Orgulho na veia: Doação de sangue por LGBTS e a proibição de tratamento discriminatório

8 de junho de 2020

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No mês de maio de 2020, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5543, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), contra dispositivos de normativas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que excluíam do rol de habilitados para doação de sangue os “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes nos 12 meses antecedentes”.

Em linhas gerais, a regulamentação citada impedia, de forma permanente, que homens homossexuais e bissexuais com vida sexual minimamente ativa doassem sangue, mesmo que possuíssem apenas um parceiro sexual e sempre mantivessem relações sexuais seguras, com o uso de preservativos.

Prevaleceu na Corte o entendimento de que a proibição se revelava discriminatória, na medida em que se fundamentava no conceito de grupo de risco, com espeque na orientação sexual do indivíduo, e não em comportamentos de risco. Consequentemente, o STF entendeu pela inconstitucionalidade das normas por violação aos princípios da dignidade humana, aos direitos da personalidade à luz da Constituição e aos direitos fundamentais de liberdade e de igualdade.

A Associação Nacional das Defensoras e dos Defensores Públicos (Anadep) participou do processo na qualidade de amici curie, tendo ingressado na ação a pedido de sua Comissão de Diversidade Sexual e de Identidade de Gênero.

A atuação da Defensoria Pública nesta ADI, em sua base teórica, deriva da obrigação constitucional da instituição de promover a defesa dos direitos humanos e de exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos de grupos sociais vulnerabilizados que mereçam especial proteção do Estado, tal como a população LGBT.

Por outro lado, a necessidade de participar do debate, contribuindo para a correção da citada distorção inconstitucional, decorreu do contato diário de defensoras e defensores públicos com relatos de pessoas que se sentiram constrangidas e discriminadas ao receberam a negativa de doação de sangue em razão do simples modo como expressam sua afetividade, mesmo sem terem apresentado nenhum comportamento classificável como conduta de risco.

Dito isso, para a melhor elucidação do tema, faz-se necessária a análise do voto do relator, Ministro Edson Fachin, o qual foi seguido por outros seis ministros, mesmo porque é imprescindível afastar eventuais questionamentos quanto à segurança da transfusão de sangue, o que, por certo, nunca se pretendeu diminuir.

O relator, ao iniciar sua digressão, aduz que a possibilidade de exercício do altruísmo sob a forma de doação de sangue é inerente à condição humana e que, por isso, a exclusão de qualquer grupo dessa perspectiva deve estar embasada em ampla, racional e aprofundada justificativa. Para o Ministro, portanto, a exclusão de determinada parcela da população desse exercício de solidariedade é exceção, sob pena de “negar-lhes, injustificadamente, a possibilidade de exercício de empatia e da alteridade como elementos constitutivos da própria personalidade e de pertencimento ao gênero humano”.

Chama-se atenção, quanto ao ponto, para o fato de as pessoas LGBTs, em razão da restrição praticamente proibitiva, não estarem autorizados a doar sangue nem mesmo para seus próprios pares ou companheiros em caso de extrema necessidade, a menos que negassem a sua orientação sexual ao procurar determinado banco de sangue. Sendo assim, as normas representariam verdadeira violação ao princípio da dignidade humana em seus aspectos autonomia e reconhecimento e, por outro lado, significariam “o completo aniquilamento de outra faceta da própria personalidade – o exercício da liberdade sexual”.

Ademais, para o relator, as regras impugnadas contribuíam para que permanecesse incutida na sociedade a pecha de sexualidade desviante de homens homossexuais e bissexuais e, por extensão, de toda a comunidade LGBT, e de que o que “se reputa como a sexualidade normal seria inalcançável pelas enfermidades transmissíveis pelo sangue, propagando não apenas preconceito, mas as próprias doenças cuja transmissão que se almeja evitar”.

Isso porque, para um homem heterossexual, basta para sua habilitação à doação de sangue que tenha feito sexo com parceira fixa nos 12 meses anteriores à doação, ainda que sem o uso de preservativo, enquanto que, para um homem homossexual ou bissexual, se exigia a total abstinência sexual por esse período. Considerando a existência de relações estáveis e monogâmicas, qual a justificativa para a exclusão dos homens homossexuais e bissexuais?

Assim, para se evitar danos à coletividade e aos eventuais receptores de sangue mostra-se suficiente que se apliquem aos homens homossexuais e bissexuais as mesmas regras e exigências colocadas às demais pessoas heterossexuais, independentemente de gênero ou de orientação sexual, assentando o Ministro que “as normas reguladoras da doação de sangue devem estabelecer exigências e condicionantes baseadas não na forma de ser e existir em si das pessoas, mas nas condutas por elas praticadas”.

Para o relator, em conclusão, “se é possível que o quadrante normativo da política pública garanta precaução e segurança a partir de limitações baseadas em condutas, as restrições existentes devem recair sobre estas, e não sobre as expressões e orientações existenciais que constituem a personalidade dos sujeitos candidatos a doadores de sangue”.

A precaução e a proteção dos bancos de sangue devem recair, nesses termos, em previsões que não discriminem o doador em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Some-se a tais argumentos, especialmente no que tange à detecção do vírus do HIV e da hepatite, que, atualmente, houve uma significativa redução da janela imunológica. Com efeito, este período, que em épocas anteriores já foi de seis a oito semanas, passou para apenas 12 dias, em razão do atual teste utilizado em todos os bancos de sangue do País, qual seja, o teste do ácido nucleico – NAT, conforme Portaria nº 2.712/2013 do Ministério da Saúde.

Finalmente, aduz o relator, Ministro Edson Fachin, que a inconstitucionalidade das normas atacadas pelo processo em questão é reafirmada pela aplicação de diversas normativas internacionais de direitos humanos, tais como a Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância, concluindo, assim, pela necessidade de afastamento das regras do ordenamento jurídico brasileiro.

Vale citar, ainda, que diversos países não fazem diferenciação ou preveem critérios específicos para a exclusão de homens que mantêm relações sexuais com outros homens da possibilidade de serem doadores de sangue, como Argentina, Chile, Peru, Espanha e Itália.

Não é demais destacar, por outro lado, que não se pode olvidar, neste campo de discussão, da constante necessidade de incentivo à doação de sangue e de aumento da quantidade de doares em razão do constante déficit nos estoques de diversos bancos de sangue de todo o País.

O reconhecimento da inconstitucionalidade da vedação à doação de sangue pela população LGBT veio em boa hora e a tempo das comemorações do dia 28/6, data em que é celebrado o Dia do Orgulho LGBT, marco da luta pelos direitos da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e de todas as demais identidades relacionadas à diversidade sexual e à identidade de gênero.

Cada etapa na busca pela igualdade de direitos e na consolidação de proibição de condutas discriminatórias deve ser celebrada em honra de todas e todos que, de maneira corajosa e histórica, iniciaram esse processo de luta contra a violência real e simbólica no Bar Stonewall Inn, em Nova Iorque, no ano de 1969.

No entanto, a decisão do STF representa uma vitória não só para toda a população LGBT, que, de fato, é a principal interessada na questão, mas, também, para toda a sociedade brasileira que deu mais um passo na direção da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e de quaisquer outras formas de discriminação, conforme determina a Constituição Federal.

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