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Progresso com parâmetros éticos

28 de fevereiro de 2010

Edvaldo Pereira de Moura Desembargador do TJEPI, Diretor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí

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A espécie humana é a única na natureza que se autoproduz na intenção de autoconsumir-se. Seu canibalismo sui generis estaria configurado na terrível alegoria da Esfinge, monstro com corpo de leão alado, cabeça e bustos humanos, vivendo à espreita dos viajantes incautos que, quando não decifravam suas perguntas enigmáticas, eram por ela devorados. Diante do mundo dos homens, ou deciframos seus mistérios ou esse mundo nos devora.
Uma segunda alegoria dos gregos nos faz despertar para a importância das ideias relativas ao progresso. Dâmocles, sentado à mesa do governante de Siracusa, quando elogiava a prosperidade daquela terra, assustou-se ao ver que no teto do salão, com a ponta dirigida à sua cabeça, pendia uma espada, presa apenas por um barbante de crina de cavalo. O anfitrião cuidou logo de explicar que não se tratava de nenhuma armadilha, nem aquele gesto tinha intenção ameaçadora ou desrespeitosa. Era apenas para dizer a Dâmocles e aos demais convivas que o progresso e a riqueza merecem mais sobressaltos dos seus gestores do que o descuido do gáudio e o orgulho das comemorações. É que progresso não se ostenta nem se comemora, administra-se, como quem tem apontada sobre a cabeça, diuturnamente, uma espada suspensa por um finíssimo barbante.
Também, enriquecendo o lendário grego, existia a figura assustadora de Procusto, um bandido que, quando apresava a vítima, conduzia-a a uma cama de ferro onde a amarrava. Se a pessoa fosse maior do que a cama, ele lhe cortava as pernas. Se fosse menor, suas pernas eram esticadas com correntes, até completarem a extensão do leito. É por isso que ainda usamos a expressão leito de Procusto para designar situações absurdas em que pessoas são submetidas a ajustamentos ideológicos ou dogmáticos, autoritários, repressores e intolerantes.
As alegorias da Esfinge, da espada de Dâmocles e do leito de Procusto nos situam diante da fatalidade existencial, premidos inexoravelmente pelas teias das nossas contingências, que têm o nome de progresso. Aliás, a palavra progresso se presta a uma série de dissensões que vão perder-se em intricados hermenêuticos, até porque nessa mesma palavra colidem valores antitéticos. Se perguntarmos ao médico sobre a situação de uma moléstia pertinaz, ele pode nos dizer que ela progride muito, embora todos os recursos lhe estejam sendo ministrados. Então o mal progride?
Se perguntarmos ao professor como está o rendimento do nosso filho na compreensão da Matemática, ele poderá nos dizer que o menino progride razoavelmente. Então, o bem progride? Aí está o acidente antitético, o paradoxal do progresso, onde duas categorias antitípicas se encontram. O progresso serve ao bem e serve ao mal. Seu direcionamento é relativo e convencional.
O progresso está contido nas cogitações lógicas, biológicas, gnosiológicas, cosmológicas, antropológicas, metafísicas, políti­cas, éticas, estéticas, linguísticas, pedagógicas, históricas e em todos e quaisquer direcionamentos epistemológicos ou axioló­gicos do conhecimento. O progresso é, também, o segmento axial da nossa historicidade e decorrências, tão necessárias quanto contingenciais, que sempre nos acompanhará.
O progresso está nas cruezas das leis naturais, nas sutilezas intangíveis do pensamento e nos agregados das ideias, que tangem as civilizações. É, no entanto, nas relações interpessoais dos homens e destes com a natureza que a conceituação de progresso ganha o seu status verdadeiro. Podemos agora dizer que o progresso é a força que impulsiona a humanidade desde os limites imemoriais dos tempos. Nesse sentido, as ideias são a essência de tudo o que se materializa em forma de evolução.
Então, a força do progresso estaria na força das ideias? Disso não resta a menor dúvida. Nesse caso é ponto pacífico dizer-se que sem ideias não há progresso. Mas as ideias nem sempre são consideradas na tessitura do progresso humano. No livro “É preciso filosofar”, do eminente jusfilósofo piauiense, Des. Manfredi Cerqueira, há uma citação surpreendente de Ernest Trattner sobre a importância das ideias: “Carlyle escutava certa vez uma dessas conversações habituais sobre a inutilidade das ideias. Aproveitando-se de uma pausa, observou: ‘Senhores, havia uma vez um homem chamado Rousseau: escreveu ele um livro que não continha mais que ideias. Riram dele, mas as peles dos seus escarnecedores serviram para encadernar a segunda edição do livro’.”
O medo de ideias fez com que crucificassem Jesus Cristo, mesmo ele dizendo que o seu reino não era deste mundo. Quatrocentos anos antes da morte de Cristo, o Tribunal de Heliastas, em Atenas, reunindo 500 cidadãos sorteados, enfrentava o julgamento de Sócrates, um homem simples, pobre, humilde e pacífico que, segundo diziam, com suas ideias, ameaçava o mundo helênico. Conseguiram matá-lo envenenado, mas não impediram que suas ideias chegassem a Platão e, de Platão, chegassem a Aristóteles, para urdirem a história monumental das ideias no Ocidente e até mesmo no Oriente, com Averróis e Avicena.
Quando perguntaram a Pitágoras se deviam chamá-lo de sábio, ele, modestamente, declinou da honraria, por considerar-se apenas um amigo da sabedoria. Os filósofos são, pois, devotos amigos da sabedoria, da inteligência, da cultura e do progresso. É nossa obrigação perquirir sempre quanto ao passado, ao presente e ao futuro da humanidade. Como trabalhamos com ideias e não se pode entender o progresso sem o reflexo do pensamento, cá estamos nós, no limiar de um novo milênio, questionando as dimensões humanas do progresso.
Neste momento desafiador da história da humanidade, o gigantismo das conquistas e o avanço do progresso da ciência e da tecnologia parecem invalidar a importância das reflexões filosóficas. Ocorre, no entanto, que os limites do conhecimento humano são estudados na Epistemologia, que é uma das vertentes da Filosofia.
Recentemente, os meios de comunicação de massa noticiaram o mapeamento do genoma humano ou o devassamento do código genético. Pode-se dizer que foi o ponto mais alto alcançado pela ciência até nossos dias, como se não bastassem os avanços da Informática e da Engenharia Aeroespacial. Foi um trunfo da ciência e da técnica a serviço do homem. Mesmo assim, nas mesmas proporções surgiram os impasses políticos gerados pelas suas expectativas e afiançados pelo patrulhamento bioético. A sociedade não admite progresso que rivalize com as preconizações estabilizadoras dos costumes e do seu patrimônio espiritual.
A bioética, ou a ética da vida humana, animal e vegetal, no seu ambiente necessário, é uma prova de que os valores impositivos dos costumes continuarão vigentes, além dos vinte e cinco séculos que já nos antecederam desde os primórdios de sua afirmação no mundo helênico.
Como não existe organização ou comunicação sem valores e regras morais para ditarem as relações interpessoais do bando ou do grupo, qualquer novidade introduzida no seio da sociedade passará, intransigentemente, pelo crivo de seu assentimento. Neste caso, no mesmo instante em que a ciência deu um passo no progresso biológico, a sociedade deu um passo equivalente nos seus cuidados morais.
Mas que mundo moral é esse tão poderoso? Herdamos, por meio do latim, a palavra moral, que por sua vez foi transliterada do grego ethos, que formará a palavra ética. Ética é, em grego, sem nos ocuparmos de suas sutilezas, o mesmo que moral em latim. No entanto, Ética é consignada nos tratados de Filosofia como a ciência que estuda os juízos de apreciação no que diz respeito à conduta do homem em certo meio e em certo tempo, do ponto de vista do bem e do mal. Podemos dizer que é moralmente bom tudo aquilo que possa ser genericamente bom para todos. Os valores morais são criados pela sociedade de maneira que todas as ações de seus membros aconteçam sem a violação de suas normas, a fim de que se consolide a confiança recíproca quanto ao respeito e à conservação dos bens morais de cada um.
Vimos, assim, que não pode haver progresso sem parâmetros éticos. Esses parâmetros, norteados pela nossa consciência crítica e elevada educação política, não podem ser eliminados em função do bem da ciência, porque o bem da ciência é um bem do homem e o bem do homem é de natureza moral, abstrata e intangível. Mas alguém dirá que a moral tende a ser conservadora e estática, dificultando, ou mesmo impedindo, o progresso da ciência e da técnica. Tem razão. É por isso que se exige dos próprios agentes dessas transformações, o Estado, os cientistas e os técnicos, o rigor dessa consciência moral em relação ao seu meio e ao seu tempo. Todas as concessões dadas aos cientistas e aos técnicos devem resultar de uma convenção bioética, que é a ética aplicada no campo do desenvolvimento biológico. Assim, nem a ciência e nem a técnica serão preteridas nos seus objetivos, nem os guardiões dos parâmetros axiológicos da sociedade admitirão que sejam violentadas as normas da ética e da moralidade.
Já se disse muito que o homem é aquilo que ele come. Isso, além de vazio é tautológico, é, sobretudo, falso. O homem é aquilo que ele pensa que é. Assim se explica o grande interesse das classes e grupos dominantes hábeis em gerar a dependência dogmática ou ideológica das massas, induzindo-as a receber o pensamento, que se nutrem de sua indigência mental.
Quer se dizer com isso que, para o atraso e para o progresso, as ideias continuam sendo os agentes da condução do mundo.
As ideias mais avançadas do pensamento atual afirmam que há um ponto comum a todos, para onde fatalmente os questionamentos da humanidade convergem. Esse vertedouro universal é a Justiça.
Entre nós, já se convencionou que toda e qualquer solução ideal de progresso e melhoria da condição humana depende do grau de afirmação, efetividade e celeridade dos encargos da Justiça. Uma Justiça cidadã, obviamente.
Essa Justiça cidadã, ora anelada por todos, não é mera expressão associada à nossa Constituição cidadã.
Dez anos depois do aparecimento da Constituição brasileira, o professor universitário indiano, expressão intelectual da ONU e do Banco Mundial, Amartya Kum Sen (1998), recebeu o Prêmio Nobel de Economia, notadamente, por provar que a ideia de desenvolvimento, hoje a mais avançada que existe, está indissoluvelmente ligada ao exercício pleno da cidadania, com efetiva garantia da sociedade e do Estado.
As ideias de Amartya Sen atingiram com raios fulminantes o velho e surrado modo de pensar da elite operadora do desenvolvimento tradicional, que ainda se apoia em regras ortodoxas da economia. Essa invasão discursiva de Sen desencadeou e inverteu conceitos robustos de desenvolvimento, de justiça e de direitos humanos.
Amartya Sen, um dos criadores do Índice de Desenvolvimento Humano — IDH, mostrou que o desenvolvimento não gera as benesses da liberdade e do bem-estar do homem, mas a liberdade de escolha e o bem-estar das pessoas é que geram o desenvolvimento justo e sustentável. Expressões econômicas ortodoxas, como “capital humano”, “recursos humanos” e “funcionários com prazo de validade” são vilanias ignominiosas e espoliativas, que mais coisificam e banalizam o homem do que lhe emprestam dignidade.
Sen critica a linguagem e a argumentação, chamadas por ele de restritivas do desenvolvimento, quando as referências são aos direitos humanos. Olinto Pegoraro, em sua “Ética dos maiores mestres através da história”, Editora Vozes, 2008, diz que “o argumento é simples, direto e silogístico. Se uma pessoa tem direitos, então deve existir outra pessoa com o dever de realizar esta existência. Ora, uma tal pessoa não existe. Então, os direitos não passam de bons sentimentos que as leis obrigam a respeitar”.
Amartya Sen assevera que os direitos humanos não são concessões benevolentes do Estado, porque são intrínsecas a cada ser humano, cabendo apenas à sociedade instrumentalizar a sua livre realização.
As ideias de Amartya Sen preconizam, com regramento ético universal, o progresso como expressão da liberdade. Mas essa liberdade deve estar sempre emoldurada com rigorosa vigilância axiológica que tenha a produção de riquezas, os avanços científicos e a moralização da máquina estatal como inafastáveis mecanismos para se chegar aos mais legítimos fins estatais, ou seja, ao desenvolvimento harmônico e completo de cada pessoa e, por ter extensão, da sociedade em que ela vive.
E compete, pois, à Justiça manter as regras do jogo, sempre inspirada em elevado nível de consciência crítica e educação política, mostrando que direito e dever são partes ontologicamente inseparáveis, como os dois lados de uma só moeda. Essas regras devem se nortear pelo mais saudável e legítimo apelo ético na Política, na Economia, no comércio, na indústria, na ciência, na tecnologia, no serviço público, na atividade jurisdicional e no Direito, estrela-guia da Justiça, porque só o verdadeiro e insubstituível comportamento
moral poderá salvar a condição humana em sua galopante crise de identidade.