Edição 86
Profecia confirmada
30 de setembro de 2007
Humberto Gomes de Barros Membro do Conselho Editorial, Ministro Aposentado do STJ e Advogado
Na época em que presidia o Superior Tribunal de Justiça, o ministro Edson Vidigal tentou mediar tratativas com escopo de evitar a falência da Varig – verdadeiro orgulho nacional. Seu esforço fracassou: a Varig desapareceu e seu complexo empresarial foi retalhado. Ficou-nos o gosto amargo do orgulho vilipendiado. De tudo restou aguda e dolorosa observação, cunhada por Vidigal: a de que o Brasil destruiu nossos transportes aquaviários, ferroviários e rodoviários. “Agora tratamos de exterminar o excelente transporte aéreo que tanto nos envaidecia” – concluiu Vidigal.
A constatação de Vidigal lembrou-me a adolescência em Maceió. Naquela época, havia sempre um Ita (Itanagé, Itaquicé etc.) atracado no porto. Nesses pequeninos navios, gastava-se uma noite para chegar ao Recife (metrópole de nossa região). Quem temia o mar tomava o trem da Great Western, para divertida viagem de aproximadamente onze horas, até a capital pernambucana. Ninguém usava o automóvel em tal viagem: as estradas eram precariíssimas.
O Estado de Alagoas dispunha de apenas 14 quilômetros de rodovia asfaltada (a estreita pista que ligava a praça centenária ao campo de aviação). Quem tinha pressa e dinheiro viajava de avião. Os DC-3 faziam o percurso em 45 minutos de vagaroso, barulhento e trepidante vôo. Quem se animava ao uso do avião dispunha de vários horários ao longo do dia. Tinha mesmo o direito de escolher a empresa transportadora (Real, Aerovias, Cruzeiro, Panair, Loyde Aéreo e algumas outras).
Depois, veio a estrada de rodagem. Ela acabou, primeiro, com os Itas; depois, com o trem. Hoje, trem e navio só existem nas canções de Caimy, nos versos de Ascenso ou na saudade de quem os utilizou. Restaram os automóveis, ônibus e aviões. Asfalto para todo lado, ninguém lamentou o passamento dos velhos transportes. Nossa atitude para com eles transpareceu imenso ressentimento: arrancamos os velhos trilhos, assoreamos rios e portos, e transformamos em ferro velho navios, vagões e locomotivas.
Aparentemente, tínhamos razões para tanto. A viagem de Maceió a Recife reduziu-se a quatro horas, em estradas pavimentadas – muito melhores do que as então precárias carreteras espanholas. O tempo de jornada entre essas duas cidades diminuiu ainda mais: os modernos aviões reduziram-no a exíguos 15 minutos. Por isso, nossa despedida à hidrovia e à ferrovia efetivou-se na base do “Já vai tarde!”.
Livres dos veículos ronceiros, sentíamo-nos no melhor dos mundos. Veio, porém, a “operação desmonte”, em que o Governo federal, declaradamente, abandonou as estradas que construíra. Pronto: em pouco tempo, nossa malha rodoviária transformou-se em perigosa sucessão de buracos. Pior ainda: à beira de cada cratera, postou-se um bandido, pronto a saquear quem nela caísse. Viajar de automóvel virou aventura.
Restava, entretanto, o moderno e bom avião. Operados por empresas bem organizadas, não nos deixavam sentir saudades. A distância entre Maceió e Recife transformou-se em légua-de-beiço. Varig, Cruzeiro, Vasp, Transbrasil e outras empresas menores, concorrendo entre si, faziam várias viagens diárias entre as capitais. Assim, o automóvel reduziu-se à prosaica função de entulhar nossas cidades.
Eis que nossos dirigentes, esquecendo tudo o que haviam pregado, optaram solenemente pelo neocapitalismo global. Em homenagem ao lucro, Varig comprou Cruzeiro; faliram Transbrasil, Vasp e as empresas menores. Depois, foi a vez de a Varig quebrar. Restam hoje TAM e GOL.
“Com essas empresas vitoriosas e seus aviões novos, rápidos e seguros” – pensei – “Maceió e Recife tornaram-se uma só metrópole.” Fiado nessa proposição e precisando visitar uma irmã, compareci a uma empresa de turismo solicitando a compra da passagem.
Após consultar o computador, a moça que me atendeu disse que as viagens diretas entre as duas cidades foram extintas. Havia somente dois percursos viáveis: ir a Brasília e, lá, tomar outro avião com destino a Recife ou voar até Salvador, onde apanharia vôo destinado à capital de Pernambuco. “Entre vôos efetivos e esperas em aeroportos” – esclareceu a atendente – “qualquer dessas viagens demandaria cinco horas. Isso se não houver atrasos.” Desisti de voar: “Vou de ônibus!”
Antes de tomar o táxi para a estação rodoviária, comprei a Gazeta de Alagoas, onde, na primeira mirada, enxerguei manchete, dando conta de que fora capturada mais uma quadrilha especializada em assaltar ônibus interestaduais. Desisti do táxi, do ônibus e da visita. Fui direto à agência do Correio. Lá, telegrafei a Vidigal: “Parabéns, profeta, você acertou. O transporte aéreo está destruído.”