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Planejamento Estratégico do Poder Judiciário

30 de novembro de 2011

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Há muitos milhões de anos, quando se iniciou a vida em nosso planeta, começou a luta pela sobrevivência das espécies.  Em um ambiente predominantemente hostil, somente os mais aptos sobreviveram, segundo a clássica observação de Charles Darwin, pioneiro do estudo da evolução das espécies.

Os seres irracionais, ao contrário dos racionais, não tinham nenhuma estratégia para garantir a sua sobrevivência. A permanência na Terra de algumas espécies de animais resultou do processo de seleção natural, que não se sujeita a um programa pré-estabelecido. Dá-se ao acaso, conforme os caprichos da natureza, conjugados às leis da genética e regras da probabilidade. Apenas os mais capazes, ou seja, aqueles que melhor se adaptaram às condições adversas do meio ambiente é que conseguiram sobreviver, enquanto os menos aptos pereceram.

Já a sobrevivência do Homo sapiens e de sua descendência não dependeu apenas da sorte ou do acaso, mas deveu-se ao emprego de distintas estratégias que possibilitaram a perpetuação da espécie humana. Os seres humanos aprenderam a antecipar racionalmente as suas ações a curto, médio e longo prazo, de modo a atingir os objetivos desejados ao menor custo possível do ponto de vista material e pessoal. Eles apreenderam, dentre outras habilidades, a caçar, pescar e guerrear de forma cada vez mais eficiente, antecipando possíveis êxitos e eventuais falhas resultantes de suas ações. E, nesse exercício de antecipação racional, sempre buscavam surpreender suas presas ou seus inimigos.

Planejamento estratégico, portanto, em sua acepção mais simples, consiste em antecipar racionalmente as ações visando a atingir determinados objetivos do modo mais econômico possível. Significa, em suma, prever os distintos cenários que o futuro pode  materializar, identificando, em tempo hábil, eventuais ameaças ou possíveis oportunidades.

A palavra “estratégia” vem do termo grego strátegos, que identificava, na Grécia Antiga, um comandante militar, um general. Depois, passou a significar a “arte militar”, isto é, o conjunto de habilidades que permitia vencer o inimigo mesmo diante de condições adversas. Ao tempo de Péricles, no século V a.C., a expressão passou a compreender também a “arte de governar”, de usar o poder com eficiência.

A estratégia, portanto, desde o passado remoto, não se restringe apenas ao campo militar, embora ainda encontre nele a sua maior expressão.  Resulta, é certo, das constantes lutas e guerras que os homens travaram entre si ao longo dos séculos, as quais fizeram com que os comandantes militares abandonassem o voluntarismo e passassem a refletir mais detidamente antes de agir. Fazendo o raciocínio preceder a ação, os generais logo perceberam que nem sempre se mostra necessário empregar a força para ganhar uma batalha. O chinês Sun Tsu, um dos maiores estrategistas de todos os tempos, que viveu há cerca de 2.500 anos, foi um dos primeiros a constatar que “a maior habilidade de um general é vencer o inimigo sem luta”. Um de seus discípulos mais renomados, o general vietnamita Ngo Giap, que viveu séculos depois, colocou em prática essa filosofia para derrotar os americanos na Indochina, nos anos 70 do século passado, mediante táticas de guerrilha, que exigem um engajamento mínimo de tropas.

Também o Ocidente foi berço de importantes estrategistas, a começar por Alexandre Magno e Julio César, na Antiguidade, passando, na Idade Contemporânea, por Napoleão Bonaparte e pelo Duque de Wellington, militar britânico que derrotou o famoso general francês na batalha de Waterloo.  Nessa linhagem de grandes comandantes, destaca-se ainda Carl von Clauzewitz,  soldado prussiano,  do século XVIII, que escreveu o clássico Da Guerra, do qual consta a famosa assertiva, sempre lembrada  pelos estudiosos da estratégia: “A guerra é a continuação da política por outros meios”.

No mundo atual, porém, em que os embates entre as nações são levados a efeito por métodos cada vez mais dissimulados, especialmente a partir da “Guerra Fria” travada entre os Estados Unidos e a União Soviética na centúria passada, a frase mais apropriada para tratar do mesmo tema seria: “a política é a continuação da guerra, por outros meios”.  Nesse campo, aliás, um dos grandes mestres foi Maquiavel que escreveu, em 1513, uma obra famosa, O Príncipe, em que pretendia ensinar a “arte de governar” a Lorenzo de Médici, o Duque de Urbino, baseando-se na antiga máxima romana salus rei publicae suprema lex esto.  Ou seja, para ele toda a ação do governante é legítima quando está em jogo a sobrevivência do Estado. Tal concepção, que hoje é aceita com reservas, explicava-se, à época, pela necessidade de garantir-se a ordem e a paz social, em um ambiente militar e politicamente conturbado.

A estratégia desenvolvida para vencer disputas militares e políticas passou a ser empregada também, mutatis mutandis, no ambiente empresarial, particularmente nos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial. Deve-se ao professor russo Igor Anzoff, naturalizado americano – que nos anos 60 ensinava na Brown University – a ideia de aplicar o planejamento estratégico ao mundo dos negócios. A partir de sua experiência profissional em uma fábrica de armamentos, Ansoff cunhou a expressão “estratégia empresarial”. Antes dele o termo “estratégia” jamais havia sido utilizado junto à palavra “empresa”. Em 1965, ele aprofundou o tema no livro Business Strategy, primeiro best-seller na área de Administração.

Ansoff levou para a gestão empresarial o conceito pioneiro segundo o qual o planejamento estratégico não pode constituir mera extrapolação de situações passadas, mas deve permitir, a partir delas, que sejam antecipados criativamente possíveis cenários futuros. Um exército, dizia ele, não ganha uma guerra a partir do estudo de batalhas pretéritas, porém antevendo embates que estão por vir.

O conceito de planejamento ou gestão estratégica, desde então, transitou por fases distintas no Brasil e no exterior: (i) nas décadas de 80 e 90, o termo da moda era “engenharia” ou “reengenharia”; (ii) a partir do final dos anos 90 e no início deste século passou-se a falar em “arquitetura”, em razão dos conceitos desenvolvidos na área de Tecnologia da Informação (arquitetura de sistemas, por exemplo); e (iii) hoje, emprega-se a expressão design.

Essa última expressão condensa uma teoria elaborada por Bruce Mau, um designer canadense, para o qual o planejamento serve para “desenhar” o futuro. Mau foi contratado pela Prefeitura de Tokyo para “repensar” a cidade, porque ela deixou de reter e atrair  japoneses jovens, especialmente aqueles com maior potencial intelectual em que a comunidade havia investido mais. Dentre os livros em que ele desenvolve essas ideias destaca-se o conhecido Megatrends.

Para Mau é possível  “construir”  o futuro, por meio do planejamento, mas é preciso, antes disso, “conceber” o seu design, para que ele tenha a nossa “cara” ou o nosso “jeito”. Para tanto, o primeiro passo é entender o momento no qual vivemos e o quê realmente está acontecendo no mundo e de modo especial em nosso meio. Outro aspecto que Mau destaca é que atualmente as soluções para os problemas não são mais individuais, mas coletivas.

Disso tudo se conclui que ninguém planeja por planejar e nem elabora uma estratégia apenas pela estratégia, como se fosse um simples jogo. A falta de uma estratégia ou a adoção de uma estratégia inepta pode colocar em xeque a sobrevivência de um exército, uma empresa, uma instituição ou uma nação inteira. A própria vida individual, sem o emprego de uma estratégia minimamente eficiente, pode levar ao insucesso profissional, à insolvência financeira, a crises familiares e, não raro, a problemas psíquicos e até mesmo somáticos. Planejar ou pensar estrategicamente constitui, portanto, um imperativo de ordem institucional, bem como de caráter pessoal.

Mas no quê, afinal, consiste o planejamento estratégico? Significa, tout court, conceber um objetivo e coordenar todas as ações para atingi-lo, integrando-as em um conjunto único. As ações singulares, intermediárias, periféricas e circunstanciais, enfim, todas as ações, quaisquer que sejam elas, devem subordinar-se ao fim último colimado, evitando-se a dispersão de esforços.

Mas não é só isso: planejamento estratégico implica também um constante monitoramento das consequências de cada ação de modo a permitir uma pronta correção de rumo, mediante um permanente processo de retroalimentação, conhecido por feedback. Para tanto, os resultados parciais e globais devem ser mensuráveis, permitindo uma avaliação objetiva dos resultados. Claro que para definir objetivos a partir de uma perspectiva “macro” é preciso saber, com precisão, onde é que se quer chegar, ou seja, qual o design do futuro.

No caso do Judiciário, isso significa saber que tipo de instituição que se deseja forjar ou, em outras palavras, qual o “projeto” que se visualiza para ele no século XXI. Será que ainda estamos presos à imagem de um Judiciário concebido no século XIX, na moldura de um “Estado Mínimo”, tal qual cogitado pelos pensadores liberais?  Será que ainda pensamos em um Judiciário como mero solucionador de conflitos interindividuais ou intersubjetivos, cuja produção é medida pelo número de demandas que a instituição consegue resolver dentro de certo lapso temporal?

Em um mundo moderno, pós-industrial, caracterizado, segundo Boaventura Souza Santos, por uma “explosão de litigiosidade”, será que a eficiência do Judiciário pode ser medida apenas por metas de produção?  Será que vamos retroceder ao taylorismo ou stakanovismo, doutrinas empresariais concebidas, respectivamente, nos Estados Unidos e na extinta União Soviética, com base no processo de produção engendrado por Henry Ford para fabricar automóveis em massa, e que serviu de inspiração a Charles Chaplin para produzir o conhecido filme Tempos Modernos, logo após a crise econômica mundial de 1929?

A verdade é que a estrutura e a organização dos Poderes que compõem atualmente o Estado mostram-se claramente inadequadas para a realidade social e política de hoje. A ideia de três Poderes independentes e harmônicos foi concebida teoricamente no século XVIII, por Montesquieu, depois colocada em prática pelos constituintes americanos de 1787, que colocaram em prática o chamado sistema de checks and balances. Buscava-se garantir o Estado Gendarme, instituindo um mecanismo em que um Poder pudesse paralisar ou neutralizar o outro, caso algum deles ultrapassasse determinadas balizas. Vivia-se a época do laissez-faire, laissez passer dos fisiocratas franceses e da “mão invisível do mercado” de Adam Smith, para os quais a ordem econômica era uma ordem natural, sagrada, intocável.

Esse modelo elaborado pelos pensadores liberais manteve-se incólume até os dias atuais. Com a notória exceção do Executivo, que teve de adaptar-se às revoluções sociais, às guerras mundiais, à guerra fria e à globalização, os demais Poderes estacionaram no século XIX. O Executivo, ao contrário, foi obrigado a remodelar-se para responder mais rapidamente aos estímulos vindos de dentro e de fora do sistema. O Legislativo e o Judiciário, ao revés, permaneceram inertes, sendo evidente a sua defasagem ante os anseios e demandas sociais.

O Legislativo – até recentemente composto por representantes de uma elite de iguais – encontra-se paralisado pelas contradições internas. Essa paralisia deriva de sua incapacidade de representar adequadamente os novos interesses e atores que surgiram no cenário político e social. Isso, sobretudo, em razão da obsolescência de nossa democracia representativa e do sistema partidário que lhe é inerente, criados ainda no século XVIII. Hoje, as demandas sociais encontram vazão, cada vez mais, nas chamadas “organizações não-governamentais”, no contexto de uma democracia que alguns denominam de “participativa”.

O Judiciário, além de estruturalmente obsoleto, encontra-se também vergado pelo peso da mencionada “explosão de litigiosidade”. Segundo o CNJ existem cerca de 85 milhões de processos em tramitação nas várias instâncias jurisdicionais do País, sob a responsabilidade de aproximadamente 16 mil juízes. Assolado por uma demanda da qual não consegue dar conta, esse Poder é compelido a adotar, cada vez mais, técnicas “modernas” de gestão para dar cabo desse verdadeiro “trabalho de Sísifo”.

Sintomaticamente, todas as reformas do Judiciário feitas até hoje limitaram-se ao plano processual. Mesmo as de caráter institucional sempre tiveram o escopo de tornar a prestação jurisdicional mais célere, inclusive e especialmente a promovida pela EC 45/2004. Mas, nenhuma delas funcionou, nem vai funcionar, se não colocarmos em prática formas alternativas de solução de controvérsias – dentre elas a mediação, a conciliação e a arbitragem –, se não concebermos um novo design para Judiciário, mais condizente com o tempo presente, melhor adaptado às novas demandas.

Essa visão de futuro, a meu ver, deve contemplar dois planos: um interno e outro externo. No plano interno, penso que a missão fundamental do Judiciário, hoje, é dar concreção aos direitos fundamentais, nessa Era dos Direitos da qual nos fala Norberto Bobbio. Para tanto, é preciso que o Judiciário assuma, sem tibieza, a função de Poder do Estado que a Constituição lhe reserva, participando das decisões mais importantes que afetam a sociedade, como, por vezes, tem ensaiado fazer, não raro com passos um tanto quanto trôpegos.

O Judiciário pode e deve, por exemplo, participar mais ativamente da formulação de políticas públicas no campo da educação, saúde, meio ambiente, relações de consumo, proteção das crianças, adolescentes, idosos e deficientes. Isso seria possível, inclusive, com uma presença maior dos magistrados no processo de elaboração do orçamento público – desde que devidamente provocados – de modo a fazer prevalecer, antes mesmo de sua aprovação definitiva pelos parlamentares, os princípios sobre os quais se assenta a nossa Carta Política.

O Judiciário deve assumir também um protagonismo maior na área externa, à semelhança do que ocorre na Europa, onde os juízes foram os grandes responsáveis pelo processo de integração continental. Em um mundo globalizado, que tende cada vez mais para uma integração regional e planetária, é preciso que os juízes atuem no âmbito novas associações de Estados, a exemplo do MERCOSUL e da UNASUL ou no âmbito dos BRICS e, quem sabe, até mesmo da OEA e ONU, empregando cada vez mais o direito comunitário e o direito internacional em suas decisões. É necessário também que haja uma interlocução maior com os distintos organismos estabelecidos no contexto do direito das gentes, sobretudo com os tribunais supranacionais quanto à aplicação dos tratados de proteção dos direitos fundamentais, inclusive com observância da jurisprudência dessas cortes.

Mas para isso, é preciso, antes de tudo, que o nosso Judiciário, dividido entre as várias instâncias e Justiças especializadas, se transforme em um Judiciário Nacional, dotado de um projeto comum, concebido democraticamente, a partir da audiência de todos os seus integrantes, sem prejuízo das autonomias locais e do princípio federativo.

Para concluir, lembro a conhecida frase de Martin Luther King, proferida em 1963, no bojo de um memorável discurso que fez no Lincoln Memorial, em Washington, capital dos Estados Unidos: “I have a dream”.  “Eu tenho um sonho”. Era, basicamente, um sonho de igualdade e fraternidade para todos os americanos, sem distinção. Os magistrados também devem sonhar. Sonhar com um Judiciário forte e unido que ocupe o lugar de destaque que seus membros merecem no cenário social e político deste País, para que possam, em conjunto e individualmente, colaborar de modo efetivo na construção de uma sociedade mais livre, mais justa e mais solidária.

Enrique Ricardo Lewandowski
Ministro do Supremo Tribunal Federal
Presidente do Superior Tribunal Eleitoral
Professor Titular de Teoria Geral do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo