Poder Judiciário, guardião da Constituição Reflexões

31 de dezembro de 2011

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A reflexão é o movimento do espírito buscando apreender e compreender os fenômenos da realidade. É atividade interna, originariamente, desdobrando-se em verbalização

por signos, fonéticos, escritos ou mímicos.

Juntamente com a sensação, a reflexão é captadora da experiência, considerada a única fonte de conhecimento humano.

O refletir é ato da consciência e é ter à frente o modelo do real ou do aparente e, a partir daí, convergir o pensamento para o apreendido. A compreensão vem depois, e logo, em um terceiro ou último momento, sua exteriorização. É a base do método fenomenológico!

A reflexão não toma a forma concreta, não se erige em
postulado indiscutível; serve, antes de tudo, a proporcionar outras reflexões. É neste enfoque que ousaremos tecer considerações a respeito do Poder Judiciário no momento histórico e constitucional em que vivemos.

Hesse, discorrendo sobre as tarefas fundamentais da Constituição, destaca que suas funções na vida da comunidade se aplicam à formação e à manutenção da unidade política e do ordenamento jurídico. Ao cumprir essas duas tarefas, a Constituição converte-se não só na ordem jurídica fundamental do Estado, mas ainda na da vida não estatal dentro de seu território, ou seja, na ordem jurídica fundamental da comunidade (Temas fundamentais do Direito Constitucional, trad. Almeida, Ferreira Mendes e Mártires Coelho. São Paulo: ed. Saraiva, págs. 3 e 7, 2009).

Perde-se no tempo a discussão: sobre qual poder constituído recairia a guarda da Constituição? Em um século de pleno constitucionalismo, o debate ganhou proporções não só de ordem jurídica, mas acima de tudo política e social.

Ser o guardião da Constituição, por si só, garantiria a concentração de poder político em detrimento dos demais poderes constituídos, trazendo desequilíbrio entre eles.

No regime democrático, a separação dos poderes constituídos é tão cara que se insere em nossa Carta como cláusula pétrea,
logo no artigo 2o, sob o título “Dos princípios fundamentais”.

Com a Revolução Francesa, a doutrina da separação dos Poderes desabrochou, firmando-se como alicerce inicial do positivismo e do constitucionalismo.

Concretizaram-se os postulados da neutralidade, da independência e da autonomia do Poder Judiciário na aplicação do Direito criado pelo Poder Legislativo, atuando como elo
entre a norma abstrata e o caso concreto e diferenciando-se do
Poder Executivo, pois só poderia agir se provocado e nos estritos
termos do caso concreto.

Entretanto, a evolução social, política, econômica e jurídica não mais permite, nos dias atuais, a figura do juiz neutro, porque “o juiz deixa de ser considerado neutro, pois, na sociedade complexa, espera-se dele (e do Estado, em geral) uma concretização de sucessivas gerações de direitos que não têm mais caráter meramente declaratório e de respeito passivo, como nos direitos fundamentais individuais, mas exigem intervenção para serem realizados, como é o caso do direito à saúde e ao meio ambiente. Isso faz o Judiciário assumir também
um papel político, como se percebe na superexposição dos juízes nos meios de comunicação, outro fator que não tem apenas interesse sociológico, mas também diz respeito ao tema dos papéis dos Poderes” (João Maurício Adeodato, in A retórica constitucional, 2a ed. São Paulo: ed. Saraiva, p. 223, 2010).

Consequências inevitáveis advieram desse novo panorama, propiciando mais discussão, na sociedade, de questões sobre o modelo de recrutamento, escolha e nomeação de juízes, nos seus mais diversos níveis, destacando-se a figura do quinto constitucional e o maléfico nepotismo, e culminando na tese do controle externo do Judiciário, mal vista por considerável número de magistrados.

Obviamente, com o advento da chamada “era dos direitos” – análise interessante feita por Bobbio –, e o aumento formidável da litigiosidade em todo o mundo, principalmente em nosso país, o Poder Judiciário é colocado na berlinda, pois exercita a todo instante, desde os Juizados Especiais, passando por todas as instâncias e chegando até o STF, em grande magnitude, o seu mister de julgar, com destaque para as soluções de conflitos entre o Estado e os particulares, e estes entre si.

Direito do Consumidor, Direito Previdenciário, Direito Ambiental, Direito da Infância e da Juventude, Direito do Idoso, Direito Securitário, Direito Comunitário, dentre outros, são direitos novos consagrados no Estado Constitucional, por isso necessariamente adequados à Carta Magna.

Olvidam aqueles que se referem à intromissão do Poder Judiciário na esfera dos demais poderes constituídos, pois no nosso sistema constitucional, exacerbada é a participação do Chefe do Poder Executivo no processo legislativo, haja vista que as fases da promulgação, da sanção, do veto e da publicação se desenvolvem no âmbito desse Poder (artigo 66 e seguintes da CF), sem falarmos nas medidas provisórias.

Onde o respeito à clássica divisão dos Poderes?

É conhecida a posição de Carl Schmidt (teoria material) no sentido de que caberia ao Chefe do Poder Executivo desempenhar controle de tal magnitude, afastando por completo a possibilidade da solução dos conflitos constitucionais entre os Poderes por uma Corte Constitucional: “A Constituição busca, em especial, dar à autoridade do presidente do Reich a possibilidade de se unir diretamente a essa vontade política da totalidade do povo alemão e agir, por meio disso, como guardião e defensor da unidade e totalidade constitucionais do povo alemão” (pág. 234).

Em sentido oposto surge Hans Kelsen, sustentando a criação do Tribunal Constitucional, teoria normativa, tendo sido, por nove anos, juiz da Corte Constitucional da Áustria,
e autor intelectual da Constituição republicana desse país.

Não sendo esse o espaço para adentrarmos em conside­rações a respeito do estágio de uma nação ou de uma sociedade politicamente organizada em atingir o Estado de Direito, dando condições para se transformar em um “nirvana jurídico”, ou seja, em Estado de Justiça, procuraremos, como não poderia ser diferente, restringir ao estágio do Estado de Direito em que estamos percorrendo.

Sem sombra de dúvida, o tema, necessariamente, passa pelo fazer cumprir as normas constitucionais. Problema ingente, se considerarmos que o Estado democrático de Direito tem como precondição ou cocondição a existência de uma economia de mercado aberta e livre, na qual as sociedades modernas são formadas em torno de mercados que buscam, de forma incessante, o lucro cada vez maior, caracterizando um capi­ta­lismo selvagem em que o dinheiro e o poder interferem nas decisões de seus articuladores, e conjuntamente com valores e normas, apresentam-se como mecanismos de integração social (Adeodato, ob. cit. pág. 225).

Inúmeros são os estudos a versarem sobre a análise econômica do Direito, apesar dos preconceitos que possam trazer aos juristas.

O interesse da macroeconomia e a conduta humana, os preços e as atribuições de recursos escassos envolvem-se com o Direito em estreita relação.

Os escritos sobre Direito e mercado, Direito Econômico e Direito Civil, e Teoria Econômica do Direito são títulos que ganham as prateleiras das livrarias jurídicas do nosso tempo!

O conceito de Estado de Direito é muito mais político do que jurídico. Nasceu da necessidade da economia liberal de ter segurança jurídica, não assegurada pelo monarca absoluto, pois este, frequentemente, intervinha no âmbito jurídico patrimonial de seus súditos, exercendo, ainda, um poder discricionário ao alterar e revogar leis. Originariamente, foi construção a serviço da burguesia!

Nosso Estado é regido por uma Constituição legítima, pois emanada do povo; assim, vivemos em um Estado Constitucional ou Estado de Direito.

Reflexões sobre a Constituição real e a jurídica, uma teoria suprema de Justiça e outros assuntos correlatos também não serão discutidos nestas reflexões.

Atualmente, na vivência do estágio do Estado de Direito, os países democráticos, estruturados em Cartas Magnas legítimas, elegem o Poder Judiciário como guardião máximo das mesmas.

Afirmam alguns que o poder político conferido pelo controle judicial de constitucionalidade traz como resultado a politização do processo de seleção dos juízes, argumentando que se fosse menos poderoso, o Poder Judiciário seria mais profissional e, também, mais capaz de desempenhar suas funções não constitucionais.

Juristas americanos, ante o sistema adotado no controle de constitucionalidade, qualificam-no de paternalista e antide­mocrático, pois alçariam os juízes da Suprema Corte ao papel de regentes de uma população tida como incapaz de governar a si própria por causa de sua ignorância, suas paixões, seus preconceitos e sua falta de princípios. Chegam a afirmar que a vitaliciedade do cargo lhes confere um ar monárquico, e não se constitui apenas numa fórmula para isolá-los das paixões do momento, mas também em um passaporte para a irresponsabilidade e altivez.

Entretanto, constatam outros que os filósofos do Direito, na atualidade, se interessam mais pelo raciocínio judicial, tendo obsessão por tal poder e se deliciam com os julgamentos das questões constitucionais, o que os cega para tudo o mais, demonstrando a confiança no saber jurídico de seus membros.

Atentam, já há algum tempo, para a dissociação entre texto e norma!

Pensam aqueles que se a Constituição é aquilo a que o povo aspira (Constituição real vs. Constituição jurídica), e sendo o Congresso Nacional a personificação da totalidade das opiniões vigentes na sociedade, nada mais democrático do que o controle da constitucionalidade ser desempenhado pelo Poder Legislativo.

Ao estudioso do Direito comparado, tem relevância crucial, na reflexão sobre o tema, a experiência da Inglaterra erigindo como pedra fundamental de sua estrutura constitucional a supremacia parlamentar. Aos tribunais caberia apenas interpretar, mas nunca rejeitar ou anular a legislação do Parlamento.

Na concepção do Estado moderno, verifica-se o esboroamento de tal concepção pela adoção, em todos os sistemas jurídicos, do princípio da constitucionalidade, respaldado na supremacia da Constituição, vinculando o legislador e todos os atos estatais à Constituição, estabelecendo o princípio da reserva e revigorando sua força normativa.

Recorremos a Celso Bastos para demonstrar que “a acumulação em um mesmo organismo das funções de, por um lado, fazer leis em cumprimento ao disposto na Carta Magna e, de outro, dizer em última instância se a lei elaborada está, ou não, afinada com o Código Supremo, nulifica, despe de eficácia
o mecanismo controlador” (Curso de Direito Constitucional. 20a ed. S. Paulo: ed. Saraiva, p. 395, 1999).

Poderá ser o Poder Legislativo controlador e guardião de sua própria função?

Interessante constatar que enquanto para os americanos o controle da constitucionalidade pelo Poder Judiciário foi firmado no julgamento de Marbury vs. Madison, pela Suprema Corte, inexistindo qualquer texto constitucional a determiná-lo, para os brasileiros e alemães as decisões de seus tribunais sobre questões de constitucionalidade estão na própria essência do Poder Judiciário, por delegação da Constituição, a saber: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição (…)”.

Os incisos, parágrafos e alíneas desse cânone abrangem todos os postulados necessários para formar o arcabouço legislativo para a implantação de um real Estado democrático de Direito.

Trata-se de Constituição escrita a se destacar no mundo jurídico contemporâneo e que serve de paradigma para os demais países livres e democráticos.

Coloca-se o Poder Judiciário brasileiro como garantidor, principalmente, dos direitos e garantias fundamentais (“Dos deveres individuais e coletivos”, “Dos direitos sociais”, “Dos direitos políticos” e “Dos partidos políticos”, seu instrumento – Título II da CF).

O artigo 92 da Lei Fundamental de Bonn, explicitamente, insere a Corte Constitucional, sediada em Karlsruhe, no Poder Judiciário: “O Poder Judiciário é confiado aos juízes; ele é exercido pelo Tribunal Constitucional Federal, pelos tribunais federais previstos nesta Lei Fundamental e pelos tribunais dos Estados.”

Voltando ainda uma vez para o Direito inglês, no qual a doutrina da supremacia parlamentar impera, é patente o desequilíbrio entre os Poderes, mas sem comprometimento democrático, pois as mesmas pessoas ou entidades fazem parte tanto do Poder Legislativo como do Poder Executivo. A função do regime de gabinete
requer que os ministros da rainha sejam, obrigatoriamente, membros de uma das Casas do Parlamento.

As discussões jurídicas a respeito do controle prévio da constitucionalidade dos projetos de lei e no período de vacatio, extrapolando da atuação do Judiciário, refogem do âmbito destas reflexões.

A transformação sentida pela Ciência Jurídica a partir das posições da mal nomeada Escola de Direito Natural, nas palavras de René David, quando pela primeira vez se tratou racionalmente do Direito Constitucional pensando um Direito público dando efeitos aos direitos naturais do homem e garantindo as liberdades da pessoa humana, passando pelo advento das encíclicas papais, no início do século XX, os postulados de um socialismo libertário trazendo o vento benfazejo da socialização e publicização do Direito, reforçado pelo pós-guerra, criando o Estado à luz da Constituição legítima, colocou o Poder Judiciário em primeiro plano na consecução do Estado de Direito.

Não há que se falar, data venia, na existência de diversos atores, e cada um deles desempenhando um determinado papel, com a conjugação de esforços para atingir o referido estágio.

Falamos em estágio, como afirmamos acima, porque entendemos que ao Estado de Direito há de suceder o Estado de Justiça.

Ao Poder Judiciário, poder constituído, atribuiu-se um script acima daqueles outros distribuídos aos demais Poderes, também constituídos.

Em nosso sistema, o controle difuso de constitucionalidade, sopitado pela criação e expansão de institutos de controle concentrado, erige o Poder Judiciário do mais modesto rincão do País ao topo de importância na concretização do Estado
de Direito.

Inúmeras decisões de primeira instância reconhecem a ofensa de leis à Constituição! Reconhecem direitos outorgados ao cidadão pela Lei Fundamental! Exigem dos demais poderes constituídos o cumprimento do estatuído na Carta Magna!

Merecedores de respeito e admiração os juízes da causa que abandonaram a via artificial da analogia vencendo a resistência da lei, fundamentando suas decisões em uma fonte de Direito superior, a Constituição.

O método de interpretação constitucional é pluridimensional por excelência; focaliza-se nos valores e fins históricos, nos interesses e em tudo o que possa ser pressuposto formador da norma. Afasta-se do positivismo formalista, buscando inspiração no povo sem perder de vista a essencialidade de seu conteúdo.

O preparo exigido dos membros do Poder Judiciário justifica-se, pois a abrangência dos casos que lhes são submetidos é de domínio tão vasto de questões de interesse público – desde a proteção do menor, seu direito à educação, a mitigação da pobreza, passando pelos direitos dos homossexuais e pelo crime de liberdade religiosa – que exige, necessariamente, do juiz que esteja bem informado e tenha ótima formação intelectual, em complemento ao conhecimento técnico que o profissionaliza.

A escolha do método a ser aplicado, pois para a doutrina constitucional há inúmeros, a se destacar o da concreção e o da conformidade com a Constituição, deve levar em consideração a repercussão política e social da decisão e o caráter geral das normas, objetivando positivar os valores defendidos e a consecução dos programas adotados.

Na França, onde é histórica a desconfiança do povo para com seus juízes, as decisões de seus tribunais judiciais iniciam-se com a expressão “em nome do povo francês, estatuem os juízes desta Corte de Justiça”, etc.

No Brasil, poderíamos iniciar as decisões assim: “Em respeito ao Estado de Direito e à Constituição” ou “Atendendo aos princípios do Estado de Direito”, ou melhor, talvez um dia, “Em nome do Estado de Direito e do Estado de Justiça”.

Deixando de lado polêmicas sedutoras entre posições como as de Rawls e Ackerman, de ser ou não a Suprema Corte um exemplar da razão pública ou não ser a interpretação final no enfoque da política e da Justiça, o Poder Judiciário surge, desde meados do século passado, como o principal mentor do Estado democrático de Direito.

A afirmação de que a Constituição não é o que a Suprema Corte diz que ela é, mas o que o povo, agindo constitucionalmente por meio de outros órgãos do governo, eventualmente permite à Corte dizer que ela seja, não deslustra a importância do Poder Judiciário no controle de que ora tratamos.

É o Poder Judiciário, na abordagem da Constituição e do seu problema conceitual e na vivência dos casos que aprecia, quem fornece a chave mestra às mais impenetráveis portas do labirinto juspolítico.

Até mesmo quando a Constituição contém regras que não têm a natureza de Direito Constitucional, o Poder Judiciário alça-as a tal magnitude. Todas as normas nela insertas pelo legislador são constitucionais. O Poder Judiciário consegue reconhecer a existência de princípios jurídicos suprapositivos considerando-os parte integrante da Lei Maior.

A supremacia parlamentar, base do sistema do Direito Constitucional inglês, não se aplica com a separação dos Poderes estabelecida em nossa Constituição ou na americana.

O Poder Judiciário desponta com toda força nos sistemas contemporâneos da família romana germânica de Direito como controlador maior da constitucionalidade da lei, contribuindo de forma determinante para a concretização do Estado democrático de Direito.

Tal qual como na Alemanha (art. 93 da LF) e nos Estados Unidos, submetidas a legislação e as decisões judiciais ao controle de constitucionalidade, no Brasil, a proteção da vida privada não é somente uma questão de Direito Civil ou de Direito Penal analisada pelos tribunais ordinários, mas é, também, móvel constitucional, pois o respeito a esse bem se tornou um valor protegido por um direito fundamental. E assim muitos outros!

Não se trata de desprezar os demais poderes constituídos ou de não reconhecer o esforço de entidades virtuosas que, no dia a dia, lutam pelas salvaguardas dos direitos fundamentais do homem, máxime a sua dignidade, mas os fins colimados tão somente poderão ser atingidos se o Poder Judiciário estiver engajado na realização do Estado democrático de Direito.

A importância crescente da cúpula do Poder Judiciário relaciona-se diretamente com a significativa ampliação feita pela Constituição de 1988 no tocante ao controle em abstrato da constitucionalidade das leis, bem como com o advento da Lei 9.868, de 10.11.99, alterada pela Lei 12.063, de 27.10. 2009, e da Lei 9.882, de 3.12.99. A primeira regulamenta o processamento e o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADIn)
e da ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e a outra estabelece os contornos da arguição de descumprimento de preceito fundamental. Tais institutos colocam, como premissa obrigatória para o STF, o temporizar da norma constitucional às vivências sociais do momento.

Essa é a verdadeira essência da distribuição da Justiça! A letra mata, o espírito vivifica!

Nossa Constituição é nova, permitindo aos juízes que possam buscar o aperfeiçoamento jurídico de questões de importância capital para a sociedade brasileira. É a Constituição cidadã!

Neste ponto, podemos afirmar, com os autores americanos, críticos ácidos de seu sistema, que o texto constitucional que lá impera é tão antigo e as controvérsias sobre o seu significado são tão saturadas de implicações políticas que a interpretação da Constituição, em casos duvidosos que são levados à sua jurisdição, está fadada a ser arbitrária, em vez de regida por normas rigorosamente definidas.

Contudo, sabemos que a elaboração de uma Constituição de princípios facilita em muito a atuação do legislador ordinário, propiciando maior e melhor adequação ao princípio regedor da matéria.

Em nosso País, o formidável número de normas infraconstitucionais que ferem a Constituição, comprometendo de certa forma o Estado democrático de Direito, dizem alguns, liga-se diretamente ao critério específico e detalhista de seus cânones adotado pelo legislador de 1988.

A história explica a contento as preocupações daquele momento, pois estava o povo brasileiro, há longo tempo, sem a vivência de suas garantias individuais e sociais; de modo a enfatizá-las, o legislador constitucional inseriu normas específicas no texto constitucional.

François Rigaux, afirma mordazmente, ao discorrer sobre o que intitula “missão legislativa do juiz”, que quanto mais se eleva a hierarquia judiciária, mais o juiz se aproxima do exercício de uma função quase legislativa e, prossegue o mestre de Louvain, que, no mais das vezes, é o próprio juiz quem cria a pretensa lacuna, identificando uma necessidade sua ao mesmo tempo em que se esforça para satisfazê-la. (A Lei dos juízes. 1a ed, S. Paulo: Martins  Fontes, p. 323, 2003).

Os críticos do Poder Judiciário e de sua cúpula olvidam de sua característica preponderante, ou seja, julgar. Submetida a questão à sua apreciação, influenciado ainda pelo art. 4o do Ccfrancês, o Poder Judiciário não deixa sem resposta quem o procura.

Poderia o STF deixar de conhecer a questão do relacionamento jurídico de homoafetivos esperando que o Poder Legislativo ou mesmo o Executivo tomasse a providência de consulta plebicitária à nação?

Com as recentes decisões do STF, podemos ainda afirmar, com Ackerman, ao criticar o sistema norte-americano com raízes na common law, que o Poder Judiciário é uma instituição conservadora, e que os juízes estão cercados por uma densa teia de casos jurisprudenciais que definem um mundo de significado constitucional, sem atentarem para as modificações da sociedade no tempo? Obviamente, não!

Não existem labirintos constitucionais a serem percorridos pelos intérpretes da Carta Maior! Os caminhos já estão pré-traçados, e os seus guardiões os percorrem com a segurança e a certeza típicas dos desbravadores que buscam a justiça e a paz social.

Se nosso sistema gera alguma perplexidade, como no caso da Raposa do Sol, ante o balizamento de cunho eminentemente legislativo da decisão, cabem aos outros dois Poderes suprirem a lacuna legislativa e receberem a lição como contribuição democrática para o avanço no percurso já iniciado, do Estado de Direito.

As falhas existentes serão debitadas da nossa incipiente vivência democrática, em um continente em que inúmeros são os atentados à liberdade de expressão, à dignidade do ser humano e ao equilíbrio social.

No âmbito constitucional, os juízes procuram compreender o Direito, e não modificá-lo. A promoção da justiça, da paz social e da diretriz traçada pela Norma Fundamental é o que almejam. Outros segmentos dos demais Poderes analisam a questão sob um ponto de vista eminentemente econômico e político.

Triste lembrança para os brasileiros os sucessivos planos econômicos, de passado recente, que desdenharam totalmente dos cânones constitucionais, entupindo o Poder Judiciário de ações, objetivando o restabelecimento da ordem jurídica no País! Em todos esses planos, a Constituição foi ofendida, principalmente no que diz respeito aos cânones do Sistema Tributário Nacional.

Quantas as decisões de primeira instância a gravar de inconstitucionalidade leis municipais que cobravam taxa de conservação de estradas tendo base de cálculo própria de imposto (art. 145, III, par. 2o da CF), ofendiam o princípio da anualidade e aumentavam imposto sem respaldo legislativo, dentre inúmeros exemplos de completo desrespeito ao Estado de Direito.

E muitos outros!

Ressalte-se que são as normas constitucionais que freiam os ímpetos autoritários e os anseios prepotentes dos governantes, muito mais do que qualquer outra norma jurídica! (David Schnaid, Filosofia do Direito e interpretação. 2a ed. S. Paulo: RT, p. 309, 2004).

O lamentável panorama sul-americano ao derredor do Brasil demonstra o avanço de nossas conquistas socioeconômicas e jurídicas frente às posições políticas que tisnam o desejável e esperado estágio do Estado de Direito.

Habscheid narrava, em suas aulas na Faculté Internationale pour L´Enseignement du Droit Comparé, em Estrasburgo, a decisão tomada pelo Tribunal Constitucional Alemão, de Karlshue, a qual, em função de o Parlamento estar adiando a completa adaptação do texto do BGB em matéria de filiação, consagrando a Lei Fundamental a igualdade dos direitos dos filhos legítimos aos ilegítimos ou naturais, intimou-o a fazê-lo no espaço exíguo de 30 dias, sob pena de considerar inconstitucional toda a parte do Direito de Família que tratava sobre o tema.

A decisão teve tamanha repercussão, relatava o professor de Wurtzbourg e Genebra, que foi alçada a escândalo político, minando as bases do governo, chegando à beira da convocação de eleições gerais, com a consequente dissolução do Parlamento. O pior não ocorreu pela pronta intervenção dos parlamentares, que votaram uma lei ordinária em total adequação à Carta Magna em quinze dias.

É a força do Poder Judiciário como guardião da Constituição!

O professor Geraldo Ataliba, em seu República e Constituição, por ocasião da 1a edição, em 1985, como que em prece, afirmava: “O povo há de crer na restauração dos valores constitucionais.
O Judiciário, restaurado em sua dignidade, imbuir-se-á do cunho sacro de sua missão precípua de assegurar a supremacia da Constituição.”(pág. 6)

Por tudo isso, a menção a qualquer desvio de conduta do mais humilde membro do Poder Judiciário com o intuito de, gratuitamente, denegrir sua imagem, quer de forma velada ou às escâncaras, trinca, fere, esboroa de forma indelével toda a estrutura desse Poder, permitindo que os vigilantes do regime autoritário possam, ainda e sempre, afirmar: “Que saudades do regime militar”.

Eram estas as reflexões que desejávamos expor, sem contudo lhes dar as roupagens finais de um pensamento acabado, mas quiçá propiciar considerações atuais sobre o tema, estendendo àquelas outras que gravitam ao seu redor.

 

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