O uso da IA Generativa como ferramenta de aprimoramento do raciocínio probatório

29 de novembro de 2024

Fernando Braga Presidente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região / Professor do Mestrado da Enfam

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A crescente adoção da Inteligência Artificial (IA) no âmbito judicial tem suscitado importantes debates sobre seus limites e potencialidades. Em meio às discussões acerca dos riscos da automação decisória, emerge uma perspectiva inovadora: o uso da IA generativa como instrumento de aperfeiçoamento do raciocínio probatório humano. Esta abordagem representa mudança significativa na forma como concebemos a interface entre tecnologia e processo decisório, especialmente no que tange à análise e valoração das provas.

Do erro à oportunidade de aprendizado As pesquisas sobre condenações errôneas têm revelado que a maioria dos casos não envolve situações probatórias particularmente complexas, mas sim falhas básicas no processo de racionalização da prova. Os primeiros seis casos do Innocence Project Brasil, atualmente em análise pelo Laboratório de Prevenção de Erros Judiciários – Lapej (Enfam), assim como os 250 casos estudados por Brandon Garrett, demonstram que as falhas estão associadas a uma baixa racionalidade e falta de transparência na avaliação da confiabilidade das fontes de prova e/ou da corroboração que propiciam à hipótese acusatória.

Reforçando esses achados, o estudo de 235 casos da Inglaterra e País de Gales, rotulados como sendo de “erros ‘decorrentes’ de provas particularmente enganosas” (misleading evidence), demonstrou que, em mais de dois terços dos casos, as evidências consideradas enganosas não eram tão enganosas assim e que, na realidade, havia os mesmos problemas relacionados à valoração da prova.

Este cenário reforça três constatações fundamentais da psicologia cognitiva:

i) da limitada capacidade do cérebro humano para processar grandes volumes de informação; ii) dos conhecidos vieses cognitivos, que são tendências de desvio da racionalidade – de um pensamento lógico e ancorado à realidade empírica –, marcadas pela previsibilidade e magnitude do desvio; e iii) da nossa forma natural de lidar com eventos passados: partindo das hipóteses para os fatos. Isto significa que nós, quando expostos a uma narrativa, prontamente a acolhemos ou a recusamos com base em sua familiaridade com nossas experiências vividas e nossa compreensão da normalidade do mundo, o que se processa inconsciente ou automaticamente. Em seguida, ao examinar os fatos, existe uma tendência natural de adaptar a realidade a nossas crenças, seja desconsiderando evidências contrárias ou mesmo inventando evidências desfavoráveis. 

Ademais, pesquisas empíricas demonstram que, sob as mesmas condições, juízes profissionais e jurados leigos produzem decisões sobre fatos com níveis equivalentes de acurácia, evidenciando que a formação jurídica tradicional, por si só, não é suficiente para fazer frente a essas limitações cognitivas naturais.

A ideia de devido processo intelectual para o juízo fático-probatório Como a praxe judicial brasileira mantém-se apegada a uma concepção persuasiva da prova, é fundamental abordar a ideia de uma tomada de decisão estruturada para a quaestio facti, a partir de uma mudança paradigmática fundamental: a superação da concepção canônica da prova direta. Deve-se enfatizar que os juízes não simplesmente veem ou percebem fatos passados ao analisarem as provas no presente. Em vez disso, aquilo que chamamos de “verdade judicial” é algo construído por meio de raciocínio abdutivo.

Essa percepção nos leva a uma discussão crucial sobre a ideia de uma espécie de “devido processo intelectual” para a adjudicação de fatos, que decompõe em seis subproblemas a questão da valoração da prova (há prova suficiente à admissão da hipótese acusatória?), quais sejam: i) a fixação da evidência, ou seja, das afirmações que podem ser empiricamente verificadas nos autos do processo; ii) a identificação e decomposição da hipótese sob disputa em “probanda últimas”; iii) a verificação das (eventuais) conexões entre todas as evidências e as probanda; iv) o monitoramento da confiabilidade das fontes de prova; v) em se tratando de provas indiciárias, a identificação das “generalizações de mundo” que converteriam as evidências em razões favoráveis ou contrárias às probanda; e vi) a busca por teorias concorrentes que expliquem cada evidência isoladamente e todas as evidências como um todo, identificando qual se sobressai como a melhor explicação.

Em síntese, a avaliação probatória deve seguir na direção oposta à forma natural de pensamento, começando com uma abordagem analítica dos fatos (ou das evidências), seguida por um fechamento holístico baseado na comparação de explicações ou narrativas.

Formação judicial para uso da IA no raciocínio probatório – Considerando esses achados e a crescente tendência de adoção da IA por juízes e suas equipes, a Enfam e a Esmafe 5 desenvolveram o curso “IA Generativa e Raciocínio Probatório”, que tem dois objetivos principais: prevenir o uso indevido das ferramentas de IA e utilizá-las para aprimorar o raciocínio na adjudicação dos fatos.

Num módulo introdutório, abordam-se cuidadosamente os limites técnicos da IA – as funções que esta simplesmente não pode desempenhar adequadamente – e éticos: (1) a IA nunca deve ser usada para tomada de decisão autônoma; (2) a IA não deve ser usada para aferir a credibilidade ou a corroboração de qualquer elemento de prova; (3) a IA não deve ser usada para justificar decisões já tomadas com base na intuição.

O treinamento se centra numa oficina prática onde se exploram as aplicações da IA na adjudicação de fatos através de julgamentos simulados, progredindo de casos simples para complexos, onde os participantes são incentivados a vincular as etapas do processo estruturado de tomada de decisão às capacidades da IA, utilizando-a para:

i) identificar e decompor a hipótese acusatória em probanda e monitorar quaisquer mudanças no decorrer do processo; ii) estabelecer a(s) evidência(s), de acordo com a teoria da acusação e/ou defesa, com base no que disseram em suas últimas manifestações; iii) reorganizar, criando uma linha do tempo, narrativas individuais ou mesmo uma fusão de narrativas de diferentes fontes; iv) gerar e explorar teorias ou explicações alternativas para as evidências apresentadas;

v) auxiliar na avaliação de credibilidade, destacando potenciais inconsistências inter­nas e incompatibilidades relacionadas a outras evidências; vi) detectar padrões recorrentes ou anomalias entre múltiplas evidências.

É importante registrar, ademais, que não se segue um roteiro rígido e que os participantes assumem a liderança na exploração dessas ferramentas.

Perspectivas e desafios – Referida formação encontra-se em constante revisão, incorporando o feedback dos participantes da primeira interação e adaptando-a às necessidades específicas da prática judicial brasileira. As experiências iniciais têm demonstrado que os magistrados, quando adequadamente capacitados, conseguem utilizar a IA generativa de forma crítica e responsável, potencializando sua capacidade de análise sem comprometer sua autonomia decisória.

Os desafios futuros são múltiplos e complexos, incluindo o aperfeiçoamento das ferramentas de IA para melhor atender às particularidades do sistema judicial brasileiro, a expansão do programa de capacitação para atingir um número maior de magistrados e o desenvolvimento de metodologias de avaliação do impacto desta abordagem na qualidade das decisões judiciais.

Entretanto, a experiência já demonstrou que, quando adequadamente direcionada, a IA generativa pode contribuir significativamente para a racionalização do processo decisório em matéria fático-probatória, auxiliando os decisores a potencializarem suas capacidades cognitivas e a desenvolverem análises mais estruturadas e transparentes. Este desenvolvimento representa importante passo na busca por um sistema judicial mais eficiente e confiável, capaz de prevenir erros judiciários e promover decisões mais bem fundamentadas.

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