O último perseguido

31 de outubro de 2009

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O pedido de extradição de Cesare Battisti tornou o Brasil cenário tardio do último capítulo da guerra fria mundial e da guerra civil italiana, conhecida na própria Itália como “anos de chumbo”. Como na guerra fria, a propaganda é vista como a alma do negócio. Como em qualquer guerra, e nos anos de chumbo não foi diferente, os fatos são as primeiras vítimas. Talvez fosse o caso de se recolherem as faixas, cessarem as palavras de ordem e se prestar atenção a alguns aspectos que a disputa de torcidas tem obscurecido. Só alguns instantes de serenidade, prudência e preocupação com os direitos humanos
Há três componentes que têm dificultado a compreensão do que é direito e justo na matéria. O primeiro é o empenho da Itália de Sylvio Berlusconi em levar de volta Battisti, último troféu político disponível depois que países como Inglaterra e Japão se recusaram a extraditar outros ativistas do mesmo período. O segundo é a política interna brasileira, onde muitos interessados gostariam de desacreditar uma decisão do Ministro da Justiça, endossada pelo Presidente da República. O terceiro é um certo pragmatismo utilitário de parte da opinião pública, que acha que, pelas dúvidas, e como não temos nada a ganhar, melhor mandar de volta. São forças muito poderosas, com porta-vozes em toda a parte. Mas, lembrando que estamos falando da vida de uma pessoa, pode ser que ainda haja espaço para uma breve reflexão sobre alguns fatos que não foram notados.
Primeiro fato que passou despercebido: o Procurador-Geral da República, à época o Dr. Antônio Fernando de Souza, após a concessão de refúgio pelo Ministro da Justiça, deu parecer pela validade dessa decisão e pela extinção do processo de extradição. Ao longo dos quatro anos em que permaneceu no cargo, todos os pareceres que ele proferiu em questões relevantes mereceram grande destaque. Alguém lembra de ter ouvido falar de sua manifestação favorável a Battisti? No dia do julgamento no STF, o novo Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Gurgel, fez um veemente pronunciamento pelo fim do processo de extradição. Alguém viu isso destacado em algum noticiário?
O Ministro Joaquim Barbosa — acompanhado pelos Ministros Eros Grau e Carmen Lúcia — proferiu um voto contundente em favor da validade do refúgio e pelo fim do processo de extradição. Afirmou com todas as letras que Cesare Battisti estava preso indevidamente e, pior, queixou-se duramente da “arrogância” da atuação da Itália e da “insistência inapropriada” do embaixador italiano nas gestões junto ao STF. Há muitos anos, os pronunciamentos do Ministro Joaquim Barbosa têm significativa repercussão na imprensa. Mas não dessa vez. A propósito: alguém ficou sabendo que três dos maiores juristas brasileiros — os professores Paulo Bonavides, José Afonso da Silva e Dalmo Dallari — defendem o refúgio concedido a Cesare Battisti?
Cesare Battisti foi condenado por quatro homicídios em um segundo(!) julgamento coletivo, com mais de vinte réus. No primeiro, ao qual compareceu e se defendeu, não foi sequer acusado por qualquer das mortes. Outras pessoas foram condenadas. Após haver deixado a Itália e se refugiado na França é que ele foi julgado uma segunda vez, à revelia, sem ter podido comparecer para se defender. Detalhe importante: a única prova relevante contra ele foi a delação premiada de um “arrependido”, que era acusado pelos crimes de homicídio e transferiu a culpa para Battisti. Outros acusados dos crimes “confirmaram”. Não há outras provas nos autos. A propósito: a sentença fala mais de trinta vezes em crime político, voltado para a “subversão” da ordem. A Constituição brasileira proíbe a extradição nessa hipótese. Cesare Battisti desafiou a Itália, por escrito, a realizar um novo julgamento, livre de contaminação política. Sem resposta. Alguém leu alguma dessas notícias em
algum lugar?
O julgamento da extradição está empatado em 4 a 4 — o Ministro Marco Aurélio pediu vista, mas antecipou sua posição favorável ao refúgio. O empate revela, no mínimo, a existência de dúvida razoável. Por que razão desempatar contra o acusado, que tanto na França como no Brasil já foi reconhecido como perseguido político e leva uma vida pacífica há mais de trinta anos? Não há precedente de corte constitucional ou tribunal supremo relevante que tenha anulado a concessão de um refúgio. Muito menos por voto de desempate. Ativismo judicial contra os direitos humanos não tem a cara do Brasil nem do Supremo Tribunal Federal.