Os dez anos da Reforma do Judiciário

18 de dezembro de 2014

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Flavio-CrocceEm entrevista exclusiva, o Secretário Nacional Flavio Crocce Caetano fala sobre as conquistas e os novos desafios da Secretaria de Reforma do Judiciário neste momento em que se completa dez anos da aprovação da Emenda Constitucional 45.

Há uma década, a Emenda Constitucional (EC) no 45, de 30 de dezembro de 2004, deu forma à reforma do Poder Judiciário, prevista na Constituição Federal de 1988. Com isso, foram implementadas importantes inovações, voltadas aos objetivos do aumento da transparência e da eficiência do Judiciário, embora a EC no 45/2004 não tenha encerrado o processo de ajustes nesta estrutura.

Em 2003, o governo federal criou a Secretaria de Reforma do Judiciário, no âmbito do Ministério da Justiça (SRJ-MJ), com o objetivo de promover, coordenar, sistematizar e angariar propostas referentes à reforma do Judiciário. Trata-se de órgão de articulação entre o Executivo, o Judiciário, o Legislativo, o Ministério Público, governos estaduais, entidades da sociedade civil e organismos internacionais apto a propor e difundir ações e projetos de aperfeiçoamento do Poder Judiciário.

Em um primeiro momento, a SRJ canalizou esforços para promulgar a EC no 45, de 2004, que serviu como marco normativo a nortear a reforma do Judiciário e das instituições do sistema de justiça. No segundo momento, a Secretaria concentrou esforços para aprimorar o sistema de justiça, por meio da atualização normativa e compreensão, aprofundada, sobre o acesso à justiça no Brasil. Em uma terceira fase, experimentada atualmente, os desafios são no sentido de projetar políticas públicas de acesso à justiça, qualificando e garantindo a efetividade do sistema.

A SRJ tem à frente o Secretário Nacional Flavio Crocce Caetano, empossado em 13 de janeiro de 2012. Mestre em Direito Administrativo e doutorando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), instituição na é qual é professor de Direito Administrativo e Direitos Humanos é ex-chefe de Gabinete do Ministro da Justiça, ex-presidente do Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP), e foi coordenador jurídico da campanha 2014 à reeleição da presidente Dilma Rousseff. Quando assumiu o cargo, o Secretário anunciou que sua prioridade no cargo seriam os projetos voltados a garantir maior celeridade à Justiça. Nesta entrevista, ele fala sobre os dez anos da Secretaria e revela os principais ganhos desde sua instituição, em 2003.

Revista Justiça & Cidadania – Neste ano, completa-se uma década da Reforma do Judiciário. Como se deu o processo de aprovação da EC no 45?
Flávio Crocce Caetano – A Reforma do Judiciário, que é fruto de ampla negociação, aconteceu em dezembro de 2004 – depois de 12 anos tramitando no Congresso Nacional. Naquele momento em que se aprovou a Reforma, esta foi considerada como sendo a “reforma possível”, porque foi fruto de uma negociação que aconteceu dentro do parlamento, do legislativo e também com todo o Sistema de Justiça.

JC – Qual a sua avaliação sobre os ganhos que a Reforma trouxe para o Poder Judiciário?
FCC – Dois grandes ganhos são a criação dos dois Conselhos – o Conselho Nacional da Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Tanto um como o outro são órgãos fundamentais para planejamento das instituições no Brasil. Também trouxe dois novos institutos processuais que eram necessários para diminuir o número de processos no Supremo Tribunal Federal – no caso, a súmula vinculante e a repercussão geral do recurso extraordinário. Contribuiu também no fortalecimento da Defensoria Pública e, pela primeira vez, se instituiu o direito fundamental da duração razoável do processo, seja da esfera administrativa seja na judicial. Isso é muito importante. Houve, ainda, o deslocamento da competência para a Justiça Federal para julgar crimes de violação a direitos humanos. Além de também regrar como os tratados internacionais de direitos internacionais humanos ingressam no ordenamento jurídico brasileiro.

Acho que esses foram os grandes ganhos da Reforma do Judiciário, que buscava, de um lado, que tivéssemos maior atenção para o acesso à Justiça e, de outro lado, que se garantisse maior eficiência para os julgamentos. E há também um terceiro aspecto: que se possibilitasse maior participação da sociedade em relação à Justiça por meio dos Conselhos.

JC – O que o senhor destacaria, entre esses aspectos, como pontos fundamentais à promoção dos direitos fundamentais, celebrados de modo mais amplo pela primeira vez na Carta de 1988?
FCC – Primeiro destaco que a Constituição Federal de 1988 é um documento feito em um momento pós regime de exceção. Portanto, a intenção do constituinte era colocar o máximo de direitos fundamentais e classificar esses direitos como cláusulas pétreas para evitar que ocorresse qualquer retrocesso. Após esse momento, ela passa a receber algumas emendas. A EC no 45 é uma emenda que também vai agregar aos direitos fundamentais. Ela considera direito fundamental a duração razoável do processo. Isso é grande avanço, porque a Justiça, por definição, deve ser sempre contemporânea aos fatos. Não é correto o jargão que diz que a “Justiça tarda, mas não falha.” A justiça tardia é falha. Parece-nos que isso foi grande ganho. Porque quando você coloca isso como direito fundamental, você exige que o poder público atenda esse direito. Esse direito fundamental que foi trazido para a Constituição, da duração razoável do processo, é algo que já existe nas constituições estrangeiras e o próprio Tribunal Europeu de Direitos Humanos tem julgado vários casos em que não se respeita o prazo razoável da duração do processo. Então, parece-me que, a partir da EC no 45, este é um direito que tem de se irradiar por todas as mudanças de códigos que forem feitas, todo processo tem de ter isso por base.

JC – Outra questão que tem sido um ponto de trabalho da Secretaria é o fortalecimento da Defensoria Pú­blica. Isso está inserido no âmbito dos direitos fundamentais, certo?
FCC – Sim, concordo plenamente. Eu acredito que na EC no 45 nós tivemos o começo disso e agora foi promulgada a EC no 80, que é a emenda que garante a autonomia da Defensoria Pública. Então, se há dez anos nós garantimos um fortalecimento, agora nós concretizamos esse fortalecimento com a autonomia. Em um Sistema de Justiça tem de haver equilíbrio entre todos os atores, entre todas as instituições. Parece-nos que Defensoria, Ministério Público e Magistratura, além da Advocacia, devem estar sempre no mesmo pé. Não pode haver desequilíbrio entre as instituições da Justiça.

JC – E este é um trabalho que o senhor vem reforçando desde que assumiu a Secretaria?
FCC – Sim. No que diz respeito ao acesso à justiça, nós entendemos que só podemos falar em um país sem miséria se garantirmos os direitos fundamentais; e um deles é o acesso à justiça. E eu não tenho isso sem uma Defensoria Pública forte. É fundamental que tenhamos em nosso país, em todas as comarcas onde houver um juiz e onde houver um promotor de justiça, pelo menos um defensor público. Hoje, há um profundo desequilíbrio. Nós temos no Brasil cerca de 18 mil juízes, aproximadamente 12 mil promotores e apenas 6 mil defensores públicos.

JC – E por que existe essa diferença?
FCC Existe porque a Defensoria Pública é uma instituição muito enfraquecida. Ela ganhou força com a Carta de 1988, quando foi instituída, foi reforçada com a emenda de 2004, mas vem agora com a Emenda no 80 a ter uma robustez que não tinha antes. E passa a obrigar os estados a não só instituírem como garantirem autonomia às defensorias. Com isso, acredito que agora teremos um equilíbrio.

Quais são projetos da Secretaria para os próximos anos?
FCC – Quando olhamos o Sistema de Justiça hoje percebemos que há desequilíbrio entre as instituições; portanto, falta acesso à justiça. Percebemos que a Justiça ainda é muito lenta: nós temos, em média, um prazo de dez anos para duração de um processo no Brasil. Além de ser muito lenta, ela está muito congestionada. Nós temos excesso de processos. Os últimos números no CNJ mostram que, no Brasil, em 2013, tramitaram 95 milhões de ações judiciais. É uma ação para cada duas pessoas. É como se todos os brasileiros estivessem na Justiça, porque um é autor e o outro é réu. Desse modo, os tribunais não dão conta, porque conseguem julgar apenas 30% daquilo que chega. Precisamos buscar soluções para isso. A nosso juízo, a atuação da Secretaria tem de trabalhar com quatro eixos ou quatro frentes.

JC – Quais seriam essas frentes de trabalho?
FCC – A primeira delas é combatermos a cultura do litígio. Temos de trazer para o Brasil a cultura do consenso. Nós gostamos de chamar de “justiça do diálogo”, que são os meios alternativos – mediação, arbitragem e conciliação. O Brasil usa muito pouco isso. Nos países que utilizam esses meios há uma taxa de êxito entre 70% a 80%. Se conseguirmos atingir esses números no Brasil, isso reduzirá drasticamente o número de processos.

JC – Não seria uma questão de tempo e mudança de cultura?
FCC – Não apenas isso. Você precisa ter leis para isso. Por essa razão, nós levamos ao Congresso um Projeto de Lei sobre mediação, que foi aprovado no Senado e está em fase de aprovação na Câmara. É importante ter uma lei que diga como deve ser essa mediação. É importante também que essa mediação seja fora da Justiça, dentro dela e também dentro do poder público. O poder público hoje é o grande litigante do Brasil, com 51% das ações que estão na Justiça. É uma mudança de cultura, mas que depende de uma política pública transversal, com todos os órgãos participando em conjunto.

JC – Uma mudança de cultura que passa também pelos bancos das faculdades de Direito?
FCC Exatamente. É a razão pela qual nós criamos a Escola Nacional de Mediação e Conciliação para ajudar a difundir essa cultura do consenso. Tem cursos para o Sistema de Justiça, para juízes, promotores, defensores e advogados, como também para professores, estudantes, prepostos de empresas privadas e para os governos.

JC – E qual é a segunda frente de atuação?
FCC – O segundo eixo é o do processo eletrônico, que também é uma mudança de cultura. De sair da cultura do papel para a virtual. O Brasil já tem duas grandes experiências de sucesso: uma é com a declaração do imposto de renda e outra é com as eleições. Esses dois modelos são considerados exemplares para o mundo, e nós acreditamos que o Brasil tem plenas condições de sair da cultura do papel. Estamos no meio desse processo e queremos incentivá-los cada vez mais, pois isso garante mais transparência e eficiência. Onde o processo eletrônico funciona bem há uma média de diminuição do prazo de duração de 60%.

JC – E quanto aos demais eixos?
FCC – O terceiro está nas modificações legislativas. O momento agora é de mudança do Código do Processo Civil, Código do Processo Penal, Código de Defesa do Consumidor e Código Comercial. Nós temos a certeza de que quaisquer mudanças que sejam feitas nessas normas devem respeitar dois princípios como base: o primeiro, é do acesso à Justiça; o segundo, da duração razoável do processo. As alterações normativas têm de garantir que as pessoas possam ir à justiça, mas também que o processo seja mais célere, com menor número de recursos, com mais oralidade, mais informal. E também, óbvio, todo processo privilegie a possibilidade com consenso. O quarto eixo é o estímulo à profissionalização na gestão do Sistema de Justiça. Não se pode querer que, com esse acúmulo de processos, um juiz seja responsável por julgar e administrar. É impossível. Nós temos de ter gestão eficiente para que o juiz possa se dedicar a julgar, sem dividir seu tempo com a administração do tribunal. Além disso, tanto o juiz, como o defensor, o promotor e o advogado são capacitados para atuar na esfera jurídica, mas não têm formação para a gestão. E quando não temos isso, por mais bem intencionados que sejamos, não saberemos fazer isso bem. Temos de deixar que profissionais da área possam gerenciar, para que cada um de nós das carreiras jurídicas possa desempenhar a sua atividade primordial. Enfim, todos esses eixos fazem parte do grande objetivo principal que é garantir o acesso à Justiça.

JC – A própria Secretaria completou uma década em 2013. Gostaria que o senhor também destacasse as principais conquistas nesse período.
FCC – Acho que a Secretaria foi grande iniciativa do presidente Lula (Luiz Inácio Lula da Silva) e do ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos. Duas ideias principais permeavam aquele momento em que se decidiu criar a Secretaria. Primeiro, o entendimento que o Sistema de Justiça era muito fechado, muito longe da população, muito ensimesmado, muito hermético, ou seja, as pessoas não conheciam a Justiça. Era importante abrir para que pessoas passassem a conhecer, inclusive para opinar e sugerir melhorias. O segundo princípio, que o presidente Lula defendia muito fortemente, é que deve haver sempre uma paridade de armas. Era estranho que o Estado estivesse investindo recursos na Magistratura, no Ministério Público, mas não investisse da mesma forma na Defensoria. Perguntava-se: como o Estado gasta com a acusação, mas não gasta com a defesa? Tinha algo desproporcional. Então, com esses princípios, criamos uma secretaria que, em colaboração com o Sistema de Justiça, pudesse discutir esses assuntos. O ministro Marcio Thomaz Bastos é o grande mentor, foi ele quem batizou a Secretaria, por entender que era importante para o País. Houve muita resistência no início, mas com o tempo o ministro, o primeiro secretário e o presidente Lula conseguiram superar esse constrangimento. Na época, se dizia que o Executivo ia querer controlar o Judiciário. Então, eu acho que a primeira grande conquista foi mostrar que o tema do Sistema de Justiça interessa a todos. Em segundo lugar, conseguiu aprovar a EC no 45 com todas as inovações que já mencionei. E acho que aqui merece ser dada ênfase especial à criação dos dois Conselhos. E, em terceiro lugar, a partir da emenda foram firmados dois pactos republicanos para a melhoria do Sistema de Justiça no Brasil. Pacto republicano é algo feito pela chefia do Executivo, do Judiciário e do Legislativo, e se conseguiu que os três poderes unidos elaborassem dois pactos com iniciativas que deveriam ser adotadas com urgência para melhorar a Justiça no Brasil. Acho que esses são grandes legados, grandes conquistas. Há ainda um quarto item que deve ser mencionado, que é a instituição de uma política pública de acesso à Justiça diretamente pela população, que é a chamada Justiça Comunitária. A partir dela nós conseguimos levar a 20 estados do Brasil, 98 núcleos de Justiça Comunitária, para que seja feita a mediação de conflitos por pessoas da própria comunidade. São pessoas capacitadas para mediar conflitos. Parece-me que essa também é uma grande conquista desse período, porque mostra que é possível resolvermos os conflitos de modo alternativo ao litígio. Para finalizar, quero dizer que a ideia de criar a Secretaria transformou-se em um marco de uma política pública bem-sucedida. Quando nós falamos fora do Brasil que existe uma secretaria como esta, todos aplaudem. O Banco Mundial reconhece essa iniciativa como exemplar. Dentro do Mercosul, todos os Estados que o compõem, também pensam da mesma forma. E nós estivemos recentemente na OEA, que também reconheceu isso. A Secretaria é um órgão dentro do Poder Executivo, que não é do Sistema de Justiça, mas que consegue dialogar com todo o Sistema e preparar políticas públicas em conjunto. Algo que hoje é fundamental.

As origens da reforma do Judiciário estão na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no 96/1992, de autoria do deputado Hélio Bicudo, apresentada à Câmara dos Deputados em 26 de março de 1992, sendo aprovada após 13 anos de tramitação, com significativas alterações no texto original. O Poder Judiciário, com as alterações da EC no 45, passou a contar com os seguintes órgãos (art. 92, I a VII): Supremo Tribunal Federal, Conselho Nacional de Justiça, Superior Tribunal de Justiça, Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais, Tribunais e Juízes do Trabalho, Tribunais e Juízes Eleitorais, Tribunais e Juízes Militares e Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios. Sendo o Conselho Nacional de Justiça o único deles a ser criado pela Emenda. Do CNJ, que tem sede em Brasília/DF, trata o art. 103-B, da Constituição.