Os trabalhadores por aplicativos e a polêmica sobre o vínculo de emprego

1 de julho de 2022

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Em meados do Século XVIII, Jean Jacques Rousseau foi premiado pela Academia de Dijon, na França, pelo ensaio que produziu para responder à seguinte pergunta: “A restauração das ciências e artes contribuiu para a purificação da moral?” A resposta negativa partiu do pressuposto de que a natureza fez os homens bons e felizes e que a civilização os depreciava e os tornava infelizes, sendo a admiração pelos mecanismos tecnológicos uma das causas responsáveis pelos nossos infortúnios. A advertência de Rousseau colocava em perspectiva o complexo tema da neutralidade da prática e do discurso científicos, certamente orientados para a expansão dos valores estruturantes das sociedades capitalistas.

Apesar dessa contundente crítica, a história dos povos e das sociedades confirma a inegável vocação tecnológica do ser humano. Desde os primórdios da experiência social coletiva, o homem sempre foi capaz de produzir ferramentas e desenvolver meios de facilitação do acesso a bens materiais e a melhores condições de vida, preservando-se de riscos naturais e ameaças de outras espécies. Essa vocação inata ao domínio da natureza, a partir do uso da inteligência, foi predicada e reafirmada também nos registros bíblicos: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra” (Genesis, 1).

Vivemos um novo tempo tecnológico, uma nova era de desenvolvimento científico, tantas vezes referida como revolução 4.0. Assistimos à emergência da economia digital e ouvimos palavras novas que remetem a realidades instigantes e pouco conhecidas, de que são exemplos as expressões “gig economy” ou economia compartilhada, “uberização da economia” ou “capitalismo de plataforma” (“crowdwork” e trabalho sob demanda por meio de aplicativos). Também se tornam frequentes referências à inteligência artificial, à Internet das coisas, ao uso de veículos autônomos, à blockchain, à impressão em 3D, à nanotecnologia, à biotecnologia e ao armazenamento de energia e computação quântica, etc.

No campo das relações de trabalho, os efeitos da tecnologia (automação acelerada e trabalho por plataformas) envolvem, essencialmente, a extinção de postos de trabalho e o agravamento do desemprego, impactando negativamente os cofres previdenciários, as políticas públicas assistencialistas e os programas de qualificação profissional.

Mas qual é a razão dessa breve digressão sobre natureza humana e tecnologia?

A resposta está nas notícias veiculadas nas últimas semanas de 2021, dando conta da disputa travada nos tribunais acerca do status jurídico dos trabalhadores que prestam serviços por meio de plataformas digitais, sendo o Uber o seu principal exemplo: seriam empregados regidos pela CLT ou trabalhadores autônomos?

No mundo jurídico, os debates envolvendo os protagonistas da economia compartilhada (trabalhadores que aderem ao uso de plataformas para prestação de seus serviços e as respectivas empresas) colocam em lados opostos “conservadores” – que buscam “conservar” no modelo legal pensado para a segunda revolução industrial, incluindo no clássico conceito de empregado, os novos trabalhadores que, embora autônomos e não subordinados, são, paradoxalmente, livres e economicamente dependentes – e “progressistas” – que tentam moldar as novas realidades aos modelos contratuais que disciplinam a prestação de serviços, respeitando os limites do direito objetivo e a autonomia da vontade.

Para além das narrativas e construções teóricas em curso envolvendo a empresa Uber e outras congêneres, é fato que os critérios para identificação do empregado estão listados na legislação celetista e envolvem, essencialmente, a pessoalidade, a não eventualidade, a subordinação e a onerosidade. O legislador concebeu um sistema normativo estruturado a partir do poder empresarial e da subordinação jurídica do trabalhador. Alguns chegam a dizer que a subordinação jurídica seria o verdadeiro “coração” da relação de emprego, exigindo a total submissão do empregado ao poder do empregador, em suas dimensões diretiva, disciplinar e fiscalizatória.

Na atividade de mediação entre demanda e serviços, papel executado pelas empresas que operam essas plataformas, não parecem presentes os poderes de comando, controle e supervisão. Obviamente, os aplicativos são concebidos por meio de parâmetros que podem conter “vieses” que considerem, por exemplo, a maior utilização das plataformas ou o tempo de disponibilidade. Esses trabalhadores, no entanto, segundo a realidade tem demonstrado, são absolutamente livres para definir os instantes em que prestarão serviços, bem assim para estabelecer a duração do tempo que dedicarão a essas atividades. Há, ainda, a possibilidade de recusarem corridas, sem punições, o que confirma a presença de um nível de autonomia incompatível com a figura do empregado, ao menos sob os olhos da lente clássica desse pelo Direito do Trabalho.

Em alguns casos julgados pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), apurou-se que 75% a 80% dos valores cobrados pelas corridas eram repassados aos trabalhadores, o que também sugere, sem margem a dúvidas, uma relação jurídica diferenciada, inconfundível com aquela regulada pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Além disso, muitos desses trabalhadores atuam ao mesmo tempo com diferentes plataformas, todas disputando fatias do mesmo mercado consumidor, o que, no sistema tradicional da CLT, seria facilmente traduzido como quebra de confiança e “concorrência desleal”, autorizando a aplicação de justa causa.

O esforço doutrinário que tem sido desenvolvido para justificar a denominada “subordinação algorítmica” e consequente vínculo de emprego não parece suficiente para afastar a liberdade dos trabalhadores por aplicativos para a execução dos serviços, sendo inadequada a CLT para esse modelo de negócio.

A crise econômica e social e a necessidade pessoal de trabalho, ainda que por meio dessas plataformas, não são suficientes para justificar o reconhecimento da relação de emprego.

No Estado Democrático de Direito, a ordem jurídica não pode ser aquilo que o intérprete deseja, por mais autorizado e qualificado que seja. Há de ser, ao contrário, aquilo que foi produzido pelo legislador no curso do regular processo legislativo. Não havendo dúvida em relação ao sentido dos fatos ou ao conteúdo das regras legais, não parece lícito ao julgador, exortando princípios jurídicos, superar os limites da ordem jurídica para impor a regulação que considera adequada.

Recorda-se que, em 2011, o legislador fixou na CLT a tese de que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”. Comando, controle e supervisão, portanto, são elementos essenciais para que se reconheça a subordinação jurídica, o que não se faz presente nessa relação em que o comando está nas mãos dos trabalhadores, livres que são para escolher os momentos e as plataformas, concorrentes, que utilizarão, ainda que devam observar o padrão operacional por elas estabelecido.

Embora se faça urgente a intervenção legislativa para resolver esse quadro de aparente vazio normativo, que tanta insegurança tem gerado para trabalhadores e empresas que operam essas plataformas, é fato que o Poder Legislativo federal, ao editar a Lei no 13.640/2018, alterando a Lei de Mobilidade Urbana e estabelecendo critérios para a regulamentação e fiscalização do transporte remunerado de passageiros. A mudança definiu que esses trabalhadores são considerados contribuintes individuais perante a Previdência Social. Portanto, ressalvados apenas os casos excepcionais em que for demonstrada a presença efetiva dos requisitos constitutivos da relação de emprego, a solução para essas disputas parece, mesmo, fadada à declaração de improcedência.

Ao Poder Legislativo, espaço naturalmente vocacionado à criação de normas jurídicas, cabe fixar o rol de direitos devidos a esses profissionais que, se não são empregados no sentido próprio, são mesmo merecedores de proteção legal diferenciada. Eis um dos grandes desafios para o ano de 2022. Com a palavra o legislador…