Edição

Precatórios: a polêmica continua

31 de janeiro de 2010

Da Redação, por Giselle Souza

Compartilhe:

Aprovada no final de dezembro de 2009, a Emenda Constitucional nº 62, que alterou as regras para o pagamento de precatórios, dívidas da Fazenda Pública oriundas de decisões judiciais, promete provocar muita polêmica neste ano que acaba de começar. A norma teve a inconstitucionalidade arguida no Supremo Tribunal Federal (STF) pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) praticamente logo após ser promulgada. Questionam as novas regras, em conjunto com o órgão de classe da Advocacia, instituições como a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) e a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT). Duas entidades — o Sindicato dos Especialistas de Educação do Ensino Público Municipal e a Frente Nacional dos Prefeitos — solicitaram o ingresso no processo como amicus curiae, ou seja, amigos da corte. Outras tantas já manifestaram publicamente apoio à causa. Por esse motivo, a expectativa é de que o número de instituições decididas a aderir à ação direta de inconstitucionalidade cresça até o julgamento. A razão para toda essa mobilização é apenas uma: de fato, as novas regras podem eternizar a dívida, que, segundo as últimas estimativas, teria ultrapassado a casa dos R$ 100 bilhões.

A Emenda Constitucional alterou significativamente o artigo 100 da Constituição Federal ao acrescentar o artigo 97 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O novo dispositivo estabelece, entre outros pontos, um regime especial de pagamento dos precatórios, que pode chegar a 15 anos. Um aspecto também criticado da norma foi a criação de leilões, pelos quais recebe primeiro quem oferecer maior deságio. Segundo a Emenda, os Estados e Municípios que estiverem realizando o pagamento pelo regime especial não poderão sofrer sequestro de valores — uma medida prevista no ordenamento jurídico para forçar os governos a realizar o pagamento, porém ainda pouco utilizada pelo Judiciário.

Pela Emenda, Estados e Municípios poderão limitar o pagamento mensal de precatórios a percentuais de sua receita corrente líquida. Para isso, eles deverão depositar, todos os meses, 1/12 avos do valor calculado percentualmente sobre as receitas apuradas dois meses antes do pagamento. Esse percentual é variável. Para Estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, mais o Distrito Federal, é 1,5% nos casos em que os precatórios corresponderem a até 35% do total da receita corrente líquida. Para os Estados das regiões Sul e Sudeste, cujo estoque pendente for maior que 35%, o índice é de 2%. No que diz respeito aos Municípios, o percentual é de 1,5%.

A Emenda estabelece que 50% dos recursos destinados ao pagamento devem ser usados para quitar os precatórios em ordem cronológica de apresentação, respeitadas as preferências para idosos e portadores de doença grave. O restante deve ser usado no pagamento à vista, em ordem única e crescente de valor por precatório ou mediante acordo direto com os credores. Estados e Municípios também podem optar por destinar esses recursos aos leilões.

Para a OAB, a Emenda Constitucional 62/09 institucionalizou o “calote oficial”, em evidente violência ao princípio da moralidade. Na ação, a Ordem exige a concessão de medida cautelar para suspender a eficácia da norma. A Entidade alega graves inconstitucionalidades formais e materiais. Em relação ao primeiro aspecto, o Congresso não teria cumprido a exigência de votação em dois turnos para que se dê a aprovação de Emenda. De acordo com a Entidade, a quebra desse preceito regimental impõe a declaração de inconstitucionalidade por absoluta contrariedade do devido processo legislativo.

No que diz respeito ao aspecto material, a Ordem destaca que as violações se deram a vários princípios dispostos na Carta Magna. A Emenda, de acordo com a Entidade, teria vulnerado a separação dos poderes, “uma vez que retirou a eficácia e a autoridade da decisão judicial condenatória transitada em julgado e de natureza eminentemente alimentar”, assim também como teria violado o princípio da igualdade ao prever que apenas uma parte da condenação seja adimplida, enquanto outra seja fracionada e paga na ordem cronológica de apresentação.

“Essa Emenda revela-se o maior atentado à cidadania já visto na história brasileira, pois só objetiva permitir que maus governantes deem mais calote em seus credores, ficando claro que o Poder Público não pretende adimplir as suas obrigações”, argumenta a Ordem, na ação.

O presidente nacional da OAB, Cezar Britto, classificou a aprovação da Emenda como algo lamentável. “A Emenda quebra os princípios democráticos e republicanos que são necessários à conservação do Estado Democrático de Direito. Entre eles, os de independência entre os poderes, o da coisa julgada como garantidora da segurança jurídica e o da obrigatoriedade dos governantes observarem os dispositivos constitucionais”, lamentou o Advogado, que se despede, agora em fevereiro, da direção da Entidade.

Britto ficou três anos à frente da Ordem. Ele destacou as mobilizações contra a aprovação da proposta que resultou na aprovação da Emenda — como a Marcha Pública em Defesa da Cidadania e do Poder Judiciário, realizada em maio, em Brasília — e a própria ação direta de inconstitucionalidade como alguns dos pontos altos de seu mandato.

A maior indignação do Advogado em relação à Emenda é o leilão, que “faz com que a sentença, que deveria ser o título mais seguro do Brasil, se torne objeto por meio do qual o preço é dado segundo a necessidade do credor ao comprador, justamente aquele que infringiu dor ao cidadão”.

Aos poucos, a ação começa a tramitar. O Ministro do STF, Carlos Ayres Britto, relator da demanda, expediu ofícios a tribunais de todo o País, solicitando informações sobre os valores pagos pelos Estados em precatórios, alimentares e não alimentares, e requisições de pequeno valor nos últimos 10 anos. Ele pediu dados sobre o montante da dívida, vencida e a vencer.

Ayres Britto também cobrou informações das Secretarias de Fazenda dos Estados, sobre os valores das respectivas receitas correntes líquidas durante o mesmo período. Em razão da relevância da matéria, o Ministro dispensou a análise liminar, optando por levar a ação diretamente ao exame de mérito pelo Plenário do STF.

 

Avanços

A OAB, no entanto, não é só críticas à Emenda Constitucional nº 62/2009. Cezar Britto apontou alguns pontos que identificou como sendo positivos no texto promulgado. Segundo afirmou, os deputados estabeleceram a ordem cronológica de pagamento e preferência para os créditos alimentícios de idosos com 60 anos ou mais e para os portadores de doença grave.

“Há alguns pontos diferenciados em relação à proposta que saiu do Senado. O texto que sai da Câmara é menos ruim do que aquele que entrou. Ele trouxe de volta a ordem cronológica dos precatórios, que o Senado tinha quebrado, admitiu outras formas de pagamento e as compensações que os senadores não tinham autorizado. No entanto, manteve em seu princípio os dois grandes riscos de inconstitucionalidade: o limite orçamentário para o cumprimento da decisão judicial e o leilão. São vícios claramente inconstitucionais”, ponderou o Presidente da OAB.