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Princípio da dignidade da pessoa humana na temática da pessoa transexual

20 de julho de 2017

Frederico dos Santos Messias Juiz de Direito do TJSP

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Frederico dos Santos Messias

Antes de iniciar a abordagem deste tema, admito polêmico, é preciso um exercício de afastamento de nossas convicções pessoais sobre moralidade e religião, fincando nossa análise em uma direção estritamente jurídica, sob as luzes, principalmente, da Constituição Federal.

Para o magistrado paulista Luis Fernando Cirillo, a interpretação é entendida como obtenção do sentido verdadeiro, ou seja, como a apresentação de sinônimos ou a descoberta de uma verdade representativa, e, citando Carlos Maximiliano, afirma que a hermenêutica é entendida como sistema de interpretação. É apresentada como a teoria científica da arte de interpretar, subordinada ao direito como ciência geral, e, com o auxílio da sociologia e da filosofia jurídica, oferece os processos de interpretação articulados em um sistema.

Nessa quadra, inegavelmente estamos vivenciando uma revolução — não de armas, mas de conceitos. Proposições antigas cedem espaço a uma nova realidade, agora alicerçada no direito fundamental à diferença.

Peço licença para citar um trecho de voto do ministro do Supremo Tribunal Federal Aliomar Baleeiro, proferido no ano de 1968:

(…) mas o conceito de “obsceno”, “imoral”, “contrário aos bons costumes” é condicionado ao local e à época. Inúmeras atitudes aceitas no passado são repudiadas hoje, do mesmo modo que aceitamos sem pestanejar procedimentos repugnantes às gerações anteriores. A polícia do Rio há 30 ou 40 anos não permitia que um rapaz se apresentasse de busto nu nas praias e parece que só mudou de critério quando o ex-rei Eduardo VIII, então príncipe de Gales, assim se exibiu com o irmão em Copacabana. O chamado bikini (ou duas peças) seria inconcebível em qualquer praia do mundo ocidental há 30 anos. Negro de braço dado com branca em público, ou propósito de casamento entre ambos, constituía crime e atentado aos bons costumes em vários estados norte-americanos do sul até tempo bem próximo do atual (…)

É de se anotar que nesta fase de transição entre realidades diferentes não se consegue identificar o exato momento da ruptura; as alterações são contínuas, de modo que haverá um tempo em que ambas conviverão, fazendo aflorar, em maior escala no início da transição e em menor escala em seu final, momentos de conflito entre ambas.

Avançando, pois, na análise jurídica do tema, afasto de início a ideia de que haveria uma lacuna no sistema capaz de não reconhecer os direitos perseguidos legitimamente pelos transexuais. A Constituição Federal fornece, com sobras, o suporte necessário para amparar a tese. No entanto, tendo como ponto de partida a Constituição, afigura-se fora de dúvida o predomínio da ideia de dignidade como autonomia. Dentro de uma perspectiva histórica, a Carta de 1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial, intervencionista, constituindo o marco inicial da reconstrução democrática do Brasil. Daí sua ênfase nas liberdades pessoais, parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias procedimentais.

Em seu preâmbulo, há afirmação expressa de que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, tendo como um valor supremo a sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Ainda, a dignidade da pessoa humana é fundamento da República, conforme artigo 1o da Constituição Federal.

Na lição do Ministro Luís Roberto Barroso, a dignidade da pessoa humana funciona, assim, como fator de legitimação das ações estatais e vetor de interpretação da legislação em geral. Tais considerações não minimizam a circunstância de que se trata de uma ideia polissêmica, que funciona, de certa maneira, como um espelho: cada um nela projeta a sua própria imagem de dignidade, e, muito embora não seja possível nem desejável reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado, não se pode escapar da necessidade de lhe atribuir sentidos mínimos. Onde não há consenso, impõem-se escolhas justificadas e convenções terminológicas.

E continua o professor para dizer que, na sua expressão mais essencial, a dignidade exige que toda pessoa seja tratada como um fim em si mesmo, consoante uma das enunciações do imperativo categórico kantiano. A vida de qualquer ser humano tem uma valia intrínseca. Ninguém existe no mundo para atender aos propósitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade. O valor ou princípio da dignidade da pessoa humana veda, precisamente, essa instrumentalização ou funcionalização de qualquer indivíduo. Outra expressão da dignidade da pessoa humana é a responsabilidade de cada um por sua própria vida, pela determinação de seus valores e objetivos. Como regra geral, as decisões cruciais na vida de uma pessoa não devem ser impostas por uma vontade externa a ela. No mundo contemporâneo, a dignidade humana tornou-se o centro axiológico dos sistemas jurídicos, fonte dos direitos materialmente fundamentais.

Para arrematar, o mestre afirma com precisão que integram o conteúdo da dignidade a autodeterminação individual e o direito ao igual respeito e consideração. As pessoas têm o direito de eleger seus projetos existenciais e de não sofrer discriminações em razão de sua identidade e de suas escolhas.

Mais à frente, em seu artigo 3o, inciso IV, a Constituição Federal estabelece como objetivo fundamental da República promover o bem de todos, sem preconceitos, entre outros, de sexo, terminando com a cláusula aberta “quaisquer outras formas de discriminação”.

É de se lembrar, também, que a Constituição Federal é, na sua essência, um diploma normativo inclusivo, do qual não se deve admitir qualquer interpretação de seu texto capaz de reconhecer e admitir alguma forma de discriminação, protegendo o cidadão de sofrimentos evitáveis na sua esfera social de relacionamentos cotidianos.

É importante perceber que o princípio da dignidade da pessoa humana, erigido, como vimos, em pilar do eixo central de garantias da Constituição Federal, comporta uma dimensão existencial capaz de permitir que os cidadãos busquem a própria felicidade, fazendo livremente as escolhas que lhes pareçam mais acertadas.

Aliás, a evolução da doutrina dos direitos humanos caminha para reconhecer sujeitos específicos de direitos, dando ao indivíduo uma visão particularizada, o que importa, como consequência, na hipótese de ocorrência de alguma violação dos seus direitos, em uma resposta individual, própria para uma determinada categoria tida como vulnerável no meio social, as chamadas minorias.

Então, cabe indagar: quem é o transexual? Quem é essa pessoa que está a merecer essa especial proteção do Estado enquanto integrante de uma minoria, exigindo uma visão particularizada no meio social em que vive?

O transexual é o indivíduo que nasceu homem ou mulher, segundo os critérios então vigentes para a definição do sexo, porém cresceu e se desenvolveu no seu íntimo como um indivíduo do sexo oposto, com hábitos, reações e aspecto físico diversos do seu sexo morfológico.

Ser transexual no Brasil atualmente é pertencer a um grupo invisível ou cuja visibilidade é ínfima. Transexuais são, na maioria das vezes, subcategorizados por meio de conceitos ligados à orientação sexual (como gay ou homossexual) que não se mostram aptos a enquadrá-los. O termo define identidade de gênero, mas as confusões conceituais são significativas, dada a falta de conhecimento que os indivíduos da sociedade em geral possuem acerca das pessoas transexuais. No âmbito jurídico, trata-se de pessoas que, muito embora se identifiquem como homens ou mulheres, não são vistas da forma como se apresentam. O binarismo baseado na genitália (possuir pênis para ser identificado como homem e vagina para ser identificada como mulher) acarreta consequências significativamente negativas na vida de tais indivíduos.

Há, no indivíduo transexual, e isso se revela extremamente importante, um repúdio ao sexo morfológico. Inclusive, o transexual não se enxerga como uma pessoa homossexual. Ele estranha o próprio corpo que a natureza lhe deu ao nascer, gerando uma perigosa frustação, um desconforto que conduz à automutilação e ao autoextermínio.

A ambiguidade sexual decorrente do fenômeno da transexualidade é meramente biológica, porque, no sentido psicossocial, o transexual tem a convicção de pertencer ao sexo oposto, com sentimentos, percepções, índole e conduta assim condizentes, em contraposição à sua genitália, que avilta o seu espírito.

Avançando na ideia de reconhecimento de direitos ao transexual, em que pese tratar-se de formalidade administrativa que não interfere no direito constitucional de escolha do seu projeto de vida, o registro público torna-se importante ante a sua natureza jurídica.

Registro é o conjunto de atos autênticos tendentes a ministrar prova segura e certa do estado das pessoas. Ele fornece meios probatórios fidedignos, cuja base primordial descansa na publicidade que lhe é imanente. Essa publicidade de que se reveste o registro tem função específica: provar a situação jurídica do registrado e torná-la conhecida de terceiros.

A Lei de Registros Públicos (Lei no 6.015/1973), cuja finalidade é conferir autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos da vida civil, adotou como critério distintivo dos sexos a conformação da genitália, ou seja, pênis para o sexo masculino e vagina para o sexo feminino.

Esclarece Walter Ceneviva, sobre esse ponto, que a autenticidade é qualidade do que é confirmado por ato de autoridade. A segurança, como libertação de riscos, é, em parte, atingida pelos registros públicos. Eficácia é a aptidão de produzir efeitos jurídicos calcada na segurança dos assentos, na autenticidade dos negócios e nas declarações para eles transpostos.

Ocorre, porém, que, nos dias atuais, o critério do sexo aparente estabelecido pela Lei de Registro Públicos não é suficiente para a definição do gênero, impondo-se a consideração das condições psicológicas e sociais do indivíduo, definidoras da sua real sexualidade.

O transtorno de identidade sexual é doença catalogada na 10a Revisão da Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde (CID10), tendo a cirurgia de redesignação de sexo como solução terapêutica para esses casos.

Aqui, cabe abrir um parêntese para afirmar que, em que pese à catalogação da OMS servir como fundamento para a superação do óbice previsto no artigo 13 do Código Civil, que somente autoriza a disposição de parte do próprio corpo por exigência médica, ouso dizer que: 1) não estamos diante de hipótese patológica; 2) o procedimento médico não é ato essencial para a definição do gênero.

A identidade sexual integra, ao meu sentir, os direitos da personalidade. Afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da sua real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto.

Nesse diapasão, é absolutamente irrelevante para a definição do direito de alterar o gênero e o prenome que constam do registro civil a realização do procedimento cirúrgico de redesignação sexual. O transexual já sente, em seu íntimo, pertencer ao sexo oposto, de modo que a realização ou não do procedimento de redesignação sexual se mostra irrelevante para a definição do gênero e, por consequência, do direito à alteração do prenome.

O Poder Judiciário avançou bastante no tema, mesmo que o caminho ainda seja longo para a integral concretude dos direitos dos transexuais. Walter Ceneviva, citando decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, lembra que o Poder Judiciário bandeirante decidiu ser impossível retificar assento de nascimento para o fim de ficar constando mudança de sexo decorrente de ato cirúrgico errado, quiçá até criminoso, para atribuir ao interessado sexo que na realidade não tinha, nem poderá jamais ter. Prossegue o autor para dizer que o caso cuidou de pessoa registrada, ao nascer, como do sexo masculino. Todavia, os órgãos genitais caracterizadores de tal sexo ficaram atrofiados. Passou a ter mamas salientes e outros sinais femininos. Submetido a exames e tratamento psicoterápico, mais tarde veio a ser operado, quando lhe foram tirados aqueles órgãos, abrindo-se-lhe espécie de vagina, embora não tivesse útero nem ovários. O processo decorreu de seu pedido de retificação do registro a fim de ficar constando que seu sexo era o feminino. Por fim, afirma que concluiu o acórdão ser lamentável a situação criada pela operação, mas afirmou não ser possível dar-lhe sexo que não tem e que poderá levar pessoas a se unirem, em matrimônio, ao apelante quando um dos fins do enlace (a procriação) jamais poderá ser atingido. Aliás, tivesse tido o apelado tratamento adequado, em tempo mais remoto, e poderia, tudo faz crer ter chegado a ser um homem praticamente normal.

É importante lembrar que, para os casos de indivíduos transexuais que realizaram a cirurgia de redesignação, a jurisprudência aceita com certa tranquilidade, quiçá de forma pacífica, as alterações do gênero e do prenome, inclusive com dois precedentes no Superior Tribunal de Justiça.

Em ambos os casos, o fundamento usado para permitir as alterações do registro civil, na essência, foi a desconformidade entre o sexo biológico imposto ao nascer (critério legal) e o psicológico, que vive no íntimo do indivíduo.

Nessa quadra, ao meu sentir, não há fundamento jurídico outro que possa impedir a autorização para as mudanças de sexo e de prenome para os transexuais não operados.

Não há, portanto, adotando-se o fundamento utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça, razão jurídica diversa que possa obstar o mesmo direito para os indivíduos transexuais não operados, pois estes também se sentem no seu íntimo como pertencentes ao sexo oposto.

A cirurgia de redesignação, na minha visão, é mera etapa complementar de todo um procedimento que inclui também, por exemplo, outras espécies de procedimentos cirúrgicos e a terapia hormonal. Não é demais lembrar vários casos de pessoas que não podem se submeter ao ato cirúrgico ou que são temerosas em relação a qualquer espécie de intervenção médica.

Além disso, some-se que a redesignação do sexo feminino para o masculino constitui procedimento não comum e sujeito a maiores riscos do que a redesignação do sexo masculino para o feminino, além do que a eficácia do membro construído ainda é duvidosa no primeiro caso.

Lembro, por oportuno, que no caso da redesignação do sexo feminino para o masculino até mesmo o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS aceita a realização do procedimento. Havendo, assim, e desta exigência não há como se afastar, laudo técnico psicológico que ateste a condição de transexual (convicção íntima de pertencer ao sexo oposto), tal prova já é suficiente para permitir as alterações do gênero e do prenome, independentemente do ato cirúrgico.

Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de decisão monocrática, amparada na jurisprudência dominante da Corte, homologou sentença estrangeira que havia reconhecido o direito às alterações de gênero e de prenome de pessoa transexual.

No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, é verdade, ainda refratário às alterações do gênero e do prenome sem a realização da cirurgia, há três importantes precedentes em sentido oposto.

Em Apelação da Relatoria do Desembargador Donegá Morandini, foi autorizada a alteração somente do prenome.

Mais abrangente, na Apelação de Relatoria do Desembargador Vito Guglielmi e na Apelação da Relatoria do Desembargador Beretta da Silveira, o Tribunal admitiu, além do prenome, a alteração do gênero.

Consta da primeira Apelação a observação no sentido de que a alteração deverá ser averbada no registro civil, informando que se deu por decisão judicial. Na visão da 6a Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, de um lado assegura-se o direito de terceiros, pois não há rompimento com a vida civil anterior e, de outro, preservam-se a dignidade e a privacidade do interessado, pois a informação não constará dos documentos de uso diário, constando, segundo a decisão, apenas da certidão de nascimento.

Sobre esse ponto, penso que melhor se revela o decidido pela 3a Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, no sentido de que a informação seja anotada no livro registral, ao exclusivo conhecimento do interessado ou constando apenas das certidões de inteiro teor, somente expedidas com autorização judicial, nos moldes do que já acontece com os casos de adoção.

A vingar a tese de que se pode admitir nas certidões do registro público qualquer referência, ainda que genérica, sobre as alterações do gênero e do prenome, estar-se-ia perpetuando o constrangimento, em clara afronta ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Nessa mesma linha, em sede do Recurso Especial, com origem em Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o ministro Marco Buzzi decidiu que:

1. Quanto à averbação, no livro cartorário, à margem do registro, de que a retificação do prenome e do sexo da requerente se deu em virtude de decisão judicial, infere-se que a temática já foi objeto de manifestação por esta Corte, orientando-se no sentido da tese defendida pelo ora recorrente, com as devidas mitigações. Nesse contexto, destacam-se os seguintes julgados, o primeiro, ressalte-se, colacionado como paradigma no presente apelo extremo, e cujo entendimento fora mitigado pela jurisprudência mais recente da Segunda Seção desta Corte: Mudança de sexo. Averbação no registro civil. 1. O recorrido quis seguir o seu destino, e agente de sua vontade livre procurou alterar no seu registro civil a sua opção, cercada do necessário acompanhamento médico e de intervenção que lhe provocou a alteração da natureza gerada. Há uma modificação de fato que se não pode comparar com qualquer outra circunstância que não tenha a mesma origem. O reconhecimento se deu pela necessidade de ferimento do corpo, a tanto, como se sabe, equivale o ato cirúrgico, para que seu caminho ficasse adequado ao seu pensar e permitisse que seu rumo fosse aquele que seu ato voluntário revelou para o mundo no convívio social. Esconder a vontade de quem a manifestou livremente é que seria preconceito, discriminação, opróbrio, desonra, indignidade com aquele que escolheu o seu caminhar no trânsito fugaz da vida e na permanente luz do espírito. 2. Recurso especial conhecido e provido. (REsp no 678.933/RS, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes de Direito, 3a Turma, DJ 21/5/2007). REGISTRO PÚBLICO. MUDANÇA DE SEXO. EXAME DE MATÉRIA CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME NA VIA DO RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA N. 211/STJ. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO. DECISÃO JUDICIAL. AVERBAÇÃO. LIVRO CARTORÁRIO. 1. Refoge da competência outorgada ao Superior Tribunal de Justiça apreciar, em sede de recurso especial, a interpretação de normas e princípios de natureza constitucional. 2. Aplica-se o óbice previsto na Súmula n. 211/STJ quando a questão suscitada no recurso especial, não obstante a oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pela Corte a quo. 3. O acesso à via excepcional, nos casos em que o Tribunal a quo, a despeito da oposição de embargos de declaração, não regulariza a omissão apontada, depende da veiculação, nas razões do recurso especial, de ofensa ao art. 535 do CPC. 4. A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo legal para que transexual operado obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive. 5. Não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade. 6. No livro cartorário, deve ficar averbado, à margem do registro de prenome e de sexo, que as modificações procedidas decorreram de decisão judicial. 7. Recurso especial conhecido em parte e provido. (REsp 737.993/MG, Relator Ministro João Otávio Noronha, 4a Turma, DJe 18/12/2009; grifou-se). Acerca do tema e perfilhando do mesmo entendimento, destaca-se ainda a decisão unipessoal proferida em sede de homologação de sentença estrangeira (SE no 4179/IT), da lavra do Ministro Cesar Asfor Rocha, publicada em 15/4/2009, de cuja parte dispositiva assim constou: Posto isso, homologo o título judicial estrangeiro, observando, no entanto, que, conforme ressaltado em precedente desta Corte (REsp 678.933/RS) e nos termos dos parágrafos 4o e 6o do art. 109 da Lei 6.015/1973, deverá ficar consignado às margens do registro civil do requerente que as modificações do nome e do sexo decorreram de decisão judicial. Expeça-se a carta de sentença. O entendimento acima explicitado [possibilidade de averbação] fundamenta-se na necessária correlação entre o teor do registro e a realidade/veracidade fática, conforme destacado pelo Ministro Carlos Alberto Menezes de Direito, no precedente supramencionado: Não se pode esconder no registro, sob pena de validarmos agressão à verdade que ele deve preservar, que a mudança decorreu de ato judicial, nascida da vontade do autor e que tornou necessário ato cirúrgico complexo. Trata-se de registro imperativo e com essa qualidade é que se não pode impedir que a modificação da natureza sexual fique assentada para o reconhecimento do direito do autor. (cf. REsp no 678.933/RS). E ainda, segundo o Ministro João Otávio Noronha: Vale ressaltar que os documentos públicos devem ser fiéis aos fatos da vida, além do que deve haver segurança nos registros públicos. Dessa forma, no livro cartorário, à margem do registro das retificações de prenome e de sexo do requerente, deve ficar averbado que as modificações procedidas decorreram de sentença judicial em ação de retificação de registro civil. Tal providência decorre da necessidade de salvaguardar os atos jurídicos já praticados, objetiva manter a segurança das relações jurídicas e, por fim, visa solucionar eventuais questões que sobrevierem no âmbito do direito de família (casamento), no direito previdenciário e até mesmo no âmbito esportivo. (Cf. REsp 737.993/MG). Neste particular, portanto, merece acolhimento a pretensão recursal, com as ressalvas a seguir expostas. 2. No que concerne ao teor das futuras certidões, requer o Ministério Público Estadual, ora recorrente, que sejam expedidas com a menção genérica da existência de elementos de averbação à margem do termo, que somente poderão ser solicitadas mediante requerimento do interessado ou por requisição da autoridade judicial (fl. 207, e-STJ). No entanto, referido entendimento não merece prosperar, porquanto não encontra respaldo na jurisprudência desta Corte, orientada em sentido oposto. A fim de ilustrar, cumpre transcrever excerto do voto do Ministro João Otávio Noronha, ao enfrentar questão idêntica a que ora se analisa, em precedente cuja ementa foi acima transcrita: […] tal averbação deve constar apenas do livro de registros, não devendo constar nas certidões do registro público competente nenhuma referência de que a aludida alteração é oriunda de decisão judicial, tampouco que ocorreu por motivo de cirurgia de mudança de sexo, sob pena de manter a exposição do indivíduo a situações constrangedoras e discriminatórias. (cf. 737.993/MG). Nesse sentido se destaca, outrossim, o acórdão proferido no julgamento do REsp no 1.008.398/SP, de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi (3a Turma, DJe 18/11/2009), cuja discussão se referia à hipótese muito semelhante ao presente caso, em que se determinou […] que das certidões do registro público competente não conste que a referida alteração é oriunda de decisão judicial, tampouco que ocorreu por motivo de redesignação sexual de transexual. Ademais, no caso em tela, consoante se depreende dos autos, houve a apresentação de certidões expedidas por diversos órgãos estaduais e federais, de modo a resguardar eventuais direitos de terceiro. Desse modo, embora se admita a averbação, no livro cartorário e à margem do registro, de que alteração se deu em função de decisão judicial, a existência da mencionada averbação não deverá constar das futuras certidões do registro público, como imperativo da proteção à intimidade. 3. Do exposto, com fulcro no artigo 557, § 1o-A, do Código de Processo Civil, dou parcial provimento ao recurso especial, a fim de autorizar a averbação, apenas no livro cartorário e à margem do registro, de que a retificação do prenome e do sexo da requerente é oriunda de decisão judicial, sendo vedada, nos termos da fundamentação, qualquer menção a este fato nas certidões do registro público.

Por fim, cabe dizer que, sobre esse tema, estamos atrasados, ao menos no aspecto legislativo. É que, enquanto em países como a Alemanha há legislação que permite aos pais, quando do nascimento do filho, adotar o sexo como indefinido e a Argentina, que editou a Lei de Identidade de Gênero, no Brasil não há qualquer perspectiva nesse sentido.

O Brasil ainda sedimenta seu caminho, em passos lentos, com o reconhecimento por órgãos estatais do direito ao uso do nome social, ou seja, aquele pelo qual o transexual pretende ver-se chamado no meio social em que vive, sem alteração no assento de nascimento.

Algumas entidades de caráter privado, caso de escolas e universidades, avançam ao criar banheiros sem identificação de gênero ou extinguindo comemorações ligadas ao gênero, substituindo, por exemplo, o Dia das Mães e o Dia dos Pais pela festa da família.

Não há mais espaço para meia dignidade: ou aplicamos a Constituição Federal em sua inteireza ou rasgamos o seu texto. Não se pode admitir mais que o cidadão transexual seja colocado à margem da sociedade.

O Poder Judiciário, atento à evolução do fato social, tem cumprido o seu papel. Cabe agora ao legislador, representante dessa sociedade plural, fazê-lo.

 

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