Edição 112
Procuradores do estado e intimação pessoal
30 de novembro de 2009
Marco Antonio dos Santos Rodrigues Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Professor Assistente de Direito Processual Civil da UERJ
1. O direito à intimação pessoal no processo civil
No direito processual civil brasileiro, ato fundamental para comunicação no curso do processo, dando ciência de seus atos e termos, é a intimação. Esse ato de comunicação processual deve se dar, via de regra, através do advogado, pela via da publicação na imprensa oficial, conforme estabelecido no caput do artigo 236 do Código de Processo Civil.
Diante dessa previsão, como regra geral, as partes devem ser intimadas por meio de seus advogados, que devem acompanhar as publicações efetuadas pelo Poder Judiciário no órgão oficial de imprensa.
Determinados órgãos, porém, gozam de prerrogativas específicas quanto à intimação. O primeiro deles é o Ministério Público, na forma do parágrafo 2o do artigo 236 do Código de Processo Civil, que garante aos membros do Ministério Público sua ciência pessoal[1].
Confira-se, outrossim, a Defensoria Pública. O artigo 5o, parágrafo 5o, da Lei no 1060/50, concede aos defensores públicos, cuja carreira seja organizada e mantida pelos Estados o benefício processual da intimação pessoal ao longo de todo o processo[2]. Ademais, a Lei Complementar no 80/94, que organiza a referida carreira, segue no mesmo sentido, consagrando expressamente a ciência pessoal dos atos e termos da causa às Defensorias Públicas instituídas nos Estados[3].
Também os procuradores de entes públicos devem possuir a prerrogativa da intimação pessoal: o interesse público que justifica a criação da própria carreira, para atuação na defesa do Estado ou de entidades da Administração indireta, impõe que possuam uma diferenciada forma de intimação, em que não haja risco de não ocorrer a ciência de um ato processual. Assim sendo, aos membros da Advocacia da União e da Procuradoria da Fazenda Nacional o legislador federal também conferiu tal benefício, na Lei Complementar no 73/93, no seu artigo 38[4].
No caso da Procuradoria Geral Federal, carreira instituída pela Lei no 10.480/2002 para a representação judicial das entidades da Administração Indireta federal, e da Procuradoria do Banco Central, também há previsão expressa da garantia da ciência pessoal dos atos processuais, na Lei no 10.910/2004, em seu artigo 17[5].
No que tange às Procuradorias dos Estados, porém, não há previsão no Código de Processo Civil ou em lei federal que estabeleça a intimação pessoal em favor dos Procuradores em caráter geral, para todo e qualquer processo, mas apenas previsões quanto a situações especiais em que se lhes defere tal prerrogativa, como nas ações de execução fiscal, em que a Lei 6830/80 define expressamente que haverá a ciência pessoal aos representantes da Fazenda Pública[6]. No entanto, a ausência de norma federal não pode levar à conclusão de que não haja a referida garantia em favor das Procuradorias estaduais[7].
2. Uma questão de isonomia
As Procuradorias dos Estados fazem jus ao benefício da cientificação pessoalmente dos atos do processo, em primeiro lugar, por uma evidente razão de isonomia.
Vê-se que o legislador procurou criar a garantia processual em questão às carreiras jurídicas em que haja alguma razão para a diferenciação da intimação em relação aos demais litigantes da relação processual. Muitas vezes legislar implica realizar distinções entre sujeitos, e essa atividade não caracteriza necessariamente uma violação à igualdade.
A isonomia pode se revelar sob dois aspectos: o formal e o material. O primeiro deles representa a mera igualdade entre sujeitos diante da lei. No entanto, para que a garantia constitucional da igualdade (artigo 5o, caput, da Constituição da República) seja efetiva, imprescindível também que seja observada sob o prisma material, isto é, no plano real, o que impõe que os desiguais sejam tratados de maneira desigual, a fim de atingi-la.
Dessa forma, não há inconstitucionalidade na previsão de uma prerrogativa processual de tal espécie em favor de certas carreiras jurídicas, de modo a promover a isonomia substancial.
Na hipótese do Ministério Público, trata-se de norma que se justifica na natureza dos interesses defendidos pela instituição em questão, uma vez que atuará em demandas em que há um interesse público evidente, ou alguma outra espécie de interesse que justifique a sua presença na causa, como no caso do incapaz.
Com relação à Defensoria Pública, a previsão dessa prerrogativa parece ter fundamento no elevado volume de causas a serem patrocinadas por esse órgão, bem como nas dificuldades materiais à sua atuação, como obstáculos fáticos ao contato direto com o assistido.
No caso da Advocacia da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional e da Procuradoria Federal, o interesse público a ser defendido em suas atuações, o elevado número de funções a serem exercidas e a dificuldade material muitas vezes encontrada na obtenção de informações para atuação justificam as previsões legais concessivas de intimação pessoal.
Assim, as normas mencionadas no capítulo anterior atuam como mecanismo de promoção da igualdade material entre as carreiras jurídicas beneficiadas e os demais advogados, procurando estabelecer uma paridade de armas no processo, objetivo não só da isonomia processual, mas também da própria garantia constitucional do acesso à Justiça[8].
Quanto aos Procuradores do Estado, muitas das razões existentes para as demais carreiras jurídicas gozarem da prerrogativa processual em análise também se fazem presentes. As Procuradorias dos Estados atuam diretamente buscando defender o interesse público em jogo, nas demandas sujeitas à sua representação. Ademais, também quanto a estas se verifica um grande número de funções a serem exercidas e uma dificuldade material frequente para obtenção de informações à sua atuação.
Assim sendo, na falta de norma processual expressa, isso não exclui do magistrado seu dever de zelar pela igualdade entre as partes, especialmente a material, dever esse que lhe é imposto pelo artigo 125, I, do Código de Processo Civil, o que determina que deve o Judiciário se valer da analogia para promover a igualdade, reconhecendo o direito à intimação pessoal aos Procuradores da Fazenda estadual[9].
Nessa esteira, vale recordar que o próprio artigo 126 do Código de Processo Civil permite ao julgador que, para decidir, aplique a analogia, na ausência de previsão legal.
Dessa maneira, diante da existência de diversas normas que impõem a ciência pessoal dos atos processuais a carreiras jurídicas, e inserindo-se as Procuradorias dos Estados nas mesmas razões justificadoras da aplicação de tais regras diferenciadoras, impõe-se a aplicação da analogia, estendendo-se a prerrogativa a essa carreira.
3. A competência estadual para legislar sobre questões procedimentais – o caso da Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro
Além da própria isonomia, que justifica o benefício processual à Fazenda estadual, mister faz-se salientar que a aludida prerrogativa também pode advir de previsão específica em legislação estadual.
Conforme se verifica no artigo 22, I, da Constituição da República, a competência legislativa é privativa da União para legislar em matéria de direito processual. No entanto, em razão da autonomia dos entes federativos, o constituinte instituiu competência legislativa concorrente à União, Estados e Distrito Federal para procedimentos em matéria processual, nos termos do artigo 24, XI[10].
Diante disso, verifica-se que os Estados, no âmbito de sua autonomia organizacional, podem instituir normas procedimentais especiais, a fim de melhor aplicar as normas processuais definidas pela União, sem com elas conflitar. Nesse sentido, insere-se o artigo 44, IV, da Lei Complementar do Estado do Rio de Janeiro no 15/80, que confere aos Procuradores do Estado a prerrogativa de tomar ciência pessoal dos atos e termos do processo[11].
Dessa forma, à luz de previsão de norma específica estadual, editada com base em competência legislativa concorrente para a instituição de normas procedimentais em matéria processual, resta evidente que a Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro goza da prerrogativa de intimação pessoal quanto aos atos e termos do processo[12], possuindo tal direito cristalinamente outras Procuradorias Estaduais às quais a lei estadual tenha conferido o benefício, no âmbito da competência legislativa concorrente.
4. Conclusões
Apesar de existir norma geral prevendo a intimação dos advogados através da publicação na imprensa oficial, não há vedação à instituição de outra forma específica para a realização da ciência às partes dos atos do processo, como a lei federal realiza com relação ao Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia da União, Procuradoria da Fazenda Nacional e Procuradoria Federal, conferindo-lhes a comunicação de atos processuais pessoalmente.
Por força da isonomia e por uma interpretação finalística das normas instituidoras de meios especiais de intimação, deve ser estendida a prerrogativa em tela às Procuradorias dos Estados, que se deparam com dificuldades semelhantes às carreiras expressamente beneficiadas na lei, bem como atuam também em defesa do interesse público.
No caso da Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, norma estadual específica concede a intimação pessoal, devendo ser observada em todos os processos em que os membros da carreira atuem, salvo previsão expressa em contrário.
[1] “Art. 236. No Distrito Federal e nas Capitais dos Estados e dos Territórios, consideram-se feitas as intimações pela só publicação dos atos no órgão oficial. (…) § 2o A intimação do Ministério Público, em qualquer caso será feita pessoalmente”.
[2] “§ 5o Nos Estados onde a Assistência Judiciária seja organizada e por eles mantida, o Defensor Público, ou quem exerça cargo equivalente, será intimado pessoalmente de todos os atos do processo, em ambas as Instâncias, contando-se-lhes em dobro todos os prazos.” O Superior Tribunal de Justiça reconhece tal prerrogativa à Defensoria Pública, conforme se verifica no seguinte julgado: STJ, 2a Turma, rel. Min, Herman Benjamin, EDcl no Ag 906012, publ. DJ 24.3.2009.
[3] “Art. 128. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública do Estado, dentre outras que a lei local estabelecer: (…) I – receber, inclusive quando necessário, mediante entrega dos autos com vista, intimação pessoal em qualquer processo e grau de jurisdição ou instância administrativa, contando-se-lhes em dobro todos os prazos;”
[4] “Art. 38. As intimações e notificações são feitas nas pessoas do Advogado da União ou do Procurador da Fazenda Nacional que oficie nos respectivos autos”.
[5] “Art. 17. Nos processos em que atuem em razão das atribuições de seus cargos, os ocupantes dos cargos das carreiras de Procurador Federal e de Procurador do Banco Central do Brasil serão intimados e notificados pessoalmente”.
[6] “Art. 25. Na execução fiscal, qualquer intimação ao representante judicial da Fazenda Pública será feita pessoalmente. Parágrafo Único – A intimação de que trata este artigo poderá ser feita mediante vista dos autos, com imediata remessa ao representante judicial da Fazenda Pública, pelo cartório ou secretaria”.
[7] Em sentido contrário: “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTIMAÇÃO PESSOAL DO PROCURADOR DO ESTADO. DESNECESSIDADE. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO FORA DO PRAZO ESTABELECIDO. 1. Ao contrário do Advogado da União, do Procurador da Fazenda Nacional, do Defensor Público e do Ministério Público, os Procuradores de Estado, do Distrito Federal e de Municípios, não fazem jus ao beneficio da intimação pessoal, sendo válida a intimação efetuada via imprensa. 2. Agravo interno a que se nega provimento” (STJ, 6ª Turma, rel. Min. Jane Silva, AgRg no Ag 970341, publ. DJ 20.10.2008).
[8] Para Mauro Cappelletti, o direito de ação poderia ser exprimido como uma completa paridade de armas. Confira-se: “A efetividade perfeita, no contexto de um dado direito substantivo, poderia ser expressa como a completa ‘igualdade de armas’ – a garantia de que a conclusão depende apenas dos méritos jurídicos relativos das partes antagônicas, sem relação com diferenças que sejam estranhas ao Direito e que, no entanto, afetam a afirmação e a reivindicação dos direitos. Essa perfeita igualdade, naturalmente, é utópica. As diferenças entre as partes não podem jamais ser completamente erradicadas. A questão é saber até onde avançar na direção do objetivo utópico e a que custo. (…)” (CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, reimpressão, 2002, p. 15)
[9] Nesse sentido, MARTINS, Fernando Barbalho. “Os Procuradores do Estado e o direito à intimação pessoal”. In: Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, vol. XX. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 75.
[10] “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (…) XI – procedimentos em matéria processual;”
[11] “Art. 44. São prerrogativas dos Procuradores do Estado: (…) IV – tomar ciência pessoal de atos e termos dos processos em que funcionarem;”
[12] O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro possui precedente adotando a norma estadual em questão: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA RITO SUMÁRIO. SENTENÇA PUBLICADA EM DEZ DE FEVEREIRO DO CORRENTE ANO. O ESTADO SÓ TEVE ACESSO AOS AUTOS EM DEZESSEIS DE MARÇO DO MESMO ANO. CONTAGEM DO PRAZO A PARTIR DA DATA EM QUE OS AUTOS FORAM RETIRADOS DE CARTÓRIO PELA PROCURADORIA DO ESTADO, DE ACORDO COM O ARTIGO 44, IV DA LEI COMPLEMENTAR DE No 15/1980. – DECISÃO QUE SE REVOGA PARA QUE SEJA RECEBIDO O RECURSO DE APELAÇÃO. – INCIDÊNCIA DO ART. 557, CAPUT, DO CPC. RECURSO A QUE SE DÁ PROVIMENTO” (TJRJ, 14a Câmara Cível, rel. Des. Edson Scisinio Dias, AI 21996/2009, julg. em. 9.7.2009). No mesmo sentido, há precedente do Superior Tribunal de Justiça: EDcl no Ag 710585/BA, 2ª Turma, rel. Min. Francisco Peçanha Martins, julgado em 6/12/05, DJ 6/3/06.