O valor da Justiça

5 de dezembro de 2003

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Num livro célebre, dez dias que abalaram o mundo, o jornalista John Reed reproduz um diálogo que travou em 1917 com um anônimo revolucionário bolchevique em Lenigrado.

Quem detém o poder na União Soviética? Perguntou Reed, que era amigo de Lenin, mas naquele momento corria perigo de vida. O bolchevique em questão, um camponês que não sabia ler, não conseguia decifrar o teor de um salvo conduto assinado do próprio punho pelo chefe da revolução comunista e hesitava em fuzilá-lo por ser amaricano.

O povo – disse o revolucionário. E nos Estados Unidos?

A Justiça – respondeu Reed que acabou sendo salvo pelo bom senso do anônimo revolucionário. Em lugar de fuzilá-lo, o bolchefique resolveu encontrar alguém que soubesse ler e o impasse chegou ao final feliz, exatamente como nos filmes americanos.

Ética e concorrência

A resposta de John Reed – testemunha ocular também da revolução mexicana do alvorecer do século 20 – é muito atual e útil para a realidade brasileira. Há muitas críticas ao poder judiciário. Algumas são procedentes. Outras não. Mas não é esta a novidade. Quem lê os jornais logo percebe um patente paradoxo. A Justiça está na base da democratização brasileira. Sem a coragem de juízes e promotores públicos, por exemplo, não teriam sido punidos crimes de tortura praticados durante o ciclo militar, não teriam vindo à tona múltiplos crimes de corrupção e não haveria intensa mobilização pela ética na política e na concorrência entre empresas.

Basta citar um exemplo que passou desapercebido. Trata-se dos crimes de pirataria. No início do ano, existiam algo como seis dezenas de liminares na área de combustível que favoreciam empresas anti-éticas. Ou seja, empresas que compravam combustível sem pagar impostos, graças às liminares, e inundavam o mercado com combustível muitas vezes falsificado tirando partido da sonegação como diferencial competitivo. Pois bem: em dezembro, existiam apenas duas liminares. Tudo porque a justiça foi receptiva à argumentação do sindicato das empresas distribuidoras e passou a decidir em bases cada dia mais orientadas por critérios técnicos.

Foi um trabalho colossal. Um entendimento amplo que envolveu tribunais e magistrados do País inteiro. Venceu a sociedade. Perderam os piratas, nome que soa como um eufemismo pois a palavra correta seria falsificadores. Exemplos como este existem se sucedem ao infinito. Outro paradoxo é que sem a ação coerente da justiça, o País não estaria oferecendo segurança ao capital e ao trabalho. Também, deste o ciclo militar a Justiça tem se portada como uma espécie alicerce maior do entendimento, aproximando verdades, dirimindo conflitos e assegurando o direito de reunião e, inclusive de greve. O presidente Luis Inácio Lula da Silva certamente daria um depoimento vivo e educativo do papel da justiça nos tempos da abertura lenta e gradual do presidente Ernesto Geisel.

A lei como rotina

Enfim, democracia, ética e justiça são sinônimos no Brasil desse início de século de tantos conflitos. Se olharmos pela ótica das relações da mídia e da sociedade, vamos encontrar o poder judiciário colocando um ponto final na guerra de dossiês e “grampos” que quando não autorizados legalmente são despojados dessignificado  jurídico e, consequentemente, de informação. O quadro se enriquece com o fortalecimento do direito do consumidor que, caso se sinta lesado tem na Justiça o seu porto seguro.

Existem exceções. Mas a verdade é que o cumprimento da lei passou a ser quase rotina. É muito difícil nos dias atuais uma empresa que encare com seriedade a sua imagem e reputação não pensar duas vezes antes de ferir a lei. Se descobertas, caem no descrédito, sofrem pesados prejuízos. Então qual seria a novidade? O Poder Judiciário tem dificuldades de comunicação. Seus porta-vozes desconhecem os mecanismos de funcionamento da mídia e suas conexões com a opinião pública. Daí, deixarem que os fatos negativos preponderem sobre os fatos positivos.

Não é um caso isolado. O poder público sofre do mesmo mal.

Uma distorção antiga

Da Colônia ao Império, do Império à República, o princípio fundador da formação da opinião pública, por parte do Estado, alicerçou na manutenção de privilégios. O resultado é que se criou um conceito de que as relações entre capital e trabalho têm que ser necessariamente amistosas. Que é perfeitamente normal a “aquisição de certo gênero de vantagens pessoais” por intermédio de indivíduos que exercem funções públicas importantes. Que as fronteiras entre o público e o privado se misturam com naturalidade, ao invés de separar-se nitidamente.

Mesmo quando o Estado começou a modernizar-se a comunicação, arte poderosa e frágil, permaneceu prisioneira do passado. Agora, democratizar a comunicação tornou-se um imperativo permanente porque é o caminho seguro para o diálogo produtivo do Estado consigo mesmo e com o cidadão deixou de ser uma abstração, tornando-se participativo.  O poder judiciário é parte indissociável desses avanços e precisa tornar visível a sua ação construtivo. Como fica evidente no diálogo entre John Reed e o bolchevique que não sabia ler a Justiça é a fonte permanente de liberdade e da valorização da vida.