Orpheu Salles, uma vela acesa

3 de maio de 2021

Presidente do STF / Membro do Conselho Editorial

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A história do Direito é construída por grandes homens públicos, que gradativamente engrandecem as instituições, permeando o serviço público de valores elevados, como a moralidade, a transparência e a solidariedade. Ao seu empenho desmedido corresponde sua herança indelével, que inspira as gerações vindouras.

Orpheu Santos Salles é um desses nomes marcantes, que, há cem anos, vinha ao mundo para aprimorá-lo. Um “idealista sem medo e sem mancha”, nas palavras do notório constituinte Bernardo Cabral, por ocasião do aniversário de 90 anos do homenageado, em destacada edição da Revista Justiça & Cidadania (nº 135), de novembro de 2011.

Etimologicamente, a palavra homenagem, do provençal homenatge, é um ato público de gratidão – e a gratidão, segundo William Shakespeare, é o único tesouro dos humildes. Agradecer eleva-nos a alma e a preenche de justiça, virtude que deve ser perseguida e, sobretudo, sentida por todos aqueles que integram o Poder Judiciário.

Orpheu construiu uma biografia respeitável, permeada por prestígio e admiração. Ainda estudante, foi convidado a integrar o gabinete do então Presidente Getúlio Vargas. Em 1954, declarou a primeira greve legal do país, enquanto chefe da Delegacia do Trabalho em Santos (SP); no ano seguinte, tornou-se assessor trabalhista e sindical da Presidência da República. Com o advento da ditadura militar, foi preso e enviado ao Navio Raul Soares, nefasta experiência que descreveu nos versos do poema “O navio presídio”. Após um mandato como vereador de Maricá (RJ), em 1992, migrou da política para o elegante jornalismo da Justiça & Cidadania.

Conhecida por todos do meio jurídico, a Revista é responsável por aproximar estudantes e operadores do Direito dos principais personagens da vida pública nacional, trazendo entrevistas e artigos da maior relevância, sempre atentos aos desafios atuais na efetivação dos direitos fundamentais que embelezam a Constituição Federal. Não obstante a dimensão continental de nosso País, ouve-se a voz de membros dos mais diversos tribunais, em postura de abertura para o diálogo construtivo e plural. O acabamento fino desse empreendimento informativo são as prestigiadas edições de entrega dos troféus Dom Quixote, voltado a homenagear cidadãos notáveis que batalham em prol da ética e da moral, e Sancho Pança, láurea prestada aos que se mantém fiéis aos princípios.

É bonito perceber como Tiago Salles, atual editor executivo da Revista, continua a brilhante caminhada de seu pai, Orpheu, seguindo seu exemplo como grande parceiro da magistratura. Não um parceiro de forma apenas graciosa, mas operativa, elevando a imagem da jurisdição através das publicações concedidas a ministros, desembargadores, juízes, membros do Ministério Público, defensores públicos, advogados. Enfim, de todos os que atuam na busca pela justiça.

Orpheu Salles foi um precursor do patrimônio futuro da humanidade, que não será o ter, mas o ser e, especialmente, o saber. A Revista Justiça & Cidadania, permeada por seu espírito laborioso, auxilia sobremodo nesse nobilíssimo desígnio da cultura e da educação.

Inovação e altivez, marcas de seu eterno fundador, são predicados inerentes também à magistratura. O Direito e o Judiciário não podem ser museus de princípios, devendo acompanhar os novos instrumentos e a modernidade, em prol da melhoria do serviço prestado ao cidadão. Apesar da adversidade que denota o momento presente, muitos têm sido os passos dados em relação ao futuro, como ilustram a implementação dos julgamentos virtuais e por videoconferência, sempre respeitando as garantias do contraditório e da ampla defesa, e o aprimoramento do sistema de precedentes judiciais, pela via legal (com o advento do atual Código de Processo Civil) e administrativa (por meio de iniciativas conjuntas de tribunais, capitaneadas pelo Conselho Nacional de Justiça).

Naquela edição comemorativa de uma década atrás, o próprio homenageado escrevia um artigo intitulado “O sonho com Deus”. O belo diálogo confidenciado pelo autor terminava com um recado do Criador:

Orpheu: não há como esmorecer. Você é um predestinado, e como tal, tem que continuar, com ânimo, lutando com coragem e com idealismo, e prosseguindo como uma vela acesa, de pé, iluminando até o fim os passos da sua vida, cheia de percalços, mas também de importantes conquistas e reconhecidas glórias”.

A missão foi cumprida com tal maestria que a chama, para a alegria do Poder Judiciário brasileiro, continua a fumegar.