Permissão e concessão de serviço público

31 de outubro de 2009

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Palestra proferida no V Seminário – Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo, realizado pela Emerj

Estou aqui para falar sobre um tema que é, na realidade, um comentário à lei que disciplina as permissões e as concessões de serviço público. Queria lembrar a todos, principalmente, o valor que me parece fundamental para que a gente examine qualquer direito. Esse valor é a segurança, que certamente é o objetivo maior de todo o reino animal. Qualquer animal, todo animal, tem preocupação com a sua segurança. Desde a caverna o homem sempre procurou abrigo em busca da segurança.
A ânsia por segurança terminou introduzindo em nós uma qualidade que hoje está inserida de tal forma em nossa mentalidade que a falta dela é talvez o grande motivo, o maior dos sofrimentos que o homem pode enfrentar, que é a solidão. O gregarismo é resultado certamente da busca de segurança. A busca de segurança levou o homem a se agrupar na cidade, e a cidade fez com que o homem conseguisse a segurança externa. Na cidade, ele teve condições de enfrentar os seus inimigos, tanto de outras tribos, como também dos próprios animais ferozes. A cidade deu força ao homem, mas na medida em que se conseguiu a segurança externa, surgiu então a insegurança interna, a implantação da lei do mais forte.
Com um passo à frente, os homens passaram a eleger líderes que faziam o papel de juízes e de moderadores da violência dos outros. Mas como o poder corrompe e o poder absoluto corrompe de forma absoluta, esses líderes em pouco tempo se transformaram em tiranos, e a insegurança interna voltou a reinar. Veio uma outra entidade que é fundamental na nossa evolução e que terá sido uma das grandes invenções do gênero humano, que é a República. Na República, os bens da vida que eram propriedades, que eram geridos de forma absolutamente descontrolada pelos monarcas se transformaram em coisa de todos, a res publica; e para que isso acontecesse, o soberano, o rei, o duque, o arquiduque, o imperador se transformaram em mandatários, e o poder se transfere para o cidadão; quem era súdito se transformou em cidadão. Esse, certamente, é o maior motivo de comemoração quando se fala do meu conterrâneo, o Marechal Deodoro da Fonseca. Não pessoalmente, mas quando se fala na Proclamação da República, a grande modificação que tivemos é que deixamos de ser súditos de um rei que era bom, de um imperador que era sábio, mas nós éramos súditos deles e  trouxemos então um presidente, um governador mandatário, que se tornou mandatário.
O Estado de Direito republicano me parece que é o pai das grandes invenções. Ele tornou possível o progresso da humanidade e se baseia fundamentalmente em alguns princípios que são essenciais: uma Constituição, uma lei que deveria ser enxuta para ser perpétua, para ser perene e imutável; o princípio da reserva legal, segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei, lei que necessariamente há de coincidir, há de se submeter aos princípios, aos dispositivos da Constituição; e, o outro dispositivo que me parece extremamente importante para quem é magistrado, principalmente, é o princípio da inacumulabilidade de funções. A entidade Estado acumulou três funções: a legislativa, que é aquela que produz as normas, que devem ser observadas pelo cidadão; a administrativa, que é a que aplica as leis; e a jurisdicional, que sempre imaginei que devesse ser assim: o juiz em primeiro lugar é uma função inerte, só atua quando provocado; em segundo lugar, o juiz deve julgar segundo a lei. E aí, observo algo que tem me preocupado muito, que é a tendência atual de julgar segundo princípios. Há uma frase que me parece que foi lançada com um propósito e ultrapassou e muito a alçada intelectual de quem a lançou, o intuito de quem a lançou. É uma frase que diz: “é mais grave ofender com princípio do que ofender com a lei”. Parece-me que não podemos dar a este preceito um alcance maior do que ele deve ter. Na verdade, os princípios devem ser apreendidos pelo legislador que os transforma em lei e que deve reger, segundo aquele princípio que falei, o da reserva legal, a conduta dos cidadãos. O juiz deve se conter à lei. Os princípios somente na omissão da lei; é o que diz a Lei de Introdução ao Código Civil, é o que deve ser levado fundamentalmente em consideração.
A preocupação que tenho com isso é que quando se quebra essa regra da inacumulabilidade de poderes, instaura-se uma anomalia dentro da República, que é a Ditadura. A Ditadura não é nada mais nada menos do que um poder acumular mais de uma função. O juiz deve julgar, assim como o legislador deve legislar e o administrador administrar. É assim que deve ser e é assim que o Estado de Direito republicano deve funcionar; e só funciona bem se assim for. Assim funcionando, e eu digo que a grande invenção da humanidade foi a República, trouxemos para nós, para a humanidade, um atributo que põe em harmonia o próprio universo. Aquelas leis que foram detectadas por Newton, por Einstein e por outros sábios. Essas leis é que põem em equilíbrio os astros, porque, nós sabemos, utilizando-as podemos dar um tiro para mandar uma nave ao planeta Marte, dar um tiro numa situação normalmente oposta àquela em que está o planeta, mas sabemos que naquele momento em que o projétil que lançamos da Terra se aproximar do planeta Marte, ele estará em determinada posição. E assim é na sociedade organizada. O cidadão, o indivíduo, precisa saber que determinada atitude dele produzirá determinada consequência. Quem mata sabe que cometeu um crime e que, por conta disso, deverá sofrer uma sanção que pode ser a perda da liberdade e outras mais. Então, digo que nós juristas, em última instância, estamos para a sociedade assim como o físico está para a astronomia.
Esta física social é que traz para o homem aquele valor que ele sempre perseguiu: a segurança. A segurança jurídica é realmente a individual, e essa segurança só se torna viável, só se realiza quando passamos a exigir a estrita observância ao dispositivo legal. Quando se foge disso, quando a gente pensa em fugir para julgar segundo princípios abstratos, o que já vi alguns colegas fazerem quando judicavam. Hoje há juízes que começam a tirar princípios da algibeira, da lapela, e com esses princípios eles conduzem o cidadão à absoluta perplexidade. Isto é uma forma de Ditadura; e eu acho a pior das ditaduras, que é a ditadura judicial. Nós precisamos, como juízes, ter extremo cuidado com isso. A tal juizite é algo extremamente prejudicial, e principalmente à própria segurança do Poder Judiciário. Vamos julgar conforme as leis, de acordo com as leis. É verdade que o juiz não é um mero leitor da lei. Eu diria que o juiz é, na verdade, o piloto da lei, ele conduz, interpreta e a aplica de acordo com os fins sociais para os quais ela foi concebida. Acho que essa é a coisa mais nobre da função jurisdicional.
A partir desta estrutura do Estado Republicano, o Estado percebeu que existem, já na seara administrativa, serviços que atendem de forma coletiva a cada um dos indivíduos, e esses serviços foram chamados de serviços públicos. Não há uma relação fechada dos serviços públicos; eles vão surgindo. Há cento e poucos anos não se cogitava a existência do serviço público de telefonia. Assim como há menos de 50 anos não se pensava no serviço público da informática, da internet. E a relação do serviço público vai crescendo, vai surgindo à medida que vamos avançando na tecnologia. Daqui a pouco teremos serviço público de viagens à Lua ou a Marte. É bem possível que os nossos netos já consigam até cogitar da regulamentação desse tipo de serviço público. Mas o Estado percebeu que os serviços públicos não devem ser ministrados estritamente por ele; para fugir ao gigantismo da estrutura, resolveu delegar a execução desses serviços a empresas especializadas, surgiram então as concessões; em cujo gênero cabe um outro, que é a permissão. Eu me lembro que era um terror na área dos concursos, isso antes do Decreto-lei 200, na prova de Direito Administrativo, uma questão para definir o que é permissão, o que é concessão e o que é autorização. A definição era absolutamente arbitrária e deixava os pobres dos concorrentes com uma insegurança brutal. Mas, na verdade, parece-me,  e sempre pensei isso, que a diferença entre concessão e permissão é que a permissão é um gênero de concessão em que a autorização para executar o serviço público é precária, em suma, não obedece a prazos. No meu ponto de vista, essa é a definição fundamental em relação a isso.
Em se tratando de transportes rodoviários, o Brasil começou sem regulamentação, não havia sequer permissões. Peguei um tempo em que lá em Alagoas, antes até dos ônibus começarem a circular pelo interior, as estradas eram precárias e tínhamos lá o boleia larga. Era um caminhão que eles ampliavam com madeira a cabine e o motorista levava 3 ou 4 pessoas de cada lado. Então, quem não viajava na carroceria viajava na boleia larga. Os colombianos ainda usam muito esse sistema. Por isso, o serviço de transporte rodoviário no Brasil começou tocado por pioneiros. Eram pessoas, motoristas que conseguiam comprar um caminhão, colocavam nele algumas tábuas e geraram aquele velho e tão poético, poético para nós que estamos longe, mas devia ser extremamente duro viajar de Alagoas para cá num pau de arara. Do pau de arara se gerou o serviço de ônibus, e fez com que o Brasil tivesse um dos serviços de ônibus que a gente custa até a acreditar. São ônibus de melhor qualidade, mais seguros do que na grande maioria até dos países desenvolvidos. É uma coisa que inclusive deve gerar orgulho para nós. É o trabalho proveniente desses pioneiros. E um desses pioneiros eu gostaria até de destacar aqui, porque foi com quem tive mais proximidade, de quem fui advogado, e é um dos meus clientes na minha primeira fase de advocacia, que se chama Nélio Raimundo de Almeida. Esse homem começou com um pau de arara, começou ele dirigindo, dizia que era uma coisa terrível, dirigia quase que dormindo, mas trazendo gente para cá, e hoje é um empresário de porte médio e com segurança, com perseverança e, principalmente, com algo que é até difícil de a gente conceber: um homem rico que tinha seus princípios interessantes. Ele se hospedava em Brasília, num hotel, na cidade satélite de Taguatinga, porque achava que não podia gastar; e uma vez eu disse: mas, Nélio, você vive viajando de um lado para outro, por que você não compra um avião? Não, doutor. Se eu comprar um avião, vou fazer como eu fazia antes. Eu precisando ir para qualquer lugar, tendo o avião, vou fazer o piloto viajar dormindo, vou fazer o avião viajar sem ter feito revisões, e por isso já perdi muita gente. É um homem dessa sabedoria. A sabedoria gerada no trabalho, gerada na experiência.
Entretanto esse pioneirismo começa a ultrapassar o limite admissível para nós. O Estado, então, se preocupa em regulamentar, em estruturar de forma definitiva o serviço rodoviário no Brasil. E, por isso, destaco aqui o Decreto nº 952 de 1993, que estabelecia para essas permissões um prazo de sobrevida de 15 anos, prorrogável por outros 15. O pioneiro se transformou em permissionário, e o que era permissão se transformou por esse decreto, no meu ponto de vista, em concessão. Passou a ser a execução de serviço público com prazo determinado e sem o vício da precariedade. Veio depois o Decreto 2.521 de 98, que acabou com esse direito à prorrogação. Simplesmente disse que não havia mais prorrogação. E daí surge a questão fundamental aqui. Esse Decreto 2.521 é corolário, é regulamentador da Lei 8.987/95, que de sua vez não fez referência à extinção dessa prorrogação. E, por último, ela veio a ser modificada pela Lei 11.445/2007.
Essa lei, em suma, diz que as concessões precárias e as que tiverem o prazo vencido valerão por tempo necessário à realização de levantamentos e avaliações. Na verdade, a lei é de uma imprecisão muito grande, mas o que de fato ela faz é condicionar a prorrogação a um “desde que”, e o “desde que” diz que o levantamento seja o mais amplo possível, que o acordo entre Estado e concessionário para indenização de eventuais créditos e que haja uma publicação de ato formal, e por último o artigo 4º diz que se não houver aquele acordo, o cálculo será feito com base em critérios previstos até o pagamento de indenizações. O que essa lei fez, em suma, foi declarar a possibilidade de uma desapropriação; e com muito cuidado, embora com muita imprecisão, o legislador declarou que essa desapropriação do direito à execução do serviço público só se consumará — isto está no parágrafo 4º, a meu sentir, e no parágrafo 5º — com o pagamento dessa indenização que precisa ser calculada a partir daqueles levantamentos.
Por isso, o que eu percebo é que na verdade, apesar de, aparentemente, o administrador, o Ministério dos Transportes, haver declarado extintas essas permissões e essas concessões, elas, na verdade, nos termos da lei, permanecem; e bem por isso eu, nos estertores da minha jurisdição, tive a oportunidade, e não me arrependo, faria novamente, de conceder uma decisão liminar em um processo de mandado de segurança para afastar esse dispositivo do legislador, esse ato administrativo que declarava extintas as concessões de transportes rodoviários para que se fizessem imediatamente licitações para a outorga de nova concessão.
O meu entendimento — e eu não sei como o Superior Tribunal de Justiça irá decidir isso, e acho que precisa decidir com urgência — é que enquanto não se houver exaurido aquele prazo de 15 anos das prorrogações, desde que ele tenha sido exercido, ele precisa ser respeitado, não em virtude somente do direito adquirido mas fundamentalmente porque esse é o espírito da última reforma sofrida pela Lei 8.987/95, a partir dos dispositivos finais da Lei 11.445/07. Penso, e estou seguro que assim é, que isto não é uma simples benesse àqueles pioneiros, atuais empresários de serviços públicos, e, sim, a consequência da segurança jurídica a esses homens crentes de que os seus 15 anos seriam prorrogados. Porque quando se decidiu pela prorrogação, estabeleceram-se alguns requisitos, e quem os cumpriu tem induvidosamente o direito a essa prorrogação. No entanto, tem mais ainda, quem contou com isso, e aí vem a segurança jurídica, fez investimentos para manter durante tanto tempo a fim de continuar esse serviço com uma qualidade aceitável para cumprir até o encargo que assumiram quando passaram a exercer essa licitação, acredito que assim deve ser.
Recomendo, a quem quer se aprofundar em relação a isso, a leitura de um parecer extremamente bem elaborado pelo meu ex-colega de Tribunal, o Ministro Evandro Leite Gueiros, que é um primor de segurança e de concisão e traduz com muito mais perfeição o que acabo de relatar. O que me parece que é a boa doutrina, a boa orientação para que nós possamos homenagear a segurança jurídica. Eram essas as observações que eu queria fazer.