Edição

Os riscos da modernidade na visão jurídica luso-brasileira

20 de setembro de 2016

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Seminario Verão1Seminário de Verão da Universidade de Coimbra reuniu os maiores especialistas de ambos os países para dois dias de intensos debates sobre os reflexos da globalização na atualidade. Terrorismo, crise econômica, situação dos refugiados, segurança pública e mudanças sociais foram alguns dos temas abordados.

Em 14 de julho, um caminhão conduzido por terroristas invadiu a área de celebração pelo dia da Queda da Bastilha, em Nice, França, matando quase 90 pessoas e ferindo outra centena. Em março, uma ação suicida em Bruxelas, Bélgica, fez explodir duas bombas que mataram 35 pessoas. Em novembro de 2015, a capital francesa e a cidade de Saint-Denis foram arrasadas por outra série de atentados. Retrocedendo mais um pouco, encontramos situações semelhantes em diferentes países. E voltando no tempo até 11 de setembro de 2001, talvez encontremos, nos atentados às torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, Estados Unidos, um marco para a atual situação de risco que vemos no mundo de hoje.

Poucos dias antes da tragédia de Nice, em 5 e 6 de julho, o Seminário de Verão da Universidade de Coimbra, em Portugal, tratou deste tipo de risco global e de muitos outros que vêm promovendo mudanças radicais nos modelos sociais que conhecíamos até bem pouco tempo. A 18a edição do evento teve como tema “O Papel do Direito nos Desafios Globais: Imigração, Clima e Democracia Fiscal”, e contou com a participação das maiores autoridades jurídicas e acadêmicas de ambos os países para abordar temas relevantes dos dois lados do Atlântico, por meio do debate de ideias e de posicionamentos, e com enfoque nos institutos, legislações e políticas relacionadas ao Judiciário. O evento foi organizado pela Ipeja, Aeec e FGV Projetos, Instituto de Pesquisa e Estudo Jurídicos Avançados (Ipeja) e Associação de Estudos Europeus de Coimbra (Aeec), ocorrendo na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Fduc).

Esta edição teve orientação acadêmica do ministro Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), e do ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A organização ficou a cargo do professor Rubens Lopes da Cruz, presidente do Ipeja, de Cristiane Frota, diretora Administrativa da mesma entidade, e de Sidnei Gonzalez, diretor de Mercado da FGV Projetos.

Além de Rubens Lopes da Cruz, do Ipeja, a abertura do evento contou com pronunciamentos de João Gabriel Silva, reitor da Universidade de Coimbra; Rui Manuel de Figueiredo Marcos, diretor da Fduc; Sérgio Quintella, vice-presidente da Fundação Getúlio Vargas; e Manuel Carlos Lopes Porto, presidente da Aeec.

Em sua apresentação, o professor Rui Manuel lembrou que não se configura tarefa difícil enumerar os quatro desafios que ostentam as marcas de outras tantas crises. A crise econômica financeira, a crise dos refugiados, a crise originada pelo governo britânico e a onda terrorista. “A Europa, com tantas guerras andadas, talvez devesse estar na condição ótima para entender o drama dos refugiados. Mas o ponto sensível é que também tremendas agruras batem à nossa porta e não pedem licença para entrar. Hoje, vão desfilar algumas notabilidades que discutem e pensam o papel do Direito nos desafios globais. Todos nós, perante medos globais que escapam a qualquer controle, temos nas mãos o receio, fazendo com que este seja maior que o brilho. Por certo, este seminário, através de contributos prestigiosos, ajudará a abrir a balança das reflexões em torno dos desafios globais.”

O primeiro painel do dia teve moderação de Cesar Cunha Campos e a primeira palestra foi apresentada pelo professor doutor José Joaquim Gomes Canotilho, catedrático jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Ele fez uma revisão da literatura relacionada ao tema do seminário, citando as principais obras que devem ser de leitura obrigatória daqueles que se propõem a investigar o moderno tema dos riscos da globalização. Ele lembrou que fazem parte desta ‘prateleira’ de referências não apenas autores contemporâneos, como o sociólogo alemão Ulrich Beck, falecido no ano passado, mas que deixou um legado consistente de estudos, como também as clássicas obras que todo e qualquer jurista deve ter em suas próprias estantes. “Ulrich Beck nos ensinou o que é uma sociedade de risco, e quem não leu suas obras não sabe o que é o mundo contemporâneo. Em seu último livro, que acabou ficando incompleto, ele aponta que lidamos não apenas com a mudança do mundo, mas com o aparecimento do risco específico. Comecei a ver os livros e observar os problemas que os juristas estão hoje a discutir e que são o tema deste seminário: o valor e a capacidade do Direito em um mundo globalizado. Olhando para estes livros, podemos compreender o caleidoscópio dos temas e problemas agitados pelas mais diversas retóricas. Todos nós gostamos muito de falar de doutrinas e dos métodos, quer no direito público, quer no direito privado. Estou lendo ‘A Doutrina do Método no Direito Europeu’. Acho que uma boa parte do direito europeu precisa de método, de doutrina e dessa investigação. E muitas obras referentes ao direito europeu têm uma diversidade, até porque existem várias pessoas, vários grupos de trabalho a cultivar essas questões, que têm contribuído com uma progressiva densificação do método e da dimensão metodológica no direito europeu.”

Em sua palestra, o ministro Marco Aurélio Mello do STF reforçou a ideia de que as questões globais de nosso tempo são muitas. “Vivemos tempos estranhos e difíceis. O constitucionalismo liberal, a democracia e a liberdade de mercado saíram vitoriosos no fim do século XX. Neste século, contudo, tem-se assistido a crises econômicas e financeiras em cadeia. Em boa parte do mundo, a alta da dívida pública e a incapacidade de autofinanciamento por empresas revelam período de baixo crescimento, quase a es­tagnação do sistema capitalista contemporâneo. O au­mento das desigualdades sociais e a impossibilidade de os Estados atenderem às demandas da população excluída de bens essenciais têm ocasionado crises sociais sérias. A capacidade de os governos manterem a ordem vem sendo desafiada. Eclodem distúrbios de larga escala, mesmo em democracias consolidadas.”

Ele também mencionou os conflitos étnicos e religiosos locais, que podem produzir embates globais; a superpopulação mundial, que pode levar o planeta à escassez de alimentos e energia; e também as mudanças climáticas, um perigo já presente no globo. “Ao lado dessas adversidades contemporâneas, surge aspecto bastante positivo – o acesso das pessoas às informações. A quadra atual caracteriza-se pelo conhecimento dinâmico e tecnológico, por desafios próprios à modernidade, pelas alterações cada vez mais rápidas e profundas decorrentes do avanço da tecnologia. Convivemos com velocidade e transparência de informações nunca experimentadas. A publicidade dos fatos, sempre bem-vinda do ponto de vista normativo, tornou-se inevitável.”

O ministro também comentou que, com a chegada da internet às residências, revelaram-se novos cenários sociais, educacionais e comerciais. Como consequência direta, mudam a sociedade, os comportamentos humanos e as instituições. “O Direito, nos mais variados ramos, é influenciado por essa realidade, à qual deve se ajustar e, a um só tempo, conformá-la. A relação é de reciprocidade, ainda que assimétrica, a depender da matéria e dos valores em jogo. Nesse sentido, impõe-se refletir sobre a evolução do Direito para atender à sociedade digital.”

Para o ministro, a Era Digital acarreta outro desafio: a violência contra a identidade e a cultura dos povos. “Organizações criminosas fundamentalistas como o Talibã, a Al-Qaeda e o Estado Islâmico impõem o terror e ameaçam a liberdade. Em nome de Maomé e das palavras do Alcorão, segundo interpretação própria, esses grupos voltam-se contra todos e quaisquer costumes e crenças que lhes pareçam ofensivas. Promovem violência religiosa e a mais absoluta aversão aos que não partilham das crenças fundamentalistas.”

De acordo com Marco Aurélio Mello, os ataques violentos promovem a perda da identidade cultural dos povos de outra forma também: os contextos de violência obrigam as pessoas a saírem dos territórios de origem, a abandonar práticas e culturas próprias, provocando uma das maiores crises humanitárias de todos os tempos. “De acordo com o relatório ‘Tendências Globais’ da Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para Refugiados (Acnur), divulgado em 20 de junho de 2016, o deslocamento forçado alcançou recorde global, atingindo 65,3 milhões de pessoas. Desse total de pessoas, 40,8 milhões deixaram suas casas, mas continuam dentro das fronteiras do respectivo país, 21,3 milhões são refugiados ao redor do mundo e 3,2 milhões aguardam resposta à solicitação de refúgio.”

E ficou no ar a pergunta: em que o Direito pode contribuir para minimizar os impactos desses desafios globais, em especial os ataques aos direitos humanos decorrentes da intolerância étnico-religiosa de toda espécie? Disse o ministro: “Respostas, tenho certeza, serão oferecidas pelos ilustres conferencistas e palestrantes deste Seminário de Verão da Universidade de Coimbra. Estou certo de que a excelência das exposições provocará reflexões acerca dos impasses e as iniciativas que os Estados, sem perderem os traços essenciais de soberania, poderão adotar na solução dos grandes problemas humanitários e ameaças às liberdades de nosso tempo. Qualquer conclusão deve passar pela instrumentalidade do Direito, presentes os direitos humanos. No campo do reforço das garantias e da sempre afirmação da fundamentalidade de posições, normas jurídicas internas e internacionais devem servir como meios flexíveis e eficientes para que Estados dialoguem e cooperem entre si, sobre base solidária, em torno dos interesses comuns de liberdade democrática, bem-estar e paz social. Que as melhores soluções sejam encontradas por meio de amplo debate e tendo como fim os direitos humanos.”

Constitucionalismo

O segundo módulo, com o tema “Desafios de um constitucionalismo global”, teve moderação do ministro do STJ Humberto Martins e palestra do ministro do STF Teori Zavascki, além de Vital Moreira, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e o doutor Paulo Rangel, deputado de Portugal no Parlamento Europeu.

Convidado pelos organizadores, o editor-executivo da revista Justiça & Cidadania, Tiago Salles, prestigiou o evento e aproveitou este momento para destacar oportunidade enriquecedora de estar entre os maiores nomes do Judiciários brasileiro e português. Ele fez o lançamento da edição 192 da publicação, que traz uma homenagem ao ministro Humberto Martins. “Ele é um desses homens raros que sempre desejam o bem e são bons em si mesmos. Mas esses homens e mulheres não são raros aqui nesta sala hoje”, destacou. O ministro fez um agradecimento breve dizendo que “a gratidão é a memória do coração”. “Serei sempre grato e a minha missão é sempre retribuir cada vez mais, com humildade, prudência e sabedoria, para que o Judiciário do Brasil seja cada vez mais viável.”

Em sua apresentação, o ministro Teori Zavascki começou dizendo que um dos desafios do constitucionalismo, muito presente na atualidade das repúblicas portuguesa e brasileira, é justamente o papel do judiciário em tempos de crise, mais especificamente a velha questão do chamado ativismo judicial. “Compreendemos com isso a ocupação do espaço do poder judiciário sobre áreas que normalmente são de competência de outros poderes, especialmente do Legislativo e do Executivo. Isto envolve, em primeiro lugar, a questão da divisão entre os poderes, da harmonia e do espaço legítimo de cada poder.
Envolve também o princípio democrático. Os juízes, nós sabemos, no Brasil e em Portugal, não são eleitos diretamente pelo povo. Exercem a sua função constitucionalmente, mas de outros modos. Envolve o princípio da legalidade, pois quem tem legitimação constitucional para editar normas é o Poder Legislativo. Envolve, por outro lado, o princípio do acesso ao Poder Judiciário. Então, todos esses princípios constitucionais, no fundo, formam esse palco por onde desfila essa questão do ativismo judiciário.”

Segundo ele, apesar das críticas, o ativismo judiciário tem o seu lado positivo. “Temos este tema, que também não é novo, da construção do direito pela jurisprudência. Ou seja, temos espaços de ocupação legítimos na atividade judicial, criando o direito. A experiência jurisprudencial brasileira, e a própria doutrina brasileira, têm uma visão mais concretizadora dos direitos fundamentais do que os tribunais, especialmente o Tribunal Constitucional e a doutrina portuguesa, onde há uma reserva muito maior de conformação do legislador. A segunda grande diferença é que, no Brasil, temos muito mais portas de acesso ao Judiciário, especialmente ao STF, para questões de natureza política – e as portas de acesso em Portugal são mais restritas. No Brasil temos, por exemplo, alguns instrumentos de acesso ao Supremo que permitem e expõem a Corte a ter que enfrentar questões políticas. Não é que se julgue politicamente, mas estão submetidas ao STF para julgar, obviamente sob o enfoque do direito, questões de natureza política.”

Depois de explorar as diferenças que existem entre a jurisprudência do Brasil e de Portugal, o Ministro continuou sua reflexão sobre o tema do ativismo judicial. “Gostaria de enfocar o lado positivo deste tema. No meu entender, a Constituição brasileira abriu um espaço muito grande para que houvesse o acesso ao Judiciário em questões da mais variada natureza. Nós temos muitas portas para os juízes criarem direitos, como a porta universal, que é a da interpretação. Todos os juízes, quando interpretam um dispositivo legal, de certo modo criam um direito – o que nós sabemos é da Teoria Geral do Direito – e, na verdade, a norma não é dispositivo. A norma é aquilo que o intérprete extrai do dispositivo. Essa interpretação, com força de lei para o caso concreto, é feita pelo Poder Judiciário. De modo que existe, sim, a criação do direito, a extração da norma de conduta mediante a interpretação. No Brasil, temos outra porta, que é a da sentença. A sentença é o contrário da norma, que é criada em abstrato para o futuro – a norma jurídica tem natureza de norma de conduta abstrata, dirigida para o futuro; o legislador não legisla para o passado a não ser por exceção. O juiz edita uma norma para o passado ou para o presente. E para um futuro imediato no máximo, quando há uma iminência de legislar, num caso concreto. Portanto, enquanto o legislador atua mediante abstrações, para o futuro, o juiz atua diante de um caso concreto, ocorrido, acontecendo ou em vias de acontecer – essa é a diferença. Todavia, no direito brasileiro, nós temos alguns mecanismos que permitem ao juiz editar certas sentenças com caráter normativo, porque são sentenças que têm uma vocação para se projetar para o futuro e sentenças com grau de abstratividade mais ou menos elevado. Refiro-me, em primeiro lugar, ao sistema de processo coletivo, que no Brasil está vocacionado a produzir sentenças genéricas. A própria lei fala isso: quando se trata especialmente de sentenças em casos de chamados direitos individuais emergentes, a sentença é genérica. Portanto, o grau de atratividade assume relevância, não se trata de sentença para um caso concreto, não se trata de uma sentença clássica. Quando um juiz do Brasil edita uma norma, uma sentença chamada genérica, sem considerar os casos concretos individualmente, ele está produzindo com um grau de normatividade elevado. Ele produz o direito.”

O palestrante comentou ainda que esta questão da interferência do Poder Judiciário no processo legislativo é algo que desperta ainda muita controvérsia. “Todas essas decisões se proferem em uma zona difícil e eu penso que o Poder Judiciário, especialmente em tempos de crise, como nós estamos no Brasil, há uma tendência de, na dúvida, afirmarmos a competência do Supremo, neste momento. Pode não ser a melhor política, mas nesse momento do Brasil talvez seja. De qualquer modo, este é um foco importante de tensão e existe sempre um problema fundamental. Eu penso que aqui, mais amplamente, se estabelece a diferença de conteúdos entre a dogmática e a jurisprudência de Portugal em relação à do Brasil, que é a questão do nível de concretização dos direitos fundamentais, especialmente os sociais, os direitos a prestações. A duas constituições têm um rol importante de direitos fundamentais de natureza social, mas a mim parece que talvez a dicção dessas normas seja um pouco diferente nas duas constituições. Talvez esteja enganado, mas a formulação dessas normas, na Constituição brasileira permite uma interpretação um pouco mais concretizadora. Talvez isso explique a diferença de posições, especialmente na jurisprudência do Supremo em relação à do Tribunal Constitucional.”

Imigração

À tarde, os trabalhos foram retomados com o módulo ‘Desafios migratórios’, com moderação do ministro Sebastião Reis do STJ, e palestras de Marco Aurélio Buzzi ministro da mesma Corte, do doutor Rui Marques, presidente do Instituto Padre Antônio Vieira, e de Paulo de Tarso Sanseverino também ministro do STJ, que concentrou sua apresentação no tema dos refugiados que vivem no Brasil, no plano normativo e no tratamento adotado pelo País a respeito destes.

Sanseverino concentrou sua apresen­tação no tema dos refugiados que vivem no Brasil, no plano normativo e no tratamento adotado pelo País a respeito destes. Segundo ele, o alto comissariado da ONU para refugiados e a agência da ONU para refugiados, em dados de 2015, revelaram que existem 65 milhões de pessoas deslocadas no mundo, sendo que 41 milhões são deslocados no próprio país e 21 milhões são refugiados propriamente ditos. “Na verdade, o grande problema que temos está na questão dos deslocados internos. No caso da América Latina, o grande problema é a Colômbia, que tem o maior número de deslocados internos em função das guerras das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). E nós temos no mundo também 13 milhões de solicitantes de refúgio. A situação brasileira, de acordo com o Conar – o Comitê Nacional de Refugiados, vinculado ao Ministério da Justiça –, é de quase 9 mil refugiados reconhecidos, de 79 nacionalidades. E temos, nos últimos cinco anos, o crescimento exponencial no número de solicitações de refúgio no País.”

Depois de apresentar este panorama, o ministro seguiu falando sobre o estatuto jurídico dos refugiados no Brasil e no mundo. “O conceito clássico de refugiado foi fixado na Convenção de Genebra de 1951, logo depois da Segunda Guerra Mundial, quando havia quase um milhão de refugiados na Europa. Esse conceito acabou se mostrando insuficiente e, em 1967, o protocolo de Genebra suprimiu tanto a restrição geográfica – Europa – como a restrição temporal. Com isso, se estabeleceu o conceito clássico de refugiado: pessoas perseguidas no país de nacionalidade ou residência – e digo ‘residência’ porque nós temos no mundo ainda um número muito maior de apátridas. É algo impressionante e isso é uma das maiores preocupações da ONU hoje. Essas pessoas ficam impedidas de retornarem ao local de sua residência por fundado terror de perseguição. E a motivação é de questão racial, religiosa, política, nacionalidade ou vinculação a grupos sociais.”

Mais tarde, também este conceito se mostrou insuficiente, pois tinha muito mais uma conotação política do que uma preocupação social. “Aquele conceito clássico de refugiado foi ampliado inicialmente na África, em 1969, pela Organização da Unidade Africana, atual União Africana. E em 1984, na América Latina, pela convenção de Cartagena. Com isso, passou a incluir as graves e generalizadas violações a direitos humanos.”

O Brasil regulamentou o seu Estatuto dos Refugiados, concretizando as convenções internacionais de Genebra e de Cartagena, em 1997. É a Lei 9.474, uma das mais modernas do mundo na proteção dos refugiados. O País também concretiza os grandes princípios a esse respeito, baseado principalmente na questão humanitária e na solidariedade, mas há dois quesitos básicos: o da unidade familiar para positivar o artigo 2o da lei brasileira – ou seja, abrange não apenas o indivíduo, mas a esposa, filhos, pais e pessoas que são dependentes econômicos deste refugiado. O segundo grande princípio é aquele que está em todos os tratados internacionais: consiste basicamente na vedação de entrega do solicitante de refúgio ao país onde ele sofre perseguição. “Até pode ser recusado o refúgio, mas não se devolve ao país onde ele esteve sofrendo perseguição, exatamente pelo risco que existe à vida e à segurança desta pessoa.”

O Brasil regula também os direitos do refugiado de um modo bastante amplo. Em primeiro lugar, o solicitante tem livre circulação em qualquer lugar do País. Ele recebe uma cédula de identidade, tem carteira de trabalho e autorização de viagem dentro do território nacional, dispondo de uma ampla liberdade que permite sua integração à sociedade. “A lei brasileira se preocupa também com a regulamentação de todo o procedimento. Tanto faz o ingresso regular ou irregular no território nacional. É muito comum, especialmente em nossas fronteiras secas, que são vastas, pessoas que entram irregularmente e meses depois postulam o refúgio. É perfeitamente possível. O requerimento é dirigido às autoridades migratórias, basicamente à Polícia Federal. No momento do requerimento é suspenso qualquer tipo de procedimento relativo ao ingresso irregular, inclusive extradição. A pessoa, neste momento da solicitação, já tem uma autorização provisória de trabalho – então o objetivo é realmente fazer sua integração à sociedade.”

Segundo o Ministro, no Brasil a maior parte dos quase nove mil refugiados é da Síria, depois vem Angola, Colômbia e Palestina. O número de solicitações de refúgio, até março de 2016, cresceu exponencialmente. “Até março de 2010 tínhamos menos de mil solicitações por ano, em 2013 esse número chegou a 17 mil, em 2014 foi para 18 mil e, em 2015, foram mais de 28 mil. O responsável por isso, principalmente, é o Haiti, muito mais depois do terremoto de 2010. Temos o total acumulado de 48 mil solicitações de refúgio.”

Ele relatou também algumas situações especí­ficas. “No Brasil, temos muitos casos de refúgio direto ou reassentamento, que é um instituto muito usado nesse âmbito. Os haitianos – eu prefiro não chamar de refugiados e sim cidadãos haitianos, porque eles não se enquadram naquelas hipóteses legais de refúgio, seja nas convenções internacionais, seja no direito brasileiro –, por ocasião do terremoto, saíram em grande número do país, seguindo especialmente para a República Dominicana. O interessante é que naquele país, os filhos de haitianos não são considerados cidadãos. E isso está criando um grande contingente de apátridas. O Brasil, em 2011, recebeu mais de dois mil imigrantes haitianos. Como eles não se enquadram naqueles conceitos para a concessão de refúgio, a solução foi conceder visto humanitário. Além de tudo, nosso país tem uma preocupação com as rotas migratórias clandestinas dos ‘coiotes’. É muito comum os haitianos virem para o Brasil via fronteira com o Acre. Quando as autoridades se deram conta do problema que isso estava causando, abriram a rota imigratória através da embaixada do Haiti, facilitando a vinda direta dos imigrantes e dificultando a ação dos traficantes de pessoas.”

No caso dos refugiados da Síria, já são 5 milhões de pessoas, um número que está crescendo cada vez mais. “A questão é que para que a pessoa possa solicitar refúgio aqui ela deve estar no território nacional. E essas pessoas estão em campos de refugiados no Líbano, na Jordânia, na Turquia. Para que eles possam chegar ao Brasil, a solução foi conceder um visto especial de deslocamento aos sírios que tivessem interesse de vir para cá. E hoje o Brasil é o país que maior número tem de refugiados de lá, algo em torno de 2.300 pessoas e esse número certamente vai crescer ainda mais.”

O ministro apresentou alguns dados do STF, onde a questão do refúgio é apreciada com base na jurisprudência, fundamentalmente nos casos efetivos de extradição. “Nós temos dois casos paradigmáticos, um deles é o do Padre Olivério Medina, que foi acusado de terrorismo na Colômbia, e acabou fugindo para o Brasil. Aqui ele deixou de ser padre e constituiu família. Quando a Colômbia se deu conta de que ele estava aqui, pediu sua extradição. E durante esse processo houve a concessão do recurso pelo Conar e imediatamente suspendeu-se todo o processo de extradição. Então, incidentalmente, o STF discutiu a validade e a eficácia daquele ato concessivo de recurso. Acabou prevalecendo o entendimento do ministro Sepúlveda Pertence no sentido de reconhecimento à validade e à eficácia do refúgio concedido pelo Ministério da Justiça. Com isso, o processo de extradição acabou sendo arquivado.”

Por outro lado, houve o caso do Cesare Battisti, um episódio totalmente traumático entre Brasil e Itália. Ele era acusado de vários crimes em seu país de origem e acabou fugindo para a França. Quando aquele país deferiu sua extradição para a Itália, ele fugiu para o Brasil. Aqui ele solicitou o recurso e, ao mesmo tempo, a Itália postulou sua extradição. “Nesse processo de extradição foi concedido recurso pelo Ministro da Justiça. A discussão incidental no pedido de extradição era a respeito da validade e eficácia da concessão feita pelo Ministro da Justiça. Neste caso, o STF acabou recusando a validade e a eficácia do recurso e autorizou a extradição. Só que houve a interferência do Presidente da República da época, que acabou negando a extradição e se deu todo aquele conflito diplomático. O interessante é que nos dois casos a decisão do STF foi diferente a respeito da extradição.”

Sanseverino comentou ainda que a questão dos refugiados é um gravíssimo problema humanitário que vivenciamos. “O Brasil tem uma tradição histórica de hospitalidade – até porque somos uma maioria de filhos, netos e bisnetos de imigrantes. Temos muita criatividade nas tentativas de solução e isso tem servido de inspiração para outros países. Por exemplo, o caso dos refugiados sírios, o alto comissariado da ONU recebeu a visita de vários representantes de embaixadas solicitando informações sobre o procedimento utilizado pelo Brasil para ser reproduzido em outros países.”

O primeiro dia do Seminário de Verão foi encerrado com o módulo “Desafios climáticos”, que contou com apresentações do desembargador Elton Leme, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), do ministro do STJ João Otávio Noronha e de Jorge Moreira da Silva, professor catedrático convidado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. O painel foi moderado pelo Ministro do STJ Jorge Mussi.

 Segundo dia

A programação do Seminário de Verão de Coimbra continuou em 6 de julho e teve como módulo de abertura o painel “Desafios da democracia fiscal”, moderado pelo ministro Mauro Campbell Marques do STJ. As palestras foram conduzidas pelo ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva; pelo advogado Marcus Vinícius Furtado Coêlho, presidente da Comissão Constitucional da OAB Nacional; e pelo professor-assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Fernando Rocha Andrade. “Desafios da inclusão e controle de fronteiras” foi o tema do módulo seguinte, moderado pelo Ministro do STJ Raul Araújo Filho, composto por palestra do Ministro do STJ Paulo Moura Ribeiro; Márcio Fernandes, diretor Jurídico e de Assuntos Corporativos da British American Tobacco; e Adriano Moreira, professor catedrático da Universidade Técnica de Lisboa.

Para falar sobre os “Desafios laborais”, a organi­zação convidou a ministra do Tribunal Superior Eleitoral Luciana Lóssio como moderadora e, como palestrantes, o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Alexandre Belmonte; João Leal Amado, professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; e a professora Maria do Rosário Palma Ramalho, catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que foi convidada a falar sobre otema dos efeitos globais na área laboral. Ela começou dizendo que a globalização é um fenômeno sem precedentes, cujo destino final está ainda por acontecer. Também por este motivo, na visão da professora, a área laboral é o ramo do direito mais constantemente sujeito a novos desafios nesta curta história de cem anos. “É uma área jovem, mas não obstante ter obtido sucesso ao longo destes cem anos, tem que se adaptar às conjunturas, redefinir seus parâmetros, estabelecer novas metas e refletir os seus caminhos tradicionais. Em suma, eu diria que o direito do trabalho mais a globalização é uma soma com efeitos multiplicadores elevados à potência. São múltiplas as possibilidades de tratamento da matéria e por isso optei por trazer aqui seis ideias que correspondem, no meu ponto de vista, à alteração dos desafios colocados a esta área jurídica, nos parâmetros tradicionais em que surgiu, e a alteração desses desafios, dessas questões que hoje temos. Ou seja, os cem anos passados desde o surgimento desta área jurídica.”

Segundo ela, o primeiro desafio será a proliferação do modelo de contratação versus a uniformidade do contrato de trabalho tradicional. “Se nós olharmos para esta área no seu início, na virada do século XIX para o XX, veremos que o contrato de trabalho correspondia a um modelo único e uniforme. Era, eventualmente, um contrato por tempo indeterminado, as normas que o regulavam eram de proteção mínima dos trabalhadores e imperativas no tocante à tutela destes. O que temos hoje é a proliferação das chamadas relações de trabalho atípicas, como o contrato de trabalho temporário, parcial, intermitente, em comissão de serviços, em grupo, enfim, uma grande diversidade. Apesar disso, existe uma linha em comum: todos esses modelos de contrato protegem menos os trabalhadores”. Esta segmentação do mercado laboral fez surgir uma tensão de frente que a doutrina identifica. Esta é, tradicionalmente, muito conflituosa, porque às vezes opõe, ferozmente, trabalhadores e empregadores. Há outra tensão criada nessa nova relação: a que coloca no mercado os trabalhadores que são contratados pelo modelo tradicional e os outros, que estão menos protegidos. Eu diria, por tudo isso, que o desafio que hoje se coloca neste ponto é conjugar esta diversidade de modelos de contrato de trabalho com a garantia de níveis mínimos de tutela dos trabalhadores.”

A palestrante apontou ainda outros cinco grandes desafios atuais no direito laboral: a diversidade tipológica das categorias de trabalhadores versus o trabalhador clássico; a evolução tecnológica, que colocou desafios sem precedentes nesta área jurídica; os novos modelos de empresa e de tendências de flexibilização inerentes a esses novos tipos de organizações; os custos da tutela laboral; e a contratação coletiva nas matérias laborais.

Para encerrar a programação do 18o Seminário de Verão, com o tema “Desafios da segurança”, foram convidados o Procurador Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro Marfan Martins Vieira e o Ministro Gilmar Ferreira Mendes do STF. Ao tratar de tema tão complexo, Gilmar Mendes decidiu segmentar sua apresentação em três frentes, começando pela abordagem da realidade do mundo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, que, segundo ele, trouxeram para todos nós um quadro de brutal insegurança e mudaram paradigmas no mundo. “Todos nós sabemos que há uma mudança de paradigma quando se constata que vivemos em uma sociedade de risco. Esse é um tema que já vem sendo discutido há muito tempo e que é um sinal mesmo da modernidade. A própria evolução tecnológica, em certa medida, também é responsável por esse quadro de insegurança. Essa sociedade de risco hoje ganha uma conotação muito maior a partir do episódio das torres gêmeas. Eu li um ensaio em um jornal alemão a propósito desta questão do terrorismo e especialmente da ação de Bin Laden. O ensaísta escreveu: ‘a maior vitória de Bin Laden não foi aquela de provocar esse pânico e esse sentimento de terrorismo que, de alguma forma, nos atinge, mas ter comprometido o nosso modo de agir e de pensar enquanto nações civilizadas’.”

O ministro Mendes ressaltou que, hoje, vivemos em uma realidade complexa. “Estamos tentando responder, às vezes com instrumentos convencionais, às vezes com instrumentos não convencionais, a esse quadro de insegurança que nos envolveu como um todo. Já vimos juristas importantes dizendo que a tortura deve ser abominada, mas que, em determinados casos, em se tratando de obter uma confissão de um terrorista, a tortura poderia ser aceita. E aí eu volto àquela informação inicial: parece que esta foi a grande vitória de Bin Laden sobre o Ocidente. Fazer com que nós aceitássemos quebrar os nossos padrões civilizatórios.”

Em um segundo momento, o Ministro fez considerações sobre a questão da segurança pública e como lidar com este quadro. “Hoje, no Brasil, nós discutimos outra temática que é a questão da maioridade penal. A Constituição estabeleceu que existe a inimputabilidade penal do menor de 18 anos. Consagrou isto na Constituição, ao contrário do que ocorre em diversos países. De algum tempo para cá, isto se tornou o centro do debate, inclusive calcado em verificações estatísticas. A participação de menores em atos infratores, em grande medida leva a essa proliferação da defesa da superação, com variantes das mais diversas. Uns trazem, por exemplo, a proposta de simplesmente retirar isso do texto constitucional. Deixar ao legislador a tarefa de escolher. Outros já trazem inclusive a definição, dizendo que o juiz poderá aquilatar a situação e aferir a imputabilidade ou não em cada caso. Em suma, há propostas para os vários gostos e aqui, inclusive, vem também uma acusação ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Diz-se que foi feito por ideólogos, que houve inúmeros equívocos e que, por isso, acabou por dar um tratamento inadequado aos menores. E daí a oferta, as chances, para que estes menores acabem envolvidos no crime. Ninguém discute as condições de nossas casas de internação de menores, que talvez sejam piores ou tão ruins quanto os nossos piores presídios. Logo, casa de reeducação ou casa de internato é um eufemismo para prisão. Nas piores condições. Em suma, acabamos de novo a apelar um pouco para o simbólico neste contexto.”

Ele também tocou no ponto da importância da justiça criminal versus segurança pública. “Estou convencido de que um grave problema da segurança pública é o mau funcionamento da justiça criminal. O Brasil hoje tem talvez uma das maiores populações carcerárias do mundo, alguma coisa como 700 mil presos, dos quais metade – ou pelo menos 45% – é de presos provisórios. Só para dar um exemplo, quando participei de um mutirão carcerário do Conselho Nacional de Justiça em Fortaleza, encontramos um indivíduo preso há onze anos provisoriamente, portanto, muito provavelmente já teria cumprido todas as penas. Isso conta uma história de falha de sistema como um todo. Falhou o promotor, o defensor, o juiz e tudo o mais. Não podemos dizer que isso não tem nada a ver com a justiça. De um lado, demoramos demais para julgar, e aí temos prescrições e todos os problemas. De outro, lançamos as pessoas na cadeia e não julgamos mais. Portanto, se alguém pode pensar num debate consistente em matéria de reforma da segurança pública no Brasil não pode deixar de discutir o papel da justiça, especialmente da justiça criminal e de suas adjacências, promotoria, defensoria pública, todo o sistema de defesa, porque do contrário vamos estar a enxugar gelo.”

Ele encerrou sua palestra derrubando outro mito: a ideia que se tem, no Brasil, de que a segurança pú­blica é uma responsabilidade dos estados. “Com isso, então, a União fica eventualmente devedora de uma prestação subsidiária. Mas é interessante, porque é a União que legisla sobre direito penal, sobre processo e execução penal, sobre direito penitenciário. A União que tem a Polícia Federal, que combate o tráfico, que tem as Forças Armadas inclusive com dever de zelar pelas fronteiras por onde passam armas e drogas. Interessante que a União nada tem a ver com a segurança pública! Isso é responsabilidade dos Estados! Uma falácia argumentativa, que nos obriga a repensar essa temática, inclusive sob esta perspectiva. Se não bastasse qualquer razão jurídica, e nós as temos muitas, bastava dizer: este é um problema grande. Evidentemente, a droga não é produzida no Brasil, vem do exterior. As armas que são usadas nesses embates são importantes e isso ocorre facilmente. Tudo isso exigiria uma ação inclusive mais forte em termos de relações exteriores da União. Logo, a mim me parece que temos condições, e temos consciência, de que é preciso enfrentar esse tema. É difícil em um quadro de tantas mazelas, dizer qual é o tema prioritário, mas certamente é difícil alguém dizer entre as suas preocupações, independentemente do estamento a que ele pertença na sociedade, que não estaria em primeiro ou segundo lugar o tema da segurança pública nessas múltiplas dimensões.”

Apresentaram palestras no Seminário de Verão também os ministros do STJ Humberto Martins, Sebastião Reis, Marco Aurélio Buzzi, Jorge Mussi, João Otávio de Noronha, Mauro Campbell Marques, Ricardo Villas Bôas Cueva, Raul Araújo Filho, Paulo de Moura Ribeiro; a ministra Luciana Lóssio, do Tribunal Superior Eleitoral; o ministro Alexandre Belmonte, do Tribunal Superior do Trabalho; e os desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Elton Leme e Agostinho Teixeira de Almeida Filho.

O evento foi encerrado com um jantar, que comportou a conferência “Desafios dos refugiados – a proteção dos Direitos Fundamentais na União Europeia”, conduzida por Jonatas Machado, professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.