Os vícios da bem intencionada Lei nº 14.344

26 de agosto de 2022

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Com o objetivo de preservar a autonomia e independência do Ministério Público dos estados e da União, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF). A Adin conta com um pedido de suspensão liminar de eficácia da expressão (grifada) “A autoridade policial poderá requisitar e o Conselho Tutelar requerer ao Ministério Público a propositura de ação cautelar de antecipação de produção de prova nas causas que envolvam violência contra a criança e o adolescente”, disposta no art. 21, §1º, da Lei nº 14.344.

Publicada em 24 de maio de 2022, a nova lei federal cria mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes. Batizada de Lei Henry Borel, faz referência ao menino de quatro anos que foi morto em 2021. Entre outras mudanças, transforma em crime hediondo e qualificado o homicídio praticado contra menores de 14 anos.

Por mais meritória que seja a nova legislação, é importante ressaltar que a expressão ora questionada (“A autoridade policial poderá requisitar”) – talvez por mero erro de redação ou ausência de técnica legislativa – subverte o entendimento da Constituição Federal (CF) de 1988 ao permitir que a autoridade policial possa requisitar ao Ministério Público (MP) a propositura de ação cautelar de antecipação de produção de prova nas causas que envolvam violência contra crianças e adolescentes.

Convém lembrar que o ordenamento jurídico vigente consagrou o sistema acusatório. Há que se respeitar o devido processo legal, assim como a separação das funções de acusador e julgador, que cabe ao Ministério Público (art. 129 da CF) e à magistratura (art. 93 da CF), respectivamente. Dessa forma, a Constituição Federal não permite ao delegado de polícia a função de promover a ação penal pública. Por isso, a nova lei, ora questionada, padece de vício de inconstitucionalidade material, já que o Ministério Público não se submete à determinação ou ordem da autoridade policial. Aliás, a ordem é justamente inversa quanto à requisição de natureza administrativa, pois cabe ao MP “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial”.

O referido dispositivo demonstra, de forma cristalina, a falta de técnica do legislador ao anunciar que o delegado “requisitará ao MP a propositura da cautelar. Evidentemente, a expressão adequada deveria ser “representará” – e como tal deve ser lida, compreendida e interpretada.

Equívocos dessa ordem também já foram encontrados na produção de outras leis, a exemplo da Lei nº 13.431/2017, em que ficou acentuado no art. 21 que:

…constatado que a criança ou o adolescente está em situação de risco, a autoridade policial requisitará à autoridade judicial responsável, em qualquer momento dos procedimentos de investigação e responsabilização dos suspeitos, as medidas de proteção pertinentes, entre as quais:

VI – representar ao Ministério Público para que proponha ação cautelar de antecipação de prova, resguardados os pressupostos legais e as garantias previstas no art. 5º desta Lei, sempre que a demora possa causar prejuízo
ao desenvolvimento da criança ou do adolescente.

Neste caso, a Lei empregou a expressão correta: representar. Interpretar essa disposição de forma dissociada certamente pode resultar numa conclusão atípica e inconstitucional de que a autoridade policial pode ordenar à autoridade judicial ou ao órgão do MP a propositura da cautelar.

A impropriedade e inconstitucionalidade da expressão “a autoridade policial poderá requisitar” fica ainda mais clarividente quando se visita a etimologia da palavra requisitar, cujo conteúdo e definição é dar ordem, determinar – atribuição incompatível com a função do Delegado de Polícia em relação ao titular da ação penal.

A única norma que possibilita à autoridade policial exercitar a requisição está contemplada na Lei nº 12.830/2013, cuja edição visou reafirmar e regulamentar a investigação conduzida pelos delegados de polícia. O referido diploma estabeleceu um regime jurídico capaz de lhes assegurar um desempenho funcional livre de perseguições, subserviência e fisiologismos no desempenho de suas funções e no bojo do inquérito policial. Em momento algum, autoriza ou permite esse poder requisitório na relação entre polícia e Ministério Público.

Tão somente no bojo do inquérito policial (conforme o art. 2º, § 2º, da Lei nº 12.830/2013), o delegado de polícia pode expedir requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos. Noutra margem de argumentação, quem possui poder de requisição frente ao delegado de polícia é o Ministério Público, que pode requisitar diligências (inciso II do art. 13 do Código de Processo Penal, bem como no inciso VIII, art. 129 da CF).

Até mesmo em pesquisa no Direito Comparado, não se encontra norma que autorize esse poder anômalo e inconstitucional do delegado de polícia – endereçar requisição ao Ministério Público. Aqui, frise-se, não estamos a referir existência de hierarquia entre as carreiras e funções, mas sim de guardar observância e respeito a funções e prerrogativas estampadas no art. 129 da CF. Logo, o poder de requisição do delegado de polícia, que existe de fato e de direito, está restrito a dados que interessem à apuração da infração penal e somente no bojo de inquérito policial.

Por qualquer ângulo que se analise a questão, não há como se admitir que o delegado de polícia possa endereçar requisição ao titular da ação penal. Dentro do sistema constitucional de justiça, a regra é direta: “a autoridade policial investiga, o Ministério Público é a parte que acusa e o juiz julga, na ambiência em que interagem, como funções essenciais, a advocacia e as defensorias”.

A partir dos fundamentos apresentados, constata-se que o §1º do artigo 21 da Lei nº 14.344/2022 representa indubitável ingerência nas atribuições constitucionalmente conferidas ao Ministério Público, subvertendo o sistema acusatório, a independência de seus membros, a autonomia da instituição, bem assim o exercício da titularidade privativa ação penal pública. Por isso, não existe possibilidade de o dispositivo legal questionado atribuir ao Delegado de Polícia o poder de impor obrigação ao MP, sob pena de se admitir, através de lei ordinária, que se atribua à autoridade policial poderes que são próprios do Ministério Público, extrapolando o limite constitucional de atuação policial.

Como se não bastasse, há ainda de se referir que a norma questionada se revela excessiva, arbitrária e desarrazoada. Igualmente, atenta contra o princípio da razoabilidade (previsto no art. 5º, LIV, da CF), que também deve ser observado pelo legislador. Além de tudo isso, o dispositivo questionado retira a discricionariedade regrada do Ministério Público de avaliar a necessidade de ajuizar ação cautelar de antecipação de produção de provas.

O periculum in mora também pode ser verificado sem grande esforço, tendo em vista que a partir de 9 de julho de 2022, quando completam 45 dias da publicação da lei ora impugnada, a independência do Ministério Público passará a sofrer concreta ofensa. Ficarão os membros do MP sujeitos às ordens e determinações da autoridade policial, que poderão “requisitar”.

Por todo o acima exposto, não há nenhuma dúvida sobre a flagrante inconstitucionalidade existente no § 1º do art. 21 da Lei n° 14.344/2022, especialmente a expressão “a autoridade policial poderá requisitar (…) ao Ministério Público”, visto que o MP teve violada sua autonomia, a independência funcional de seus membros, bem como foram desrespeitados o sistema acusatório constitucional vigente e os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.