O tribunal do júri e sua convocação

31 de janeiro de 2010

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Em junho de 2008 foi promulgada a Lei no 11.689, a qual alterou a redação de inúmeros dispositivos do Código de Processo Penal, trazendo importantes e significativas mudanças no capítulo do procedimento relativo aos processos de competência do Tribunal do Júri. Como ocorre em toda reforma legislativa, sobretudo no campo processual, desde a sua entrada em vigor doutrina e jurisprudência dedicam-se com afinco a analisar, interpretar e bem aplicar as alterações pretendidas pelo legislador.

Ocorre que todo esse processo de aprimoramento e adequação da legislação à realidade social e, posteriormente, de construção e consolidação do conhecimento jurídico por parte dos operadores do Direito tão mais substancial e seguro se torna quanto mais debatidas forem suas bases teóricas e empíricas. Logo, nesse curto espaço de tempo da vigência da Lei no 11.689/2008, é natural que questões referentes ao novo procedimento do Júri ainda não tenham sido debatidas a contento pela doutrina nem levadas ao conhecimento dos Tribunais pátrios, de modo a criar jurisprudência sobre o tema.

Entre tais questões, pretendemos aqui destacar o procedimento de alistamento de jurados, disciplinado pelo artigo 425, § 2o, do Código de Processo Penal, sobre o qual a falta de reflexão mais aprofundada tem acarretado interpretações imprecisas, gerando ônus produtivo desnecessário e ilegal às empresas do setor privado.

Vale destacar, de início, que antes da mencionada reforma legislativa, o procedimento de alistamento era previsto no artigo 439, segundo o qual o Juiz poderia requisitar “às autoridades locais, associações de classe, sindicatos profissionais e repartições públicas” a indicação de pessoas para compor a lista anual de jurados do Tribunal do Júri. Sensível à constatação de que o recrutamento junto a essas entidades mostrava-se ineficaz para fazer do Júri Popular um espaço plural, menos elitista e reflexo da heterogeneidade da nossa sociedade, o legislador alterou o procedimento para permitir que o Juiz pudesse requisitar a indicação dos jurados “às autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos comunitários”.

A toda evidência, houve um alargamento do espectro de entidades potencialmente indicadoras de membros do Júri, cuja natureza igualmente sinaliza o propósito democratizante da reforma processual. Em suma, daquele momento em diante o Juiz poderia com mais facilidade formular uma lista composta por pessoas dos mais diferentes estratos sociais, idades, raças, credos e ideologias, antes excluídas da composição do Júri Popular.

Como se verá adiante, tal digressão é fundamental para demonstrar a natureza taxativa do rol de entidades elencadas no § 2o, do art. 425 do CPP, dispositivo claramente redigido de modo a discriminar todas as categorias de pessoas e organismos a quem poderá o Juiz Presidente do Tribunal do Júri, de acordo com a sua discricionariedade, porém de forma cogente, requisitar a apresentação de nomes para integrarem a lista anual de Jurados.

Note-se que muito embora o dispositivo não seja exaustivo[1] na discriminação de todas as pessoas e organismos compreendidos nas categorias citadas — salutarmente permitindo que o Magistrado, de acordo com a realidade local, escolha dentre as várias autoridades, sindicatos, universidades, núcleos comunitários, etc. —, é cabalmente taxativo[2] ao vincular a obrigatoriedade de fornecimento de tal relação de nomes tão somente àquelas categorias de pessoas e organismos contemplados em seu texto.

Reconhecer que o rol contido no dispositivo em análise não discrimina a relação completa de todas as “autoridades locais”, “associações de classe e de bairro”, “entidades associativas e culturais”, “instituições de ensino em geral”, “universidades”, “sindicatos”, “repartições públicas” nem, muito menos, dos “núcleos comunitários” existentes em nossa sociedade — minúcia, frise-se, inexequível e jamais pretendida —, não significa que tal rol seja meramente exemplificativo.

Aliás, caso fosse possível requisitar a qualquer pessoa ou empresa o fornecimento obrigatório de nomes para integrarem a lista de jurados, nenhuma razão haveria para a reforma em comento ter se encarregado de revogar o dispositivo anterior, criando outro com rol de entidades ampliado.

Outro ponto importante a demonstrar a taxatividade do rol contido no art. 425, § 2o, do CPP, é a natureza das entidades adicionadas às anteriormente listadas. Partindo-se de uma interpretação além da meramente literal percebe-se que o legislador não escolheu a esmo as organizações sociais que seriam acrescidas ao rol então existente, mas, ao contrário, procurou mencionar aquelas que reunissem características capazes de propiciar ao Magistrado alcançar os extratos sociais antes marginalizados desse processo de seleção.

Sobre o tema, Fauzi Hassan Choukr[3] com propriedade destaca que:

“Tucci chegou a afirmar a necessidade do ‘alistamento de jurados também em diversificados centros de convivência, com a efetiva participação das associações de bairros, instituições de ensino, entidades culturais; de todos os núcleos populares, enfim, que, à luz das garantias constitucionais, estão se desenvolvendo de forma autônoma e refletem as expressões de cidadania, que é um dos princípios fundamentais da República e a base institucional do Tribunal do Júri’, o que acabou sendo contemplado no par. 2o do presente artigo.”

Fixadas as premissas da taxatividade do dispositivo e, principalmente, a motivação do legislador ao elencar as pessoas e entidades a quem poderá o Juiz requisitar indicações de jurados, passaremos a discorrer sobre a impossibilidade de que tal requisição, ao menos com força cogente, seja dirigida a empresas privadas, como vem ocorrendo, mesmo sem previsão legal, com bastante frequência desde a promulgação da Lei no 11.689/2008.

Imagine-se que visando compor a lista anual de jurados do seu Tribunal, o Magistrado, por exemplo, requeira do Presidente do Tribunal Regional Eleitoral de seu Estado uma extensa relação de eleitores; de uma associação de moradores os nomes de seus membros; ou, ainda, de uma Universidade a lista de determinado número de alunos. Em tais casos, ter-se-ão respeitados os limites do artigo 425, § 2o, do CPP e, principalmente, o propósito do legislador de transformar o Júri Popular em um espaço plural, efetivamente representativo da nossa sociedade.

Além disso, em tais casos, também não será imposto nenhum ônus econômico àqueles a quem a requisição foi dirigida. Nenhum prejuízo recairá sobre o sindicato que teve seus associados convocados pelo Tribunal do Júri, nem à Universidade que indicou seus alunos ou à repartição pública que cedeu seus funcionários, cujos vencimentos são pagos, em última análise, pelos cofres públicos.

O mesmo não se pode dizer das requisições de indicação de jurados, quando essas se dirigem às empresas privadas, objetivando que as mesmas forneçam os dados dos seus funcionários. Nessa hipótese, não prevista em Lei, impõe-se sobre as empresas privadas, de forma desproporcional e concentrada, ônus econômico e produtivo decorrente da possibilidade de ter vários de seus funcionários convocados a se apresentarem perante o Tribunal do Júri.

Evidentemente que todo cidadão, uma vez chamado a integrar o Júri Popular, tem o dever de colaborar com a Justiça, o mesmo aplicando-se às empresas que porventura tenham seus funcionários convocados. Trata-se de atividade essencial à consecução da Justiça, cujos custos podem ser considerados como um preço a ser pago pela sociedade em prol dos fins do Estado Democrático de Direito.

Entretanto, justamente por se tratar de um custo social com reflexos econômicos, a ser repartido entre toda a sociedade, mostra-se desproporcional, concentrada e desmedida a requisição dirigida às empresas particulares para fornecimento de relação com determinado número de funcionários, número esse escolhido ao alvedrio da autoridade requisitante, uma vez que a Lei não fixa limites neste particular.

No caso, por exemplo, de grandes empresas com filiais em vários Estados do país, a desproporcionalidade do ônus infligido por tal tipo de requisição se mostra ainda mais evidente, notadamente se atentarmos para o número de comarcas e Tribunais de Júri espalhados pelos quatro cantos do território nacional.

O custo de tal alistamento, notadamente quando feito de forma concentrada, não pode ser desconsiderado para fins de análise da interpretação e aplicação do dispositivo em questão.

A propósito, sobre o custo do alistamento de jurados, destaca-se importante manifestação do Superior Tribunal de Justiça, em que se reconheceu a ilegalidade dos descontos salariais dos funcionários da Fazenda que, apesar de convocados a comparecer à sessão do Júri, não tinham sido escolhidos para integrar o Conselho de Sentença. Por sua importância e pertinência ao tema, segue transcrito trecho da decisão supracitada:

“É consabido que o serviço obrigatório prestado ao Tribunal do Júri, considerado serviço público relevante e essencial para a formação do devido processo legal no julgamento de crimes dolosos contra a vida, é imposto a todos os brasileiros.

Há expressa disposição normativa no sentido de que ‘nenhum desconto será feito nos vencimentos do jurado sorteado que comparecer às sessões do júri’ (art. 430, do CPP). Essa prerrogativa se estende, igualmente, aos servidores públicos alistados, inclusive por força do disposto no artigo 102, inciso VI, da Lei n. 8.112/90, que considera dias de efetivo serviço o afastamento em virtude da prestação de serviço no Tribunal do Júri.

Não se justifica, no particular, o desconto na remuneração dos auditores fiscais em razão da Ordem de Serviço n. 02/99, da Superintendência da Receita Federal (3a Região Fiscal). Segundo consta dos termos do r. voto condutor do acórdão recorrido, com amparo em declarações dos Juízes Presidentes dos 1o, 2o e 3o Tribunais do Júri de Fortaleza, compareceram os servidores todos os dias úteis dos meses de fevereiro a junho de 1999 às sessões do Tribunal do Júri.”

Na prática, admitir a possibilidade de que qualquer magistrado Presidente de Tribunal do Júri dirija requisição dessa natureza às empresas particulares, fixando o fornecimento, sem nenhum tipo de critério, de apenas um, de alguns ou até mesmo de todos os nomes de seus funcionários para integrar lista anual de jurados, além de constituir medida não prevista no art. 425, § 2o, do CPP, importa na imposição de sério risco de graves e desnecessários transtornos de ordem econômica e produtiva. De ordem econômica porque os dias de ausência deverão ser pagos como se trabalhados fossem e de ordem produtiva porque as atribuições dos funcionários convocados ficarão em suspenso ou, na melhor das hipóteses, serão remanejadas a outro funcionário que haverá de se ocupar das suas juntamente com a do colega convocado, em evidente prejuízo de eficiência.

Em outras palavras, não queremos com isso dizer que o Magistrado esteja proibido de solicitar às empresas particulares cooperação no sentido de fornecer alguns nomes de seus funcionários para compor a lista anual de jurados, e que tais empresas, sem prejuízo de suas atividades, se disponham a atender tal solicitação. O que se encontra fora dos parâmetros legais é transformar esse ato de liberalidade e participação em requisição cogente, sem parâmetros e desnecessariamente onerosa.

Por fim, afora a ausência de previsão legal que autorize esse tipo de requisição, dirigida às empresas particulares de forma cogente e não meramente colaborativa, logo geradora de ônus concentrado e desproporcional, importante se faz brevemente destacar a sua desnecessidade para fins de composição da lista anual de jurados.

O rol do art. 425, § 2o, do CPP, oferece ao Magistrado amplíssimas e diversificadas possibilidades de arregimentar nomes para compor a lista de jurados. Para tal constatação basta lembrar quantas autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino e universidades, quantos sindicatos, repartições públicas e núcleos comunitários podem ser oficiados pelo Juiz Presidente do Júri, tanto numa comarca menor, no interior como nas grandes capitais. Vê-se, portanto, que outros mecanismos há, previstos em lei, que de forma absolutamente satisfatória e democrática possibilitam a arregimentação de cidadãos para integrarem o Júri Popular, missão indispensável à administração da Justiça.

Todos esses aspectos corroboram a natureza taxativa do rol de categorias constantes do § 2o do art. 425 do CPP, o qual não abrange as empresas privadas, impossibilitando, por consequência, seja-lhes imposto ônus concentrado, desproporcional e desmedido decorrente do fornecimento de listagem de seus funcionários para compor relação de jurados, opção legislativa consciente não só da necessidade de democratização da instituição, mas também atenta aos custos decorrentes da convocação dos seus membros.


[1] 1. Que esgota, ou serve para esgotar. 2. Muito cansativo. Dicionário Michaelis.

[2] 1. Que taxa, que limita, que restringe. 2. Que fixa com precisão e em nome da lei ou regulamento. 3. Que circunscreve e reduz um caso a circunstâncias precisas e determinadas. Dicionário Michaelis.

[3] CHOUKR, Fauzi Hassan. Júri, Reformas, Continuísmos e Perspectivas Práticas. Rio de Janeiro. Ed. Lúmen Júris. 2009. P. 19.