Edição

“Precisamos conceber ações inovadoras”

30 de agosto de 2022

Compartilhe:

O coordenador da I Jornada de Direito Notarial e Registral, Ministro Jorge Mussi, comenta algumas das inovações para a desjudicialização propostas no encontro

A I Jornada de Direito Notarial e Registral foi realizada no início de agosto, na sede do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), em Recife (PE), com a aprovação de 82 propostas de enunciados. Ao todo, 663 propostas foram analisadas pelas seis comissões temáticas – Registro civil das pessoas naturais, Registro de imóveis, Registro de títulos e documentos civis de pessoas jurídicas, Tabelionato de notas, Protesto de títulos e O juiz e a atividade notarial e registral.

Na entrevista a seguir, o coordenador-geral da Jornada, Vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Conselho da Justiça Federal (CJF), Ministro Jorge Mussi, faz uma avaliação do evento e analisa os motivos de tamanho interesse da comunidade jurídica pelos temas debatidos.

Revista Justiça & Cidadania – Qual é a avaliação que o senhor faz desta primeira I Jornada de Direito Notarial e Registral? Acredita que o evento pode ter contribuído para a evolução desse segmento?

Ministro Jorge Mussi – As reflexões colaborativas entre os seguimentos de serventias judiciais e extrajudiciais, voltadas à busca de soluções que garantam aos cidadãos brasileiros atendimento público rápido, seguro e eficiente às suas necessidades, foi o mote deste encontro, que considero ter sido um sucesso, seja pela ampla audiência alcançada, seja pelo número expressivo de propostas de enunciados recebidas. Fica de legado à sociedade os 82 enunciados aprovados por especialistas que conhecem a fundo a temática discutida.

RJC – O que motivou a realização do evento?

MJM – A ideação desta atividade teve por finalidade desbravar assuntos ainda não debatidos amplamente por todos os seguimentos da Justiça, e que podem contribuir para a desjudicialização no âmbito do Poder Judiciário e, também, para a melhoria dos serviços judiciais e extrajudiciais.

O Poder Judiciário tem a missão institucional de pacificar as relações, porém seu desafio está cada vez mais difícil quando vemos o volume de ações judiciais aumentarem exponencialmente, enquanto nossa arquitetura organizacional não consegue acompanhar este volume e dar vazão a toda demanda recebida, o que gera o acúmulo de acervos em nossas comarcas e seções judiciárias. E os cidadãos querem eficiência, querem atendimento rápido para os seus problemas, por isto precisamos conceber ações inovadoras, como o amplo debate feito sobre o Direito Notarial e Registral neste evento, para que possamos garantir serviços de qualidade à população.

RJC – Foi seguido o bem-sucedido modelo de participação consagrado nas Jornadas de Direito Civil promovidas pelo CJF?

MJM – O modelo utilizado pelo Centro de Estudos Judiciários para esta Jornada não foi exatamente o de todas as demais, pois em minha gestão inovamos os fluxos organizacionais, especialmente na forma do envio das proposições de enunciados e do exame prévio dessas propostas. Para o encaminhamento das propostas passamos a utilizar o formulário eletrônico Enunciare e, para votação, o Sistema on-line VotaJUD, que permitem que as proposições de enunciados sejam enviadas e votadas de maneira totalmente digital, acessível de qualquer dispositivo conectado à Internet.

RJC – Foram apresentadas mais de 600 propostas de enunciados. Ao que o senhor atribui tamanho interesse? A legislação do Direito Notarial e Registral carece de muitas atualizações?

MJM – O expressivo número de proposições reflete o interesse da comunidade jurídica e da sociedade pela busca de soluções uniformes e sistêmicas, que assegurem ainda mais segurança para as relações jurídicas. 

O Direito Notarial e Registral tem fundamental importância e acompanha toda a vida em sociedade. A partir dele fazemos nossos registros de nascimento, passando por negócios jurídicos complexos, transações imobiliárias, indo até o óbito, quando então se assegura a legitimidade da sucessão e seus reflexos, num ciclo organizativo fundamental para que tenhamos um Estado forte e estruturado.

Temos no Brasil uma legislação notarial e registral em constante aprimoramento, que vem contribuindo sobremaneira para desonerar o Judiciário de atividades que prescindem da atuação dos nossos magistrados. Exemplo disso são leis como a Lei nº 11.441/2007, que possibilita a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa; a Lei nº 12.100/2009, que trata da correção ortográfica de registro civil; a Lei nº 12.133/2009, que dispensou homologação por juiz da habilitação para casamento; a Lei nº 11.790/2008, que permite o registro de nascimento fora do prazo legal diretamente nas serventias extrajudiciais; a Lei nº 14.382/2022, que efetiva o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos para modernizar e unificar sistemas de cartórios em todo o País, permitir registros e consultas pela Internet e ainda autorizar que qualquer pessoa maior de idade, mesmo sem motivação, solicite alteração de nome diretamente no cartório, são exemplos de como estes órgãos podem contribuir para resolução de problemas cuja atuação do magistrado não seja absolutamente necessária.

RJC – Qual é a avaliação que o senhor faz dos enunciados aprovados? Destacaria alguns em especial, por sua relevância? 

MJM – A Jornada recebeu 663 propostas de enunciados para análise, tendo 192 sido selecionadas para debate pelas comissões temáticas. Destas, 107 foram levadas para a apreciação e votação na plenária, restando aprovados 82 enunciados.

Dentre as diretrizes interpretativas estabelecidas, cito duas que considero de especial relevância. A primeira trata da recomendação para que sejam estabelecidos convênios com notários e registradores para a instalação de centros de soluções de conflitos e cidadania. A segunda é a que trata da orientação dada para que sejam disseminadas práticas da mediação e de conciliação extrajudicial, recomendando-se aos tribunais e às corregedorias de Justiça que promovam campanhas junto aos delegatários e à sociedade, sobre a possibilidade do cidadão buscar os serviços extrajudiciais para a solução de seus conflitos.

Ambas merecem especial destaque, pois vão ao encontro do propósito fundamental deste evento que é o de promover a cultura da desjudicialização.

RJC – Os enunciados de jornadas como essa não possuem força normativa. Até que ponto eles impactam a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e dos demais tribunais?

MJM – De fato, nossos enunciados não possuem força coercitiva, costumo dizer que eles têm força persuasiva, pois são construídos com o respaldo de juristas renomados sobre a matéria, o que lhes confere legitimidade para serem utilizados como fonte de consulta ou até mesmo fundamentação, seja na atividade judicial, seja no meio acadêmico e, agora, no ramo do serviço extrajudicial, por notários e registradores.

RJC – Mesmo nos momentos mais críticos das restrições à circulação de pessoas, durante a pandemia de covid-19, os cartórios brasileiros não deixaram de cumprir sua missão. Pelo contrário, as serventias extrajudiciais ampliaram o seu horizonte de atuação e tornaram ainda mais evidente o caráter essencial dos seus serviços ao exercício da cidadania. O senhor acredita que os cartórios podem entregar ainda mais, em termos de serviços, à sociedade?

MJM – Considero de fundamental importância que a cultura da solução das controvérsias por meio de métodos alternativos, consensuais e igualmente legítimos e eficazes seja cada vez mais evidenciada e priorizada, para que o Judiciário consiga reservar a sua atuação às demandas estruturais relevantes e que não podem transcender do equilíbrio de sua balança.

Como consequência do próprio desenvolvimento da ciência, vejo que o aprimoramento das reflexões sobre o Direito Notarial e Registral eventualmente pode abrir caminhos para que outros serviços extrajudiciais sejam cogitados e, futuramente, normatizados, mas o que se pretende, neste momento, é aprimorar a estrutura e difundir uma cultura voltada à consensualidade.

Atualmente tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 6204/2019, que dispõe sobre a desjudicialização do processamento da execução civil de título executivo judicial e extrajudicial, mediante a criação de uma plataforma eletrônica extrajudicial para este fim. Caso implementada, esta medida por certo trará ainda mais desafogo para o Judiciário, que ao invés de continuar perseguindo devedores, dedicando horas preciosas no manejo de sistemas para o bloqueio de bens, poderá, por exemplo, reservar a sua atuação, com tempo mais qualificado, às demandas que versam sobre a preservação do meio ambiente, tema tão fundamental para as futuras gerações.