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O Tribunal de Contas da União e a decadência prevista na lei do processo administrativo

31 de março de 2007

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O presente artigo trata da aplicabilidade das disposições da Lei do Processo Administrativo (Lei 9.784/99) sobre a atividade finalística dos Tribunais de Contas, especialmente em face de seu artigo 54, que estabelece o prazo decadencial de cinco anos para a Administração exercer o direito de anular os próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, se deles decorrerem efeitos favoráveis para os administrados.

Discutiremos a posição conferida constitucionalmente ao Tribunal de Contas da União dentro da estrutura do Estado e a natureza jurídica de suas decisões, sem o que não será fidedigna a solução que apontar para a aplicabilidade, de maneira primária ou subsidiária, ou para a inaplicabilidade da processualística administrativa nos julgados que do TCU defluem.

Nessa esteira, é a própria Lei 9.784/99 que nos dá a primeira e decisiva orientação, ao dispor, já no § 1º de seu artigo 1º, que deverá ser observada por todos aqueles que exercem função administrativa, em quaisquer dos poderes da União. Daí que, quando a lei emprega o termo “Administra-
ção”, a exemplo do que ocorre no artigo 54, que mais nos interessa, empresta-lhe um significado funcional, para corresponder a quem, precipuamente ou não, exerce função administrativa, por distinção daqueles que desempenham as demais funções estatais, legislativa e judiciária.

Para o estudioso mais atento, não será difícil observar a estreita correlação entre o artigo 54 da Lei do Processo Administrativo e as famosas Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal, essências da teoria da autotutela administra-tiva, que assim enunciam, respectivamente:

“A Administração Pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos” e “A Administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos
adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”

Cotejando a nova norma processual com o entendi-mento sumulado, nota-se que o poder-dever de anulação declarado pela doutrina e pela jurisprudência, dantes de abrangência indefinida, agora encontra o limite temporal de cinco anos, depois do que a inércia da Administração levará à consolidação da situação jurídica estabelecida pelo ato irregular.

Em outros termos, o artigo 54 da Lei 9.784/99 tem o objetivo de mitigar o uso indiscriminado do princípio da autotutela administrativa, fazendo-o inoperante em casos em que colaboraria para a insegurança das relações jurídicas providas pelo Estado, em prejuízo dos administrados. Protege-se, com isso, a boa-fé e a confiança daqueles que, presumindo regular a atuação da Administração, correriam o risco de ver seus direitos repentinamente cassados, após certo tempo de estabilidade. Em resumo, privilegia-se o cânone da segurança jurídica, expressamente introduzido no direito administrativo pela mesma Lei 9.784/99, como determina seu artigo 2º, caput: “A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.”

Enfim, as coisas começam a tornar-se harmônicas, ao se perceber que o dispositivo questionado da Lei 9.784/99, conquanto de reconhecida valia, do ponto de vista formal nada mais é do que um freio ao pleno exercício da autotutela administrativa, a qual, evidentemente, só está a alcance de quem expediu o ato inquinado, ou seja, a Administração. Basta, por similaridade, ver quem são os destinatários da Súmula 473 do STF. De outra parte, o Tribunal de Contas da União, quando afirma a ilegalidade de um ato, em estrito cumprimento de suas atribuições constitucionais, não está praticando autotutela, porque aí não existe desempenho de função administrativa, mas sim controle da atividade alheia.

Trata-se de um controle externo, no sentido de que está localizado fora da Administração, ou, como se queira, da função administrativa, bem como é exterior o controle a cargo do Judiciário. Ambos são olhos vigiando, a seu modo, a atividade administrativa, agindo, sobretudo, quando falha a autotutela, conforme o magistério de Diógenes Gasparini in “Direito Administrativo”. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 107.

Seria realmente um paradoxo constitucional se o controle externo confiado ao Poder Legislativo fosse realizado com a cooperação de um órgão investido em função administrativa. Não é demais lembrar o que diz o artigo 71, caput, da Constituição Federal: “O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União (…)”. Afinal, é o TCU que, no âmbito da União, com o longo rol de competências que lhe foram cometidas, concretiza, direta e substancialmente, o controle externo.

Dessa forma, exerce o TCU função própria do Legislativo, ou, em sentido amplo, função legislativa. Não se relaciona, evidentemente, com a função de elaborar leis, porém com a de fiscalizar sua correta aplicação. De fato, com o amadurecimento do regime democrático e o aprimoramento da separação de poderes, o Legislativo ganha outros contornos, indo além da função de legiferar. Sua missão atual, como se depreende da Constituição brasileira, envolve igualmente a importante função controladora, que se nota presente por meio das comissões parlamentares de fiscalização e controle, de inquérito e do contributo do TCU, tal como ensina o ilustre professor e ex-senador Josaphat Marinho em “A função de controle do Congresso Nacional” in Revista de Informação Legislativa, vol. 14, nº 53, jan/mar de 1977. p. 17/38.

Nesse moderno contexto da ação parlamentar, insere-se o imprescindível trabalho das Cortes de Contas, perfilhado também por José Afonso da Silva, ao comentar suas competências constitucionais: “Em todas essas hipóteses, na verdade, o que ocorre é uma função de controle; e uma função de controle que é tão elevada como a função jurisdicional. (…) A função de controle é, realmente, a função fundamental dos Tribunais de Contas.” (in “Tribunais de Contas: função jurisdicional e execução de seus julgados”. Revista do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, nº 54, 1986. p. 33/48)

Tem-se, pois, que os misteres constitucionais dos Tribunais de Contas consistem em função de controle externo, pertencente à função legislativa, não dizendo qualquer respeito à função administrativa de que cuida a Lei 9.784/99.

Disso, com as vênias ao saudoso Hely Lopes Meirelles, as Cortes de Contas não se constituem em órgãos jurisdicionais administrativos, como são os Conselhos de Contribuintes, os Conselhos Curadores de Fundos e o Tribunal Marítimo, todos vinculados ao Poder Executivo. Por conseqüência, as decisões dos Tribunais de Contas também não podem ser vistas como administrativas, situando-se em patamar superior a essas, diante de seu destaque constitucional, a despeito da possibilidade de revisão judicial. São elas, em verdade, atos de controle, pertencentes à atividade legislativa, ou ao exercício de função legislativa, tomada em amplitude, segundo o melhor entendimento.

Do contrário, consistiriam as decisões dos Tribunais de Contas meros atos administrativos, que, segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, reportando-se ao critério funcional, são somente aqueles praticados “no exercício concreto da função administrativa”, sejam eles editados “pelos órgãos administrativos ou pelos órgãos judiciais e legislativos”, no exercício daquela função (ob. cit., p. 160). Não é essa, entretanto, como já se viu, a função finalística desempenhada pelo Tribunal de Contas.

Com muita propriedade, o mestre Miguel Reale, partindo de seus conhecimentos jusfilosóficos, que lhe permitem discernir a essência das coisas como ninguém, já entendia, há algumas décadas, a similaridade entre a jurisdição própria do Poder Judiciário e aquela atribuída constitucionalmente às Cortes de Contas, em seu “Direito Administrativo – Estudos e Pareceres”. Rio de Janeiro: Forense, 1969. p. 94.

Decerto, não esteve a própria Corte Suprema outorgando a um órgão de jurisdição administrativa parcela da nobre missão de controlar a constitucionalidade das leis, conforme diz sua Súmula 347: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público.”

São assim as decisões dos Tribunais de Contas como um meio-termo entre a dita “coisa julgada administrativa” e a apreciação judicial, que somente se dá, usualmente, à vista da aceitação da competência originária constitucional do controle externo (artigo 71 da Constituição), para verificar a conformidade do devido processo legal, v.g., RE-55.821/PR: “Tribunal de Contas. Julgamento das contas de responsáveis por haveres públicos. Competência exclusiva, salvo nulidade por irregularidade formal grave, ou manifesta ilegalidade”; MS-8.886/ES: “A revogação ou anulação, pelo Poder Executivo, de aposentadoria, ou qualquer outro ato aprovado pelo Tribunal de Contas, não produz efeitos antes de aprovada por aquele Tribunal, ressalvada a competência revisora do Judiciário”; MS-21.466/DF: “Com a superveniência da nova Constituição, ampliou-se, de modo extremamente significativo, a esfera de competência dos Tribunais de Contas, os quais, distanciados do modelo inicial consagrado na  Constituição republicana de 1891, foram investidos de poderes mais amplos, que ensejam, agora, a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial. No exercício de sua função constitucional de controle, o Tribunal de Contas da União procede, dentre outras atribuições, à verificação da aposentadoria, e determina – tal seja a situação jurídica emergente do respectivo ato concessivo – a efetivação, ou não, de seu registro.”

Não sendo órgão que exerça função administrativa, ou mesmo jurisdição de cunho administrativo, exceto sobre os assuntos internos, o Tribunal de Contas não está compelido a observar os ditames da Lei 9.784/99, que, aliás, determina uma processualística amplamente divergente daquela já regulada pela Lei 8.443/92, aplicável aos julgamentos em matéria de controle externo.

A processualística particular do controle externo tem como objeto imediato o ato já consumado e presumidamente revisto pela Administração, atingindo direitos subjetivos por via reflexa, ao considerar legal ou ilegal determinada conduta atinente à atividade administrativa. Em outras palavras, não visa atender aos interesses individuais dos administrados nem prover-lhes, direta e concretamente, uma ação, mas sim materializar interesses públicos amplos, de toda a coletividade.

Daí que abrange instrumentos como o exame de contas, a denúncia, a representação, a auditoria e outras formas de defesa do interesse público que culminam em decisões de controle externo passíveis de recursos especiais, tudo consoante dispõe a Lei 8.443/92. Tem-se, com efeito, um processo de natureza especial, que, mesmo se considerado administrativo, tão-somente por argumentação, contaria com a excepcionalidade decretada pelo artigo 69 da Lei 9.784/99: “Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas, subsidiariamente, os preceitos desta Lei.”

No entanto, os processos administrativos de que trata o referido artigo da Lei 9.784/99 devem ser entendidos como aqueles que cuidam diretamente de um interesse privado, por meio de um serviço de interesse público, ou que providenciam o funcionamento de uma atividade pública concreta, a exemplo dos seguintes: o processo administrativo previsto no artigo 38 da Lei de Licitações e Contratos (Lei 8.666/93); o discriminatório das terras devolutas da União (Lei 6.383/76); o de determinação e exigência de créditos tributários da União; o estabelecido no Capítulo XVIII do Código Brasileiro de Trânsito (Lei 9.503/97); o disciplinar da Lei 8.112/90, etc.

Efetivamente, a Lei 8.443/92, que dispõe sobre a organização do Tribunal de Contas da União, regulamenta parte relevante do ordenamento constitucional, concernente à fiscalização contábil, financeira e orçamentária da União e suas entidades (Seção IX do Capítulo I do Título IV). Seu contexto inclui-se na organização do Poder Legislativo, segundo se depreende da articulação do corpo da Lei Maior, de tal sorte que, mais uma vez, percebe-se a intenção do constituinte de qualificar as atribuições do TCU como função legislativa, em sentido amplo.

Portanto, assim como não seria de se admitir que tivesse aplicação sobre o controle jurisdicional do Poder Judiciário, a Lei do Processo Administrativo, estabelecendo as regras da processualística peculiar da Administração, não pode se estender ao controle externo parlamentar efetuado com o auxílio do Tribunal de Contas, sob pena de subverter a lógica da distribuição e separação dos poderes.

Ademais, é bom ressaltar, não poderia a lei restringir, sem o devido permissivo constitucional, uma competência entregue ao Tribunal de Contas de maneira ilimitada em sua origem, segundo a vontade nacional captada pelo constituinte.

Não se quer dizer, claramente, que os princípios que norteiam o processo administrativo nunca serão levados em conta fora de seu âmbito. Contudo, serão por representarem princípios constitucionais ou por consistirem em valores reconhecidos pelo direito. Quando forem apenas regras específicas do processo administrativo, não terão o condão de vincular as decisões do controle, seja judicial ou parlamentar, em que pese os processos do Tribunal de Contas poderem aproveitá-los, subsidiariamente, conforme acontece com os princípios da oficialidade, do formalismo moderado e da verdade material.

Veja-se exatamente o caso do princípio da segurança jurídica, de mais alta valia, proveniente do ordenamento constitucional, e que baliza a regra do artigo 54 da Lei 9.784/99. Sua inteligência é bastante utilizada como parâmetro de justiça em decisões judiciais, bem assim nos julgados desta Corte. Ocorre que a Lei do Processo Administrativo lhe deu traços exclusivos, ao fixar o lapso de cinco anos como fronteira entre a possibilidade e a impossibilidade de anulação dos atos administrativos pela própria Administração, no exercício da autotutela. Essa particularidade, no entanto, não amarra o controle externo, que permanece apto a declarar a nulidade dos atos administrativos desconformes com a lei.

Não se deve perder de vista, enfim, que as decisões do Tribunal de Contas traduzem o exercício da função de controle externo, de caráter legislativo, sobre a função administrativa, que com aquela não se confunde. Ao apontarem irregularidades no momento da fiscalização da atividade administrativa, as decisões do Tribunal exigem um ato posterior da Administração, para a correção do ponto impugnado. Todavia, agindo assim, a Administração Pública não exerce autotutela, como se retirasse do mundo jurídico, sponte sua, o ato irregular. Na realidade, está sendo vinculada a esse agir por força de determinação do órgão de controle externo. Nesses casos, inexistindo autotutela, não há que se falar na aplicação da Lei 9.784/99.

Por todo o exposto, penso que restam inaplicáveis, de forma obrigatória, os preceitos da Lei 9.784/99 aos processos da competência constitucional deste Tribunal de Contas.