“Pacote Basta”, pelo fim da fatalidade anunciada

8 de março de 2021

Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)

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Os pesquisadores que se debruçarem sobre os feminicídios sucedidos no Brasil nos últimos anos perceberão um traço geral – uma unidade de ação, uma espécie de singularidade inevitável – entre os assassinos: rarissimamente agem de repente, no assombro da ideia recém-nascida. Pelo contrário, desferem o golpe letal ao cabo de um gradativo processo de coações, cujo marco de surgimento se deslinda em duas palavras: violência psicológica.

O feminicídio não aflora à sorrelfa, sorrateiro e consumado, no seio de um relacionamento comum. Não se trata de um inimigo que não se possa combater por ser imprevisível. O feminicídio é o topo de uma cadeia de vilipêndios que abarca, por antecipação, a ameaça, o constrangimento, a humilhação, a manipulação, o isolamento, a vigilância constante, a perseguição contumaz, a chantagem, a ridicularização e a limitação do direito de ir e vir.

A Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), apesar de decepar a cabeça do monstro, não é capaz de lhe derrubar o corpo ominoso, donde brotam outras cabeças, que permanecerão emergindo enquanto o regramento jurídico pátrio tolerar, cúmplice, a coleção de comportamentos que precedem e predizem o assassinato de mulheres; quase sempre por homens com quem mantiveram proximidade afetiva.

Eis a batalha que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) trava neste momento no Congresso Nacional por meio da apresentação e da defesa do “Pacote Basta” – conjunto de propostas que alteram o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940), a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990) e a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) para tornar efetivo o enfrentamento à violência contra a mulher em todos os seus aspectos: do abuso psíquico ao feminicídio, passando pela lesão corporal.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, o Brasil registrou 1.326 feminicídios em 2019 – um aumento de 7,9% em relação a 2018. Em 89,9% das vezes, o companheiro ou ex-companheiro da vítima foi o responsável pela morte. Tal quadro se agravou a partir de março de 2020, com a decretação da quarentena devido à pandemia de covid-19. Só no Estado de São Paulo, no primeiro semestre do ano passado, o incremento chegou a 32% na comparação com igual período de 2019.

No caso das lesões corporais em decorrência de violência doméstica, o País contabilizou 266.310 ocorrências em 2019 – isto é, uma mulher sofreu agressão física a cada dois minutos, em média. Acerca dos estupros, as estatísticas também são perturbadoras: uma vítima a cada dez minutos. A informação é escandalosa sobretudo se levarmos em consideração a subnotificação, reinante principalmente em localidades distantes dos grandes centros.

Não é por diferente motivo que o “Pacote Basta” preconiza a criminalização da violência psicológica: para punir aqueles que expõem a mulher a risco de dano emocional, à diminuição de sua autoestima e a qualquer outra conduta que lhe prejudique o pleno desenvolvimento ou que degrade ou controle suas ações. Não estranha, portanto, que semelhante rol de ultrajes disponha de um único destino possível: o extermínio. Urge interrompê-lo! Inclusive, com a possibilidade, se for o caso, do afastamento do agressor do convívio familiar, conforme a palavra da vítima.

Outro dispositivo do projeto de lei que oferecemos ao parlamento torna crime a “perseguição” ou “stalking” – situações que, a despeito de terem explodido em todo o mundo com a expansão das tecnologias de comunicação, não encontram tipificação nas normas vigentes no País. É indispensável que a persecução compulsiva às mulheres, online ou presencialmente, seja reprimida antes de se converter em sinistro irreversível.

Hoje, o feminicídio é considerado pela lei brasileira um fator qualificador do homicídio, inexistindo como crime autônomo. A consequência é um tratamento tolerante aos praticantes do delito, que, por conseguinte, sentem-se estimulados a repetir as atitudes gravosas. Ao mesmo tempo, diante da impunidade generalizada, as mulheres vitimadas silenciam, posto que não encontram perspectiva para denunciar as violações. O “Pacote Basta” vem para colocar um ponto final nesse desequilíbrio.

Ainda no tocante à ausência de penalidade compatível com a magnitude do estrago provocado, propomos regime inicialmente fechado para os crimes contra a mulher. A maioria dos ilícitos são punidos atualmente com pena inferior a oito anos, cujo regime inicial, por regra, é aberto ou semiaberto – o que resulta na não reclusão dos infratores, os quais seguem a desfrutar da possibilidade de retorno à delinquência.

Pretendemos, por fim, colocar à disposição de toda cidadã brasileira uma ferramenta para denunciar – de forma silenciosa, se assim o desejar – eventuais ataques que esteja sofrendo: a campanha “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica”. Para tanto, é preciso que a vítima vá até uma instituição parceira (farmácias, mercados, repartições públicas, portarias de condomínios, entre outras) e apresente um sinal “X” desenhado em vermelho na palma da mão para que o atendente chame a polícia imediatamente.

O feminicídio é uma fatalidade anunciada. A reiteração descontrolada dessa transgressão comprova a inépcia do Estado brasileiro em oferecer a necessária proteção às mulheres vitimadas em razão das suas condições de gênero. Precisamos nos mobilizar e agir, porque – malgrado os recentes aperfeiçoamentos na legislação e a crescente conscientização da sociedade – a violência contra a mulher continua a medrar, e em compasso cada vez mais vertiginoso.