Edição 55
Penas alternativas ou ilusão?
5 de fevereiro de 2005
Soraya Taveira Gaya Promotora de Justiça
A lei visa regular a convivência do homem em sociedade, sendo impossível evitar-se a ocorrência de crimes, logo, uma sanção é sempre prevista como contra prestação a ofensa ao bem jurídico tutelado pela lei.
São várias as espécies de delitos como várias as respostas penais respectivas no tocante ao quantitativo, a pena corporal e/ou pagamento de multa, eram as mais usadas, de acordo com a gravidade do crime e a lesão perpetrada, bem como a intensidade da culpa do sujeito.
No passado as punições eram bastante severas, como exemplos: estupros, com castração do criminoso, penas de morte ou mutilação recíproca entre vitima e ofensor, era olho por olho, dente por dente, penas de prisão perpétua etc.
Já está provado cientificamente que as penas corporais privativas de liberdade longas não recuperam, muito pelo contrário, a falta de esperança do preso em ter sua liberdade restituída só faz com que ele tumultue o sistema carcerário, levando a motins e outras desordens, acabando por cometer mais crimes.
Outro ponto negativo era colocar presos que praticaram delitos menores junto a outros que cometeram crimes graves, o que causa prejuízo não só para o próprio preso como também para a Sociedade.
Por questões diversas e óbvias, a pena privativa de liberdade deve ser restringida ao mínimo necessário.
Assim, era preciso criar uma medida alternativa, um meio termo, ou seja, a aplicação de uma pena diferenciada, de acordo com a gravidade do delito que, ao mesmo tempo, atendesse a Sociedade, com a prestação efetiva da tutela jurisdicional. De fato, a proporção entre a pena e o delito exige o máximo de elasticidade em sua medida.
Nosso legislador, atento a essa problemática, com o tempo, passou a humanizar mais as penas, inicialmente previu regimes menos gravosos de acordo com a pena fixada na sentença – fechado, semi-aberto e aberto –, e depois separou os delitos de acordo com o grau de ofensa aos bens jurídicos, surgindo então a Lei nº 9.099/95, que passou a considerar de menor potencial ofensivo as contravenções e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano.
Reza o artigo 1º da Lei nº. 9.9099/95
“Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial”.
Penalidade: artigo 76: “Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa a ser especificada na proposta”.
A citada lei trouxe também procedimento mais simplificado, o que significa celeridade e, uma Justiça para se tornar efetiva e cumprir todos os seus objetivos deve ser rápida.
As penas correspondentes aos crimes acima seriam a multa ou restritiva de direitos, como prestação de serviços à comunidade, o que muitas vezes se torna impossível devido, por exemplo, à falta de tempo do autor da infração, assim, tais serviços seriam substituídos por pagamentos de cestas de alimentos básicos a serem revertidas a Instituições Filantrópicas.
No início, muitas vozes ilustres se levantaram contra a citada lei, com variadas críticas no sentido de que ela teria vida curta ou não funcionaria na prática.
Mas, exatamente o contrário aconteceu, pois temos os Juizados Criminais de Pequenas Causas funcionando de maneira exemplar.
A resposta da população foi a melhor possível, pois todas as causas menores que, no Juízo Comum acabavam prescrevendo face ao excessivo número de feitos, hoje encontram punição efetiva, as pessoas têm certeza de que terão seus direitos satisfeitos e procuram cada vez mais fazer vale-los, pois está se generalizando a confiança na Justiça.
Hoje, temos a seguinte situação com o seguinte resultado: o autor de uma lesão corporal culposa, por exemplo, é chamado rapidamente a Juízo e aceitando a proposta de antecipação de pena, que poderá ser pagamento de multa ou cestas de alimentos básicos ou ainda prestação de serviços à comunidade, tem extinta sua punibilidade tão logo cumpra o acordo, assim, evita qualquer discussão a respeito do fato que o levou às barras do Tribunal.
Se o resultado seria absolvição ou condenação nunca se saberá, pois a transação realizada entre o Ministério Público e a Parte encerra de vez a questão.
É claro que a pessoa pode não concordar com a proposta, é um direito seu, caso não aceite, o processo correrá normalmente, com recebimento de denúncia, oitivas de testemunhas e sentença final, que pode ser absolutória ou condenatória.
Podemos assegurar que a grande maioria aceita a proposta efetivada pelo Ministério Público e cumpre na integra o acordo.
O que importa para o Estado é a tranqüilidade social, é agir contra os autores dos fatos ofensivos, dando-lhes condições de existência individual e social, sem descurar do caráter preventivo e repressivo das penas.
UM ENGANO QUE DEU CERTO
Com o advento da Lei Federal nº. 10.259 de 12/07/01, esta Promotora que acumula as funções junto ao Tribunal de Júri e Vara Criminal da Comarca de Teresópolis, equivocou-se com a interpretação da ampliação ao conceito de crime de menor ofensivo.
Reza o Parágrafo Único do artigo 2º da citada lei que:
“Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa”.
Pois bem, as minhas velhas lentes me traíram e onde se lia “pena máxima não superior a dois anos” nós lemos “pena mínima não superior a dois anos”.
Ficamos muito animadas e constatamos que o avanço da lei traria solução para que vários crimes não chegassem à prescrição e a impunidade. Ao mesmo tempo, achamos curioso o fato de ninguém ter ainda se antecipado a cumprir o dispositivo legal – ou pelo menos aquilo que achávamos que fosse.
Pois bem, como alguém tinha que dar o primeiro passo, formulamos a seguinte PROPOSTA DE TRANSAÇÃO PENAL, nos termos abaixo:
“O Promotor de Justiça que esta subscreve, no uso de suas atribuições legais, vem, perante Vossa Excelência, expor que:
Considerando os termos da Lei Federal nº. 10.259/01, que estabeleceu o limite de 02 (dois) anos para pena mínima cominada, catalogando tais infrações como de menor potencial ofensivo, logo, sendo admissível o oferecimento de proposta de aplicação antecipada de pena restritiva de direito ou multas, nos termos da Lei nº. 9.099/95 – art. 76 e §§ – naquela jurisdição.
Considerando que muitos delitos previstos no Código Penal possuem penas mínimas não superiores a 02 (dois) anos, sendo certo que em caso de condenação haveria a substituição da pena corporal por restritiva de direitos, nos termos do art. 44 do Código Penal.
Considerando ainda que é grande o voluma de Ações Penais, bem como Inquéritos Policiais que estão na situação acima, havendo grandes gastos financeiros ao movimentar-se a máquina judiciária, sem contar com o tempo despendido por Juízes, Promotores, Defensores e Funcionários para a final, termos o mesmo resultado que seria alcançado com o oferecimento da proposta, qual seja, pena restritiva de direito.
Considerando o volume de trabalho, com grandes quantidades de crimes graves – homicídios, estupros, seqüestros, roubos – que merecem maior dedicação de todos – além da grande quantidade de Inquéritos paralisados, os quais apuram delitos menores, onde já indicada a autoria, que muitas vezes acabam prescrevendo, sem que se tenha uma resposta penal, que tem também finalidade educativa.
Considerando, por fim, que para a criação de jurisprudência, decisões devem ser tomadas até que possam chegar ao conhecimento da mais alta Corte e ali, através de nossos mais brilhantes juristas, serem analisadas e julgadas da maneira mais acertada.
Ousamos oferecer PROPOSTA DE TRANSAÇÃO PENAL consistente na aplicação imediata de pena restritiva de direito na forma de ________cestas alimentares básicas, a serem revertidas a pessoas carentes, Instituições de Caridade e similares, lavrando-se termo respectivo, tudo nos termos do art. 76 e §§ da Lei nº 9.099/95”.
Até nos darmos conta do equivoco citado acima, fizemos a proposta no bojo de vários Inquéritos e Ações Penais referentes a furto, receptação, homicídio culposo e outros cujas penas mínimas eram de dois anos de reclusão ou detenção ou ainda que o patamar da tentativa levasse a esse resultado.
O Juiz titular recebeu todas as propostas e determinou a intimação dos beneficiados e, o Promotor de Justiça em atuação junto ao mesmo Juízo passou também a ofertar as mesmas propostas transacionais, foi um erro generalizado.
Qual foi a nossa surpresa, noventa por cento dos autores dos fatos compareciam em Juízo e aceitavam as propostas, cumprindo à risca os acordos, nove por cento não eram localizados e apenas um por cento não aceitava o acordo.
Quanto aos Inquéritos, eles terminavam ali, no momento em que o ofensor aceitava cumprir antecipadamente sua pena, fechava ali qualquer discussão a respeito de haver ou não elementos para oferecimento de denúncia, cabia ao autor do delito decidir, pois só ele era senhor absoluto da verdade com relação ao crime.
Quanto às Ações Penais, também seguiam o mesmo destino, aceita a proposta, não mais era discutido o mérito da causa e cumprida a pena antecipada, era julgada extinta a punibilidade.
Foi surpreendente constatar como as pessoas indiciadas ou acusadas dos citados crimes compareciam e aceitavam pacificamente as propostas de transação penal, a negativa era rara.
No entanto, pouco tempo depois, o Ilustre Juiz percebeu o engano e imediatamente revogou todas as propostas oferecidas e que ainda estavam em curso.
Foi um equívoco passageiro, mas suficiente para que pudéssemos observar que a grande maioria das pessoas que cometeram aqueles tipos de crimes era composta de cidadãos comuns, que queriam pagar pelo que fizeram e o faziam até com um certo alívio.
Passamos a questionar, até que ponto podemos fazer uma pessoa sofrer longa espera pela solução de um inquérito, onde é indiciada ou de um processo onde figura como acusada?
É evidente que se a Lei nº. 10.259/01 tivesse realmente ampliado o conceito de infração de menor potencial ofensivo no tocante aos delitos, cujas penas mínimas não fossem superior a 02 (dois) anos, teríamos o mesmo resultado satisfatório que nos trouxe a Lei nº 9.099/95, pois a exata medida da pena é o prejuízo que o crime causa à sociedade.
A Lei nº. 9.503/97 que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro admite a transação penal com relação aos crimes de trânsito de lesão corporal culposa, embriaguez ao volante e de participação em competição não autorizada, cujas penas são, respectivamente, detenção de 06 (seis) meses a 02 (dois) anos, detenção de 03 (três) meses a 03 (três) anos e detenção de 06(seis) meses a 02 (dois) anos.
Esses avanços do Legislador comprovam, na prática, que o que inibe a ocorrência de crimes não é o rigor da pena, mas sim a certeza da punição.
Dessa forma, verifica-se uma tendência de cada vez mais se ampliar a possibilidade de transação penal entre Acusados e Ministério Público.
Uma prova disso é a recente edição da Lei nº 10.741 de 01.10.2003, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso, que admite no seu artigo 94 a aplicação da Lei nº 9.099/95 aos crimes ali previstos, cujas penas máximas de privação da liberdade não ultrapassem 04 (quatro) anos.
Já existem outras discussões a respeito da ocorrência ou não de mais uma ampliação conceitual de menor potencialidade ofensiva, diante do novo limite cominatório acima citado, passível de irradiação para outras infrações previstas em diferentes leis e dispositivos. Ao que parece, tudo tende para isso.
No dizer de Beccaria, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias referidas, proporcionada ao delito e determinada pela lei. O método incerto da autoridade severa apenas produz uma obediência hipócrita e passageira.
CONCLUSÕES FINAIS
Está comprovado que com as edições das Leis nºs. 9.099/95, 9503/97, 10.259/01 e 10.741/03, a humanização no tocante a resposta penal tem funcionado satisfatoriamente na prática, trazendo bons frutos, resumindo-se no trinômio consensualidade-celeridade-efetividade.
As penas alternativas tornam mais célere a Justiça trazendo credibilidade para a Sociedade, além de ser efetivamente prestada a tutela jurisdicional.
O que previne a ocorrência de crimes não é somente a ameaça da pena, mas sim a certeza de sua aplicação.
Em espetacular trabalho apresentado no dia 28 de maio de 2004 no XXIII Encontro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o Ilustre Promotor de Justiça Alex Sandro Teixeira da Cruz, do Ministério Público de Santa Catarina, assim se pronunciou a respeito das penas alternativas com transações penais.
Sustentou a necessidade da remoção das limitações quanto aos crimes em que a transação é possível, bem como quanto à natureza da medida transacional tolerada, a fim de que se chegue, em termos de Justiça Criminal Brasileira, a níveis de excelência que, talvez, sequer se obtenha em países considerados de primeiro mundo, introduzindo-se sistema de regrada negociabilidade transacional, mediante as alterações constitucionais e infraconstitucionais imperativas, obviamente jungida a certos princípios indeclináveis.
Argumenta, ainda o Douto Colega que não parece haver, prima facie, entrave pétreo no âmbito da constitucionalidade para a introdução de um sistema de ilimitação transacional no plano tipológico, semelhante ao plean bargain estadunidense. Embora o constituinte tenha expressamente contemplado o instituto da transação aos crimes de menor potencial ofensivo (artigo 98, inciso I), nenhum empecilho se detecta a que, na esteira do caminho já trilhado pelo legislador ordinário nas mencionadas leis nº 9.503 e 10.741, se estenda a perspectiva para todos os crimes, inclusive quando a medida pactuada incursionar, também, no campo da privação da liberdade.
Concluindo, finalmente, o Ilustre Promotor que, embora a Constituição da República, em seu artigo 5º, garanta a não exclusão da apreciação, pelo Poder Judiciário, de lesão ou ameaça a direito (inciso XXXV), assim como que ninguém será processado nem sentenciado senão por autoridade competente (LIII) e que ninguém será privado de sua liberdade e de seus bens sem o devido processo legal (LIV), o ato transacional, por si só, talvez seja o único a, verdadeiramente, tornar tais garantias fundamentais efetivas.
Como visto, as penas alternativas não só funcionam como também colaboram para diminuir o índice de criminalidade, fortalecendo a confiança de todos na Justiça.