Edição 159
O pecado do Diplomata Saboia
26 de novembro de 2013
Advogada, Professora de Direito Internacional Público no Centro de Ensino Unificado de Brasília (CEUB)
Ao dar execução ao asilo concedido pelo governo brasileiro ao senador boliviano, retirando-o de seu país, o diplomata Eduardo Saboia não praticou ato ilícito à luz do Direito Internacional e, sobretudo, da Constituição brasileira. O governo concedera a Molina asilo diplomático. Deveria, portanto, exigir salvo-conduto para que ele pudesse ser conduzido ao exterior. O salvo-conduto não é autorização para que o asilado deixe o país, mas garantia de que sairá com segurança do território onde ocorre risco à sua integridade ou liberdade.
A história registra episódios isolados de recusa do salvo-conduto. Foi o que ocorreu nos anos 1940, no caso Haya de La Torre, que Peru e Colômbia levaram à Corte Internacional de Justiça. A tese peruana era a de que a identificação dos pressupostos do asilo deveria ser feita mediante entendimento entre o Estado que concede o asilo e o Estado territorial. A decisão da Corte foi inexequível, não houve acordo entre os dois países e Haya de La Torre viveu por três anos na residência do embaixador da Colômbia, em Lima. Não houve, naquele caso, protelação indefinida, mas negativa explícita e confronto aberto de diferenças perante o tribunal internacional.
Pouco depois, a Convenção de Caracas, de 1954, consolidou regra de direito costumeiro internacional segundo a qual cabe ao Estado que concede o asilo dizer se há ou não perseguição política e. se ocorrente a situação de urgência vivida pelo postulante, pressupostos essenciais do asilo político.
A associação entre os casos de Molina e de Julian Assange, abrigado na Embaixada do Equador em Londres, não é adequada. É que as situações são diferentes sob o ponto de vista jurídico. O Reino Unido não se inclui entre os Estados que reconhecem o asilo diplomático como norma costumeira internacional, não se vinculando juridicamente ao instituto, como é o caso do Brasil e da Bolívia, signatários da Convenção de Caracas. Foi, aliás, na América Latina que o instituto se desenvolveu, sendo regionais as convenções que o disciplinam: Havana, 1928, Montevidéu, 1933, Caracas, 1954.
Não sendo ilícita, segundo o direito das gentes, a conduta de Saboia, por que o ameaçam seus superiores hierárquicos? Se foi atípica a retirada do asilado, foi também anômala a situação em que ele se encontrava, confinado em uma sala durante um ano e meio.
As críticas a Saboia falam de insubmissão à hierarquia funcional, importante, é certo, na carreira diplomática. Circunstâncias, entretanto, justificam o ato do diplomata, que optou pelo respeito à dignidade humana, aos direitos humanos e ao direito de asilo, princípios fundamentais da República (Constituição Federal, arts. 1o, III, e 4o, II e X). Em uma situação excepcional, ele deu cumprimento a esses princípios, conferindo efetividade à Constituição. Esse foi o “pecado” de Saboia.
Esse foi também o “pecado” do embaixador Souza Dantas, que, na chefia da missão diplomática brasileira na França, ignorou normas do Itamarati e concedeu vistos a centena de judeus perseguidos pelo governo colaboracionista de Vichy. Dantas contrastou o governo brasileiro e salvou 800 pessoas da deportação. Da mesma forma, Guimarães Rosa, cônsul em Hamburgo, e a funcionária Araci de Carvalho, que veio a se tornar sua mulher e foi chamada “Anjo de Hamburgo”, superaram normas expedidas pelo governo e salvaram vidas. A história redimiu-os e consagrou-os. Que se faça justiça ao diplomata Saboia.