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Prescrição e direitos estatutários do servidor público

5 de abril de 2001

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Imprescritibilidade de fundo do Direito – Princípio da Legalidade

SÚMULA N. 85 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Dispõe o enunciado da Súmula n. 85 Superior Tribunal de Justiça:

“Nas relações jurídicas de trato sucessivo em que a Fazenda Pública figure como devedora, quando não tiver sido negado o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as prestações vencidas antes do qüinqüênio anterior à propositura da ação”.

Essa já era a jurisprudência dominante no eg. Supremo Tribunal Federal, extratificada na Súmula n. 443:

“A prescrição das prestações anteriores ao período previsto em lei não ocorre quando não tiver sido negado, antes daquele prazo, o próprio direito reclamado ou a situação jurídica de que ele resulta”.

COERÊNCIA LÓGICA DAS SÚMULAS

Os enunciados sumulares têm indiscutível consistência lógica, ao fazer alusão à prescrição das prestações “vencidas” ou “anteriores”, sem qualquer referência à prescrição da própria ação. Realmente, enquanto não há exigência substancial, deduzida pelo servidor em face da Administração, e resistência caracterizada pela “negativa” em satisfazê-la, não há controvérsia, não tendo sentido falar-se em prescrição.

RELAÇÕES ENTRE O FUNCIONÁRIO PÚBLICO E O ESTADO

A relação entre o funcionário e o Estado é de índole estatutária, pelo que não pode o Estado ter outro interesse senão em que as relações (ou situações) jurídicas para com seus servidores seja exatamente aquela que resulta da lei (ou do estatuto). Para quem vislumbra, e proclama, no ato administrativo o atributo da legitimidade, cobrindo-o inclusive com o manto de uma presunção legal (presunção de legitimidade), não pode admitir que a Administração pactue com uma situação contrária ao direito. Ao contrário, ela tem o dever de, ex própria autoridade, ajustar-se à lei, corrigindo eventuais distorções que se verifiquem nas suas relações com seus servidores. E, para isto, não existe tempo.

Vale a pena transcrever as seguintes observações do Min. Cunha Peixoto: “A relação entre o funcionário e o Estado, como é pacífico na doutrina e na jurisprudência, é estatutária; e isto leva a admitir, em tese, a imprescritibilidade de seu direito, já que este direito está preso a modificações necessárias ao interesse do Estado. O que comanda é o interesse público, se este leva a conceder determinada situação ao funcionário, este direito não precisa ser pleiteado, nem mesmo invocado. A administração deve enquadrá-lo na nova situação.

Daí não se poder dizer que o direito do funcionário à nova condição atribuída por lei prescreve, se a administração não o coloca nesta posição e ele não reclama dentro de cinco anos.

Ora, no caso dos autos, cumpria à Administração agir de ofício compatibilizando a situação de cada funcionário de acordo com a lei posta em vigor, se ficou inerte, isso não corresponde a uma negativa.” (cf. Jesus Costa Lima, Comentários às Súmulas do STJ, 2º vol. p. 137).

FINALIDADE DA PRESCRIÇÃO

A prescrição existe mas para legitimar juridicamente situações de fato legítimas, e não para perpetuar situações ilegítimas, dando-lhes colorido de legalidade, onde esta não existe. Também não é a prescrição um passaporte para que a Administração transite impunemente pela ilegalidade, e, muito menos, um manto mágico a cobrir as ilegalidades cometidas pelos agentes públicos à sombra da lei ou do estatuto.

PRESCRIÇÃO DAS PARCELAS VENCIDAS

Se, nos termos do art. 5º, XXXV, da Constituição, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” vê-se que, nas relações funcionais (estatutárias) entre o Estado e seus servidores prescrevem apenas as prestações devidas nos cinco (5) anos anteriores ao exercício da ação e nunca o direito de reclamar, judicialmente,  que se reconduza aos trilhos da legalidade a situação jurídica que se mostre divorciada da lei.

TERMO “A QUO”DA PRESCRIÇÃO

A prescrição flui a partir do momento em que tiver sido negado, pela Administração, o próprio direito reclamado ou a situação jurídica de que ele resulta porque, neste caso, há uma decisão (ato comissivo) administrativa sobre o pedido, coberta pelo que se denomina impropriamente “coisa julgada administrativa” (na verdade, não passa de uma preclusão).

NATUREZA DA PRESCRIÇÃO

Bem andou o ilustre Min. Moreira Alves, ao esclarecer que “A prescrição se situa no âmbito do direito material e não no direito processual. O que prescreve não é o direito subjetivo público de ação, mas a pretensão que decorre da violação do direito subjetivo” (AI n. 139.004-3, rel. Min. Moreira Alves, STF, 1ª T., un., DJ 2/2/96, p. 853). Na linha deste entendimento, estou convicto de que o princípio da actio nata não tem a extensão que lhe empresta certa jurisprudência (eu, inclusive, que já cometi esse pecado). O entendimento capitaneado pelo ilustre Min. Luiz Galloti no RE n. 51.813 (RTJ 100/387), admitindo a prescrição da ação, não se ajusta à tutela do direito do servidor público.

NECESSIDADE DE SER A PRESCRIÇÃO REPENSADA

Se há um ponto que, a meu ver, precisa ser repensado pela jurisprudência é este, relativamente à prescrição de direitos (benefícios e vantagens) estatutários, com vistas à segurança que deve nortear as relações  do servidor com a Administração. Quando nós, juízes, nos convencermos de que não convém ao interesse público dar uma desmedida extensão à prescrição —, mormente nos termos em que em posta no vetusto Decreto n. 20.910/32 —, com o que se estimula demandas a fim de obstacular que o gozo do direito seja neutralizado pela incúria administrativa, ao cabo de cinco (5) anos, talvez melhorem bastante as relações funcionais da Administração com seus agentes. Por outro lado, desentulhará também a Justiça, pois o Poder Público, em vez de manter uma relação sadia com seus agentes, reconhecendo e preservando seus legítimos direitos, sente-se estimulado em negá-los, confiante na conivência de uma jurisprudência irrealista, dessintonizada com o seu tempo, e em rota de colisão com as modernas tendências do Estado de Direito.

Como a prescrição, em tais casos, não pode beneficiar quem (como a Administração) tem, legalmente, o dever de agir na correção de seus próprios atos, quando inquinados de ilegalidade, estaria o Poder Público se beneficiando da sua própria omissão para lograr alcançar objetivo contrário à lei e ao direito.

No caso de incidência da Lei n. 5. 844/72, por exemplo, que, assegura a todos os militares inativados antes da sua vigência, o direito de serem estipendiados segundo a remuneração dos integrantes das Forças Armadas, não tem sentido venha essa determinação legal a ser neutralizada pela omissão administrativa em dar-lhe cumprimento.

Em outros termos, essa malsinada prescrição dita “do fundo do direito”, em sede estatutária, não passa de uma forma indireta de o Poder Público, por ato omissivo, obter resultado equivalente ao da revogação da lei; ou seja, a lei existe —, porque não foi revogada —, mas o seu destinatário não pode pedir a sua aplicação se não o fizer dentro, no prazo de cinco (5) anos, em que a Administração fez-se omissa. A justiça justa deve beneficiar aquele a quem a lei reconhece o direito e não aquele que o descumpre. Entender-se de outro modo, é reconhecer à Administração o proveito da própria torpeza.

RAZOABILIDADE DA PRESCRIÇÃO DE PARCELAS

A prescrição relativamente às parcelas não reclamadas nos cinco (5) anos anteriores ao exercício da ação, se não justa, é menos irrazoável, podendo ser mantida, desde que preservado o direito do servidor de postular em qualquer tempo a sua satisfação.

ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL

Em sede jurisprudencial, essa diretriz, relativamente à imprescritibilidade do direito do militar, veio a ser agasalhada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, como se vê dos seguintes acórdãos:

“Administrativo – Policiais militares do antigo Distrito Federal – Equiparação salarial com os integrantes das Forças Armadas – Impossibilidade de equiparação daqueles que se inativaram após a vigência da Lei n. 5.844/72, fazendo jus somente à aplicação da legislação federal  que trata da remuneração dos militares das Forças Armadas os que passaram  à inatividade antes da inovação introduzida pela citada Lei n. 5.844 e pela Lei n. 5.959/73 – Tratando-se de prestação de trato sucessivo diferida no tempo, a prescrição não atinge o fundo do direito, mas as parcelas anteriores a cinco anos da data do ajuizamento da ação .

Apelação dos autores improvida.

Apelação da União e remessa providas parcialmente. (AC n. 92.02.16151-8-RJ, TRF-2ª Reg., 1ª T., un., DJ 30/8/94, p. 46978).

“I- Administrativo – Militar – Integrantes do Corpo de Bombeiros do antigo Distrito Federal – Promoção por homologia – Inexistência de decadência. O art. 6( do Decreto-lei n. 9/66 previu um direito aos que optaram pelo retorno ao serviço federal, no sentido de que obtivessem situação igual aos que foram reincluídos na Polícia Militar e no Corpo de Bombeiros do novel Estado da Guanabara – O não cumprimento, por parte da Administração, do contido no referido dispositivo legal configura o que se denomina ilicitude permanente, não havendo que se falar em decadência, muito menos em prescrição do fundo do direito, mas tão-somente, de prescrição das parcelas anteriores aos cinco (5) anos anteriores à propositura da ação, pois, enquanto permanece a ilicitude, o direito fica paralisado, aguardando o cumprimento da lei.

II – Apelação provida – Sentença reformada para determinar a remessa dos autos à primeira instância, para que seja julgado o mérito da questão” (AC n. 93.02.16879-4/RJ, rel. DF Frederico Gueiros, TRF-2ª Reg., 1ª T., un., DJ 12/9/95, p. 59840).

CONCLUSÃO

Como se vê, nas relações jurídicas materiais entre o funcionário público e o Estado, o que prescreve são apenas as parcelas não cobradas nos 5 (cinco) anos anteriores ao exercício da ação, mas não o próprio fundo do direito. E o que já é muito, considerando que beneficia quem, como o Estado, não pode atuar ao largo da lei —, Administração Pública é sinônimo de administração legal – em detrimento do direito de seus próprios servidores.