodoviário de Passageiros, executados mediante concessão, permissão e autorização do Estado do Rio de Janeiro, inclusive os de turismo”, contida no caput do mencionado preceito legal. Idêntica decisão foi tomada com relação à expressão “excetuada a hipótese prevista no caput deste artigo”, inserta no inciso IX do retro citado dispositivo legal, e “sobre a prestação de serviço intermunicipal de transporte rodoviário de passageiros e o transporte fornecido pelo empregador com ou sem ônus para funcionários e/ou empregados” e, ainda, contemplada no artigo 40 do mesmo diploma legal.
A circunstância não prejudica a conclusão a que se chegará mais adiante.
Fechado o parêntese, observe-se que o Governo do Estado, após haver impugnado a constitucionalidade de expressão contida no caput do art. 4º da Lei Estadual nº 2.657/96, como acima se viu, conferiu novo tratamento especial à base de cálculo do imposto de que se cuida, com a edição da Lei nº 2.778/97, cujo art. 1º dispunha, verbis:
“Art. 1º – A empresa prestadora do serviço de transporte rodoviário intermunicipal de passageiros, executado mediante concessão, permissão ou autorização por parte do Estado do Rio de Janeiro, prestado exclusivamente em seu território deverá, em substituição ao regime de apuração do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, previsto no caput do artigo 33, da Lei nº 2.657, de 26 de dezembro de 1996, pagar mensalmente o referido imposto por estimativa de acordo com a seguinte tabela:
I – serviço de transporte rodoviário coletivo intermunicipal de passageiros: R$ 500,00 (quinhentos reais) hoje equivalente a 548.97 (quinhentas e quarenta e oito ponto noventa e sete) UFIRs por veículo e por mês;
II – serviço de transporte intermunicipal de passageiros sob o regime de fretamento contínuo: R$ 250,00 (duzentos e cinqüenta reais) hoje equivalente a 274.48 (duzentos e setenta e quatro ponto quarenta e oito) UFIRs por veículo e por mês;
III – serviço de transporte de passageiros sob o regime de fretamento eventual ou turístico: R$ 250,00 (duzentos e cinqüenta reais), hoje equivalente a 274.48 (duzentos e setenta e quatro ponto quarenta e oito) UFIRs por veículo e por mês.”
Tais valores, posteriormente, foram alterados pelas Leis Estaduais nº 3.334, de 29 de dezembro de 1999, e nº 3.419, de 14 de junho de 2000.
A fim de viabilizar o pagamento por estimativa, de que tratava o dispositivo acima transcrito, o art. 3º, da Lei Estadual nº 2.778/97, dispôs, em sua redação originária, que verbis:
“Art. 3º – O contribuinte que optar pelo pagamento do imposto na forma prevista nesta Lei fica dispensado, enquanto perdurar este regime, do cumprimento das obrigações acessórias, exceto em relação à inscrição, entrega de DECLAN, à comprovação do recolhimento do tributo até o dia 30 do mês seguinte ao de sua competência perante a Administração Fazendária Estadual, e à apresentação de demonstrativo mensal da frota de sua propriedade, explicitando os veículos que são utilizados na prestação dos serviços referidos no artigo 1º.”
Estas são as considerações de ordem legislativa que mais de perto interessam ao presente parecer.
2. A base de cálculo estabelecida pela Lei Estadual nº 2.778/97
A partir da vigência do mencionado ato legislativo, alterou-se profundamente, não só a base de cálculo do ICMS devido por certa categoria de contribuintes –os prestadores do serviço rodoviário intermunicipal de transporte de passageiros –como também o regime de apuração do quantum a ser pago a este título.
Com efeito, após o advento do citado diploma legal, o imposto devido por tal classe de contribuintes passou a ser pago mensalmente e por estimativa, conforme destacado no item 1 supra, tendo por base um preço ficto e por multiplicador a quantidade de ônibus de cada contribuinte.
Daí por diante, os citados contribuintes viram-se na contingência de observar a conduta determinada, em cumprimento da obrigação tributária nascida com a ocorrência do fato gerador do imposto em tela.
2.1. A antinomia entre a norma de conduta imposta pelo art. 1º, da Lei Estadual nº 2.778/97, e a estabelecida no art. 3º do mesmo diploma legal.
Ao se reproduzir o texto do artigo 1º do citado ato legislativo, destacou-se em sua linguagem normativa o verbo “dever”, que põe de relevo uma prescrição imperativa, comum nos discursos normativos, na medida em que descreve uma ação singular, por força da qual os destinatários do preceito contido no citado dispositivo legal, quais sejam, todos os contribuintes que prestam o serviço rodoviário intermunicipal de transporte de passageiros, em substituição ao regime geral de apuração do imposto, previsto no artigo 33, caput, da Lei nº 2.657/1996, passam a ser obrigados a pagar o ICMS com base em estimativa, calculado o respectivo montante segundo a tabela prevista nos desdobramentos do referido artigo 1º.
Tal imposição briga, à toda evidência, com a opção conferida aos sobreditos contribuintes, pelo disposto no artigo 3º da Lei Estadual nº 2.778/97.
Realmente, ou bem eles têm o dever de agir conforme determinação contida no caput do art. 1º da citada Lei Estadual, independentemente da vontade de cada um, como é próprio das normas cogentes ou imperativas, ou podem escolher entre pagar o ICMS de acordo com regime geral de apuração ou em conformidade com o regime especial estabelecido pelo citado ato legislativo.
Patente, assim, a antinomia que se flagra no seio do referido ato legislativo.
Tal disfunção, inconcebível, logo veio a ser corrigida pelo legislador estadual, com a edição da Lei Estadual nº 2.804/97.
Com efeito, o artigo 18, parágrafo único, do mencionado ato legislativo deu nova redação ao art. 3º da Lei Estadual nº 2.778/97, cujo discurso passou a ter a seguinte linguagem normativa, verbis:
“Art. 3º – O contribuinte de que trata esta Lei fica dispensado do cumprimento das obrigações acessórias, exceto em relação à inscrição, à entrega da DECLAN, à comprovação do recolhimento até o dia 30 do mês seguinte ao da sua competência perante a Administração Fazendária Estadual, e à apresentação mensal da frota, explicitando os veículos que são utilizados na prestação dos serviços referidos no artigo 1º.”
O legislador estadual, ao eliminar da versão original do art. 3º acima a expressão “que optar pelo pagamento do Imposto na forma prevista nesta Lei”, desfez a relação de antagonismo (linhas acima destacada), e conferiu aos “efeitos que o ordenamento jurídico atribui a um dado comportamento” o necessário grau de “certeza”, a fim de que os destinatários da norma saibam “com antecedência, as conseqüências das próprias ações” (NORBERTO BOBBIO in Teoria da Norma Jurídica, EDIPRO-Edições Profissionais Ltda, 1ª edição, 2001, pág. 182), determinada taxativamente no artigo 1º da Lei Estadual nº 2.778/97.
2.2. Efeito desta correção sobre o disposto no art. 4º da Lei Estadual nº 2.657, de 26.12.96, e sua conseqüente repercussão sobre a ADI nº 1.577-0-RJ.
A correção da referida antinomia refletiu-se, praticamente, sobre o disposto no art. 4º da Lei Estadual nº 2.657/1996.
Realmente, se lei posterior, do mesmo nível hierárquico da acima citada, determina que o pagamento do ICMS para certa classe de contribuintes passa a ser efetuado, unicamente, por estimativa, e mensalmente, mediante um preço ficto, e tendo por multiplicador a quantidade de ônibus de cada um; tem-se que este comando normativo revogou, tacitamente, a norma que impunha a redução em 90% (noventa por cento) da base de cálculo do ICMS devido pelos prestadores de serviços de transporte rodoviário intermunicipal de passageiros, executado mediante concessão, permissão e autorização do Estado do Rio de Janeiro, inclusive os de turismo, na medida em que deu à matéria disciplina inteiramente diversa (art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil), assim como revogou, no que couber, pela mesma razão jurídica, as normas de conduta subordinadas ao referido comando, contidas no inciso IX do referido artigo 4º e no artigo 40 do mesmo ato legislativo.
As revogações em tela, a sua vez, projetam efeito sobre a ADI nº 1.577-0, ainda em curso no Supremo Tribunal Federal.
É que o objeto da referida ação é verificar se determinado texto de Lei é ou não constitucional, pelo que a consecução deste exige, como corolário lógico inafastável, que esteja em vigor o texto inquinado de inconstitucional, pois só assim a Corte Suprema poderá exercer sua nobilíssima função.
Neste sentido a jurisprudência do Excelso Pretório, a proclamar que, verbis:
“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. OBJETO DA AÇÃO. REVOGAÇÃO SUPERVENIENTE DA LEI ARGÜIDA INCONSTITUCIONAL. PREJUDICIALIDADE DA AÇÃO. CONTROVÉRSIA.
OBJETO DA AÇÃO DIRETA prevista no artigo 102, I, a e 103 da Constituição Federal é a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em tese, logo o interesse de agir só existe se a lei estiver em vigor.
REVOGAÇÃO DA LEI ARGÜÍDA DE INCONSTITUCIONAL. Prejudicialidade da ação por perda de objeto. A revogação ulterior da lei questionada realiza, em si, a função jurídica constitucional reservada à ação direta de expungir do sistema jurídico a norma inquinada de inconstitucionalidade.
EFEITOS CONCRETOS DA LEI REVOGADA, durante sua vigência. Matéria que, por não constituir objeto da ação direta, deve ser remetida às vias ordinárias. A declaração em tese de lei que não mais existe transformaria a ação direta em instrumento processual de proteção de situações jurídicas pessoais e concretas.” (RTJ 154/101, Tribunal Pleno – ADI nº 709-PR, Relator Ministro PAULO BROSSARD).
Assim, a partir da premissa de que o disposto no art. 1º, da Lei Estadual nº 2.778/97, revogou o estatuído no art. 4º, da Lei Estadual nº 2.657/96, forçoso é concluir que tal revogação irradiou inegáveis efeitos sobre a ADI nº 1.577-0, visto não haver mais lugar para se efetuar o controle abstrato da constitucionalidade de preceito normativo retirado do mundo jurídico pelo exercício da função legislativa.
Um fato da maior relevância reforça a situação, qual seja, o de que o mesmo Governo que tempos atrás impugnou a constitucionalidade da redução em 90% (noventa por cento) da base de cálculo do ICMS devido pela classe de contribuintes de que se cuida, anos mais tarde, em autêntico venire contra factum proprio, reintroduz na ordem jurídico-tributária estadual o dispositivo outrora tido como inconstitucional, demonstrando, com isso, que a providência, restrita ao território estadual, não é portadora do vício de inconstitucionalidade antes invocado.
3. A edição da Lei Estadual nº 4.117, de 27.06.03
O ato legislativo em foco retomou a base de cálculo reduzida para efeito de apuração do quantum a pagar a título do ICMS devido pela categoria de contribuintes que menciona.
Eis o texto do novel preceito, verbis:
“Art. 3º – O art. 4º da Lei nº 2.657, de 26 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação, acrescido do inciso XII e do § 5º:
“Art. 4º – A base de cálculo, reduzida em 90% (noventa por cento) se incidente o imposto sobre as prestações de serviços de transporte rodoviário intermunicipal de passageiros executados mediante concessão, permissão e autorização do Estado do Rio de Janeiro, inclusive os de turismo, é:”
A retomada da referida base de cálculo, determinada por Lei Estadual superveniente à Lei Estadual nº 2.778/97, por disciplinar matéria relativa ao pagamento do ICMS devido por uma mesma classe de contribuintes, revoga o disposto no artigo 1º do ato legislativo citado por último, por força da prescrição contida no § 1º do art. 2º da Lei de Introdução do Código Civil.
4. À guisa de conclusão
Face ao exposto, é forçoso concluir que, a partir da eficácia do disposto no art. 4º, da Lei Estadual nº 4.117/03, a categoria dos contribuintes referidos, especificamente, no mencionado preceito legal, deverá pagar o ICMS devido pelas prestações de serviço de transporte rodoviário intermunicipal de passageiros, executados mediante concessão, permissão e autorização do Estado do Rio de Janeiro, inclusive os de turismo, em conformidade com o regime geral de pagamento do referido imposto, vez que revogado o regime especial por estimativa, preconizado pela Lei Estadual nº 2.778/97, observada a redução em 90% (noventa por cento) de sua base de cálculo e as demais obrigações acessórias a serem cumpridas.