Pesquisa empírica e o aumento de transparência do sistema de Justiça

30 de abril de 2023

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Desde a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pela Emenda Constitucional nº 45/2004, há um paulatino movimento de ampliação da transparência e accountability do Judiciário brasileiro, que sofria críticas intensas à descoordenação entre os múltiplos tribunais existentes, cuja autonomia mal utilizada transformava a Justiça brasileira num arquipélago de ilhas soberanas que impedia a coordenação da sua administração. Tornou-se quase lugar-comum verberar sobre a necessidade de enfrentar a opacidade da Justiça, abrindo “a caixa-preta do Judiciário”. É dentro dessa perspectiva que o CNJ tem atuado no aperfeiçoamento da governança judiciária, com o escopo de gerar dados confiáveis sobre a Justiça que aprimorem o controle institucional e o de prestação de contas à sociedade.

A produção e a gestão de dados fidedignos pelo Judiciário são fundamentais para a implementação de políticas públicas judiciárias baseadas em evidências que garantam aos cidadãos o acesso à Justiça e à prestação jurisdicional de qualidade em tempo razoável. Os argumentos que desenvolvo nestas notas são de que a pesquisa empírica em Direito pode contribuir substancialmente para o conhecimento da realidade do sistema de Justiça e de que as escolas judiciais e de magistratura, em articulação com a academia, têm um papel a desempenhar no aperfeiçoamento da gestão da justiça, participando de projetos de investigação empírica no campo judicial. São reflexões iniciais para o debate e aprofundamento do tema.

A produção de estatísticas judiciais sempre esteve na agenda do Judiciário, embora com objetivos mais modestos, pois basicamente se restringia à contabilização dos processos em tramitação em cada órgão do Poder Judiciário, a fim de proporcionar informações às corregedorias para mensuração do trabalho jurisdicional. Cada tribunal produzia dados de acordo com critérios de classificação próprios que nem sempre eram semelhantes aos de outros tribunais congêneres.

Esse modelo fragmentado e limitado de geração de dados tem-se alterado consideravelmente com as ações empreendidas pelo CNJ para a unificação dos sistemas de processamentos de dados em todas as unidades jurisdicionais, com a padronização de critérios de classificação processuais, a fim de produzir informações mais precisas que permitam tanto o acompanhamento efetivo do desempenho dos órgãos judiciários como o diagnóstico de problemas.

A Base Nacional de Dados do Poder Judiciário (DataJud) tem sido construída desde 2015, quando o CNJ passou a receber microdados processuais com base no modelo nacional de interoperabilidade, que permite o compartilhamento de metadados processuais, vale dizer: informações estruturadas dos processos judiciais. Com a Resolução nº 331/2020 do CNJ, o DataJud tornou-se a fonte primária de dados do Sistema de Estatísticas do Poder Judiciário.

Há um permanente trabalho de correção de inconsistências para que a base de dados se constitua numa fonte confiável e possa fornecer subsídios para o processo decisório de administração da Justiça e para estudos e pesquisas. Dentro desse objetivo, recentemente, o CNJ editou a Resolução nº 462/2022, que cria a Rede de Pesquisas Judiciárias (RPJ) e os Grupos de Pesquisa Judiciária (GPJs) para “zelar pela consistência e integridade das bases de dados dos tribunais”.

 Além dessa competência fundamental de garantir a higidez dos dados coletados e produzidos pelo Judiciário, aos GPJs foi atribuída a missão de “fomentar a produção de pesquisas empíricas em Direito em articulação com as instituições de ensino superior locais”, bem como “estabelecer, sempre que necessário, rede de articulação com as escolas judiciais e de magistratura, centros de inteligência, laboratórios de inovação, universidades, instituição de ensino superior e/ou de pesquisa”.

Geralmente predomina no Direito a pesquisa de caráter bibliográfico, que trabalha com argumentos e refutações que têm por objeto as normas jurídicas e os possíveis sentidos normativos que hermeneuticamente se extraem delas, os quais servem para a elaboração conceitual da dogmática jurídica, conforme a tradição kelseniana, que constrói o estatuto metodológico do Direito na separação do ser e do dever-ser, reservando ao Direito o campo do dever-ser, o que exclui do universo epistemológico dessa disciplina as observações sistemáticas da realidade social, que seria o espaço próprio de outras ciências humanas ou, quiçá, da sociologia jurídica.

Contudo, há algum tempo tem ganhado terreno na pesquisa em Direito um olhar cognoscível mais aberto ao exame sistemático da realidade, no qual a identidade metodológica do Direito não se resume ao campo exclusivo do dever-ser. Há comunidades epistêmicas no Direito estruturadas em torno da possibilidade teórica de que “a pesquisa empírica seja em Direito, e não apenas com o Direito ou sobre o Direito” o que demanda “uma concepção do Direito que o compreenda como algo que pode ser observado para além de construções doutrinárias e normas positivadas”, conforme argumenta José Roberto Xavier.

Cada disciplina – saber organizado em torno de um objeto – demarca aspectos da realidade social como próprios do seu campo epistemológico. Porém, a delimitação do domínio de investigação de cada disciplina está condicionada pela perspectiva teórica adotada pelo sujeito cognoscente.

Só para ficar numa dualidade conhecida na teoria geral do Direito, se a visão kelseniana limita metodologicamente o direito ao dever-ser, na tradição da corrente realista de Alf Ross não há essa distinção radical, podendo o fenômeno jurídico comportar tanto “o conteúdo abstrato das normas como o Direito em ação”. Dentro das múltiplas perspectivas pela qual o Direito pode ser objeto de compreensão, a pertinência ou não da pesquisa empírica depende desse ponto de partida teórico. Contudo, a análise empírica do fenômeno jurídico implica frequentemente uma interdisciplinaridade de objetos, métodos e técnicas de pesquisas com outras disciplinas das ciências humanas.

A pesquisa empírica visa a produção de conhecimento científico com base em observações rigorosas da realidade, produzindo ou coletando dados, que permitam descrever, explicar e analisar os fenômenos sociais e jurídicos que são objetos de problematização no sistema de justiça. Um ponto importante na compreensão da “realidade” é que, por mais rigorosos que sejamos metodologicamente no processo de investigação, o nosso conhecimento sempre será parcial e aproximado, pois representa um recorte da totalidade, ou seja, aquilo que o olhar do observador elegeu como inquietante, enigmático e problemático que justificasse a pesquisa.

Entre as diretrizes de formação de magistrados propostas pela Escola Nacional de Formação e Aprimoramento de Magistrados (Enfam) encontra-se a recomendação de que, nas atividades pedagógicas, o magistrado seja “protagonista da sua aprendizagem, superando a postura de mero espectador” e que o processo de construção do conhecimento seja marcado pela interdisciplinaridade e reflexão crítica, integrando saberes de diversos campos de conhecimento.

O trabalho com pesquisa empírica exercita competências do magistrado que articulam teoria e prática e substituem as certezas por dúvidas, problematizando a realidade do seu ambiente de trabalho. Para tanto, é necessário desenvolver um olhar de estranhamento dos espaços que lhe são próximos, o que Roberto Da Matta denominou de “transformar o familiar em exótico”. É esse exercício de distanciamento que possibilita a desnaturalização de práticas petrificadas que servem apenas para legitimar o status quo.

Creio que a Resolução nº 462/2022 propõe grandes desafios para as escolas judiciais e de magistrados: produzir conhecimento e estudos sobre políticas judiciárias e práticas profissionais com base em evidências extraídas de metadados que são administrados pelo Judiciário, bem como a exploração cognitiva de outras áreas de atuação institucional, que ainda são carentes de maior conhecimento. Esse trabalho certamente será mais proveitoso se for realizado em parcerias com instituições de ensino superior que possuem experiência na realização de pesquisas empíricas.

Em suma, construir uma agenda e uma cultura de pesquisa no âmbito dos tribunais entre a rede de pesquisa judiciária e a comunidade científica, que articulem o olhar interno dos magistrados com o olhar externo da academia, tem o potencial de maximizar significativamente o diálogo reflexivo e crítico sobre o sistema de Justiça, além de revelar e analisar um Direito que se realiza nas práticas cotidianas da atividade judicial.

NOTAS__________________________

1 BRASIL. Emenda constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004. Altera dispositivos dos artigos 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os artigos 103-A, 103B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2004. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc45.htm. Acesso em 16/2/2023.

2 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Resolução nº 331, de 20 de agosto de 2020. Institui a Base Nacional de Dados do Poder Judiciário (DataJud) como fonte primária de dados do Sistema de Estatística do Poder Judiciário (SIESPJ) para os tribunais indicados nos incisos II a VII do art. 92 da Constituição Federal. Brasília, DF: CNJ, 2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original191747202008255f4563db846dc.pdf. Acesso em 16/2/2023.

3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Resolução nº 462, de 6 de junho de 2022. Dispõe sobre a gestão de dados e estatística, cria a Rede de Pesquisas Judiciárias (RPJ) e os Grupos de Pesquisas Judiciárias (GPJ) no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Brasília, DF: CNJ, 2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1957532022060862a0ff41cae4d.pdf. Acesso em 16/2/2023.

4 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Resolução nº 462, de 6 de junho de 2022. Dispõe sobre a gestão de dados e estatística, cria a Rede de Pesquisas Judiciárias (RPJ) e os Grupos de Pesquisas Judiciárias (GPJ) no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Brasília, DF: CNJ, 2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1957532022060862a0ff41cae4d.pdf. Acesso em 16/2/2023.

5 Um bom exemplo é a Rede de Pesquisa Empírica em Direito (REED), criada em 2011, que promove eventos e cursos e publica, semestralmente, a Revista de Estudos Empíricos em Direito.

6 XAVIER, Jose Roberto. “A pesquisa empírica e o Direito”. Rio de Janeiro: Autografia, 2018. p. 39.

7 Ibid., p. 49.

8 DA MATTA, Roberto. “O ofício de etnólogo, ou como ter anthropological blues”. Boletim do Museu Nacional: Antropologia, nº 27, p. 5, maio 1978.