Processo Civil de interesse público – processo estrutural e estratégico

28 de fevereiro de 2023

Antônio César Bochenek Juiz Federal no TRF4 / Professor do Mestrado da Enfam

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Nos últimos anos é perceptível, na arena política e social, que a insuficiência da atuação dos poderes constituídos e o desejo de efetividade das políticas públicas acarretam a transferência ao Judiciário de parte considerável dos debates e também das decisões a respeito da implementação ou omissão das políticas públicas. A nova arquitetura institucional propicia o desenvolvimento de ambiente político e social, arena pública, que viabiliza e prioriza a maior participação ativa de todos, especialmente do Judiciário, nos processos decisórios, e ocupa um lugar estratégico no controle das políticas públicas (BOCHENEK, 2013).

Assim, após intensos debates, inclusive em processos judiciais, é possível dizer que não prevalece mais a tese de que o Judiciário não pode analisar as políticas públicas ou a falta delas, ao contrário, cada vez mais é demandado a se posicionar a respeito dos mais variados temas. O Supremo Tribunal Federal consolidou o posicionamento de ser lícito ao Poder Judiciário determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação dos Poderes (BRASIL, 2014). É possível, assim, que a atuação do Judiciário não seja “cegamente omissa” nem “irresponsavelmente ativista”, mas que garanta os direitos fundamentais, ou seja, é lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas para efetivar os direitos constitucionais, não sendo oponíveis o argumento da reserva do possível e o princípio da separação dos Poderes (BRASIL, 2016).

Logo, há consenso de que o Judiciário, direta ou indiretamente, analisa e influencia nas políticas públicas quando aprecia as demandas que lhe são submetidas e é ator relevante da arena pública e do processo político e social. Por outro lado, o incremento da importância do Judiciário também fomenta o debate a respeito dos seus limites, às suas formas, às objeções, à sua extensão e a outros pontos, para definir e encontrar o equilíbrio da medida mais adequada da intervenção. Também é relevante lembrar que outros fatores externos ao processo judicial (alterações temporais, sociais, culturais) transmutam as relações jurídicas e o Judiciário.

Para tanto, essas medidas estruturais equilibram eventuais excessos de ativismo e despontam novas funções do Judiciário nas sociedades contemporâneas, que necessariamente exige uma postura mais aberta ao diálogo e à participação democrática cidadã e institucional, ainda que a legislação processual brasileira não contemple ferramentas específicas para tal finalidade.

Assim, o Processo Civil de interesse público – estratégico e estrutural – é instrumento necessário e fundamental para moldar este novo modelo de arquitetura institucional. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça se pronunciou para reconhecer as demandas estruturais no sistema de Justiça brasileiro e o controle judicial de políticas públicas. Destaca-se o acórdão do Recurso Especial no 1.733.412/12, voto relatado pelo Ministro Og Fernandes, julgado na sessão de 17/9/2019, pela 2a Turma. Nesse processo, foi afastada a decisão genérica indeferitória de impossibilidade de intervenção judicial nas falhas de prestação do serviço de saúde.

Também os ministros da 3a Turma do STJ, no Recurso Especial no 1.854.847/CE, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, na sessão de 2/6/2020, reconhecem os litígios de natureza estrutural e as suas principais características. O caso decidido teve como debate a política pública de acolhimento institucional de menores por período superior àquele estipulado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e as repercussões das políticas públicas envolvidas nesse caso.

Em termos amplos, sociais e jurisprudenciais, se os atores sociais e institucionais depositam suas demandas no Judiciário, este se transforma numa arena de debate do espaço público democrático. Neste passo, ocorre a evolução e a transmutação das funções judiciais que são os desafios estruturantes a serem estudados.

Por sua vez, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei no 8.058/2014, com o objetivo de regulamentar o processo especial para controle e intervenção em políticas públicas pelo Poder Judiciário, com várias ponderações, interessantes e relevantes, a respeito de um novo modelo prestacional de jurisdição. A análise detida do texto revela que é possível destacar as características, as nomenclaturas e os valores a seguir: estruturais; policêntricos; dialogais; de cognição ampla e profunda, de modo a propiciar ao juiz o assessoramento necessário ao pleno conhecimento da realidade fática e jurídica; colaborativos e participativos, flexíveis quanto ao procedimento a ser consensualmente adaptado ao caso concreto; sujeitos à informação, ao debate e ao controle social, por  qualquer meio adequado, processual ou extraprocessual; tendentes às soluções consensuais, construídas e executadas de comum acordo com o Poder Público e que adotem, quando necessário, comandos judiciais abertos, flexíveis e progressivos, de modo a consentir soluções justas, equilibradas e exequíveis, na flexibilização do cumprimento das decisões; que preveem o adequado acompanhamento do cumprimento das decisões por pessoas físicas ou jurídicas, órgãos ou instituições que atuem sob a supervisão do juiz e em estreito contato com este.

Apesar do debate legislativo não ter avançado, a prática processual revela que tal medida é cada vez mais urgente e necessária, e os juízes, por todo o País, têm adotado, em níveis e dimensões variadas, os preceitos identificados no anteprojeto.

Ainda em termos legislativos, posteriormente, houve outro avanço significativo, especialmente na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB/ Lei no 13.655/2018), com detalhamentos de comandos a serem observados e aplicados pelos juízes e administradores no exercício das suas atividades.

As premissas expostas no presente trabalho transcendem os preceitos e as regras de Processo Civil tradicional, que sempre esteve focado no processo individual, sobretudo no Processo Civil para o debate de casos entre pessoas e entes privados.

Muitos interesses estão além das esferas individuais ou de grupos de interesse e precisam ser objeto de estudos e investigação com o objetivo de atender aos reclamos sociais e assegurar os direitos fundamentais exigíveis nesta quadra histórica, por meio de novas e melhores soluções.

Portanto, é possível dizer que não há apenas um ou poucos modelos de procedimentos para o Judiciário utilizar nas suas atividades, ao contrário, haverá tantos modelos quanto os tipos de conflitos de interesses submetidos ao Judiciário, ou seja, para cada processo, um tipo de procedimento adaptável e flexível às próprias características do conflito de interesses.

Os postulados estão à mesa e permitem uma atuação adaptável, por parte dos operadores do sistema de Justiça, quanto aos tipos de conflito e litígios submetidos ao Judiciário. Assim, aos juízes, em face da função condutora e impulsionadora da demanda, são acrescentadas novas atribuições para aplicar as melhores técnicas de gestão, processual e administrativa, moldadas para cada conflito estrutural e estratégico que é designado aqui de Processo Civil de interesse público.

No Processo Civil de interesse público prevalece a organização processual comparticipada, cooperada (cooperação institucional), negociada (negócios processuais) e consensual (convencionalidade), cujos resultados processuais efetivos serão melhores se forem bem utilizados, principalmente pela participação colaborativa da gestão judicial, essencialmente necessária para a gestão dos processos estruturais (BOCHENEK, 2022). São exemplos, a participação efetiva, ativa e cooperativa do juiz gestor: líder na construção de soluções conjuntas, atuações e decisões estratégicas, com a superação do velho dogma da inércia; gestor público e gestor do processo; agente transformador de mudanças sociais significativas.

A complexidade e a conflituosidade policêntrica exigem do juiz novas técnicas para articular e gerir o tempo do processo, em outros termos, antecipar ou postergar o exame de determinados pontos, a considerar estrategicamente o momento oportuno, além de contar com a comparticipação, em variadas dimensões, institucionais e privadas, de sujeitos externos. Este texto apresenta reflexões para a formação do Processo Civil de interesse público, estratégico e estrutural, terreno fértil para novas pesquisas e experiências. 

Referências bibliográficas___________________________

BOCHENEK, Antônio César. “A interação entre tribunais e democracia por meio do acesso aos direitos e à Justiça: Análise de experiências dos juizados especiais federais cíveis brasileiros”. 1a edição. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2013. v. 1, 561.

BOCHENEK, Antônio César. “Demandas estruturais: Flexibilidade e gestão”. ReJuB – Revista Judiciária Brasileira. Brasília, Ano 1, no 1, pp. 155-178, jul./dez. 2022.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei no 8.058/2014. Institui processo especial para o controle e intervenção em políticas públicas pelo Poder Judiciário e dá outras providências. Brasília: Câmara dos Deputados, 2014. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=687758 Acesso em: 24/5/2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (2a Turma). Recurso Especial no 1.733.412/SP. Recorrente: Ministério Público do Estado de São Paulo. Recorrido: Hospital Municipal Professor Alipio Correa Netto, Ermelino Matarazzo e Município de São Paulo. Relator: Ministro Og Fernandes, 17/9/2019. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201702412530&dt_publicacao=20/09/2019. Acesso em: 24/5/2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (3a Turma). Brasília, Recurso Especial no 1.854.847/CE. Recorrente: Ministério Público do Estado do Ceará. Recorrido: Município de Fortaleza. Relatora: Ministra Nancy Andrighi, 2/6/2020. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/

GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201901607463&dt_publicacao=04/06/2020. Acesso em: 24/5/2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (1a Turma). Agravo Regimental em Agravo de Instrumento no 739.151/PI. Agravante: Estado do Piauí. Agravado: Ministério Público do Estado do Piauí. Relatora: Ministra Rosa Weber, 27/5/2014. DJe 11.06.2014. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=233607256&ext=.pdf. Acesso em: 24/5/2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário no 592.581/RS. Repercussão geral. Recurso do MPE contra Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Reforma de sentença que determinava a execução de obras na Casa do Albergado de Uruguaiana. Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Recorrido: Estado do Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, 13/8/2015. DJe, 1/2/2016. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2637302. Acesso em: 24/5/2021.

BRASIL. Lei no 13.655, de 25/4/2018. Inclui no Decreto-Lei no 4.657, de 4/9/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do Direito Público. Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13655.htm#art1. Acesso em: 14/4/2021.