Edição

Progressos e desafios na área da saúde no estado do Rio de Janeiro

30 de novembro de 2008

Pedro Dimasi Procurador do Estado do RJ

Ricardo Levy Sadicoff Procurador do Estado do RJ

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O Governador do Estado do Rio de Janeiro, em diversas ocasiões, já se manifestou no sentido de que a Saúde é uma das áreas prioritárias em sua gestão. Obviamente, essa visão é extremamente benéfica à sociedade; todavia, traz como conseqüência inafastável uma maior responsabilidade de todos aqueles que trabalham na Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil (Sesdec), possibilitando o acesso da população fluminense ao Sistema Único de Saúde. Honrados com o convite da Dra. Lúcia Lea Tavares Guimarães, Exma. Procuradora-Geral, para assumir a Consultoria Jurídica da Sesdec, o presente ensaio busca listar resumidamente os avanços e desafios de início vislumbrados nesta área.

Medidas relativas às aquisições de bens e serviços
Falhas foram verificadas nos processos internos de aquisição de bens e serviços. O grande volume de insumos utilizados nos hospitais, comprados diretamente pelas unidades, muitas vezes sem prévio procedimento licitatório, gerava uma discrepância injustificada, pois o mesmo produto era vendido para os diversos hospitais da rede estadual por preços diversos. Além disso, não havia a economia obtida nas compras de grandes quantidades.
Uma das primeiras medidas adotadas para debelar esse quadro envolveu todas as áreas da Secretaria: centralizar todas as compras e realizar grandes processos licitatórios, com vista a realizar o princípio da economicidade. A vantajosidade da medida, no que tange aos medicamentos que compõem o Programa de Dispensação Excepcional (que são aqueles fornecidos regularmente), reflete-se nos seguintes dados: em 2006 o custo mensal por paciente era de R$ 32,24; em 2007 esse valor foi reduzido para R$ 15,48; e em 2008 está em R$ 12,11, indicando uma redução em dois anos de 65%.
Observou-se, ainda, que havia um elevado gasto de recursos públicos em análise laboratorial com um serviço insatisfatório. Dessa forma, foi realizada a terceirização do serviço de laboratório, com base na Tabela do SUS. Ou seja, o Estado paga pelos procedimentos exatamente o mesmo valor estabelecido pelo Ministério da Saúde para repassar aos entes e pagar os prestadores de serviços conveniados.
Além de uma melhora na eficiência do serviço – uma vez que o resultado de um hemograma atualmente é conhecido em poucas horas, quando poderia demorar dias à época em que o serviço era próprio – a economia foi assombrosa. Em 2006, antes da terceirização, o Estado gastou 135 milhões de reais em serviços de laboratórios de Patologia. Já em 2008, após a terceirização e com o aumento do número de exames, uma vez que houve a abertura das UPAs 24 horas e de novos leitos nos hospitais, o valor gasto é de aproximadamente 20 milhões.
Um terceiro processo de suma importância foi a realização de processos regulares para o abastecimento dos medicamentos excepcionais. Como o estoque do Estado não estava regularmente abastecido, havia um enorme contingente de pacientes que não possuía acesso contínuo aos medicamentos excepcionais, o que ofendia o direito constitucional à saúde e aumentava o número de ações judiciais.
Para sanar o problema, instaurou-se uma série de procedimentos licitatórios de aquisição e realização de registros de preços, além de adesões – o chamado carona –  a registros de preços de outros entes federativos. Em relação aos mandados judiciais, em particular, em detrimento das dispensas emergenciais, corriqueiras outrora, optou-se pela realização de licitações dos diversos medicamentos que usualmente são pleiteados judicialmente.
Conforme se verifica nos gráficos abaixo, houve um considerável aumento do número de atendimentos:

Verifica-se, portanto, a busca pela eficiência dos serviços e pela diminuição dos gastos públicos. A participação da Subsecretaria Jurídica foi de grande relevância na consultoria e análise da legalidade dessas medidas.

Apontamentos sobre a Fundação Estatal: novo modelo de gestão
O Ministério do Planejamento da União elaborou projeto de criação de Fundação Pública, com natureza de Direito Privado, para diversas áreas, dentre as quais a Saúde.
O mencionado projeto se baseia em entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, inclusive do Supremo Tribunal Federal (RE 101.126/RJ, RE 219.900-1/RS e MS 24.427-5/DF), de que o Poder Público pode instituir fundações públicas com natureza de Direito Privado ou com natureza de Direito Público.
A Secretaria, após amplo debate, entendeu que a Fundação Estatal se apresentou como o modelo institucional mais adequado para profissionalizar a gestão dos hospitais públicos, aperfeiçoar o atendimento aos usuários do SUS e melhorar as condições de trabalho dos profissionais de saúde.
Com o intuito de implantar esse novo modelo e em observância ao art. 37, XIX, da Constituição da República, foi criada, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, a Lei Complementar n° 118/2007, que definiu a área da Saúde como área de atuação passível de exercício por Fundação Pública de Direito Privado. Posteriormente, foi instituída a Lei Estadual nº 5.164/2007, que autorizou a criação de três fundações: do hospital de urgência, dos hospitais gerais e dos institutos.
Merecem ser citadas as principais diretrizes que regerão as fundações estatais:
•    possuem autonomia gerencial, orçamentária e financeira;
•    integram a rede do Sistema Único de Saúde, devendo organizar seus serviços com base na universalização do atendimento, na eqüidade dos serviços e na integralidade da assistência;
•    é vedada a cobrança de qualquer forma de remuneração dos usuários;
•    submete-se ao controle interno da Administração Pública, e de órgãos externos, bem como ao controle social;
•    as compras de bens e aquisições de serviços se submetem a prévio procedimento licitatório;
•    o ingresso no quadro de pessoal dependerá de prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos;
•    os empregados da Fundação ocupam empregos públicos e, portanto, se submetem ao regime de trabalho CLT;
•    os atuais servidores estatutários são fundamentais para o sucesso desse modelo e, cedidos à Fundação, farão parte de sua estrutura e funcionamento;
•    há previsão de prêmio pecuniário pelo bom desempenho das atividades;
•    celebra contrato de metas com o Poder Público, e;
•    o repasse de recursos pelo Poder Público à Fundação fica vinculado ao alcance de metas quantitativas e qualitativas estabelecidas individualmente para cada unidade.
O projeto da Fundação Estatal surge com o intuito de trazer um modelo mais eficiente de gestão, com transparência e cobrança de resultados, objetivando um atendimento mais digno aos usuários do Sistema Único de Saúde e a valorização profissional.

Política pública de fornecimento de medicamentos e judicialização
Está aí um problema que aflige, em maior ou menor grau, as Secretarias de Saúde de todos os estados. A Constituição Federal de 1988 proporcionou a universalização dos serviços públicos de saúde, consagrou que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, instituiu o “acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção e recuperação” e estabeleceu ser o serviço de saúde competência comum de todos os entes da Administração. Porém, para o correto sentido desse comando, veja-se a lição do ilustre procurador do Estado Luis Roberto Barroso:

“Como todas as esferas de governo são competentes, impõe-se que haja cooperação entre elas, tendo em vista o ‘equilíbrio do desenvolvimento e do bem- estar em âmbito nacional’ (CF/88, art. 23, parágrafo único). A atribuição de competência comum não significa, porém, que o propósito da Constituição seja a superposição entre a atuação dos entes federados, como se todos detivessem competência irrestrita em relação a todas as questões. Isso, inevitavelmente, acarretaria a ineficiência na prestação dos serviços de saúde, com a mobilização de recursos federais, estaduais e municipais para realizar as mesmas tarefas. Como todas as esferas de governo são competentes, impõe-se que haja cooperação entre elas, tendo em vista o ‘equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional’.” (CF/88, art. 23, parágrafo único).

Segundo a Portaria nº 3.916/98 do Ministério da Saúde, cabe à União formular a Política Nacional de Assistência Farmacêutica, auxiliar os gestores estaduais e municipais e elaborar a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename). Os estados são responsáveis, sobretudo, pela aquisição, com a colaboração da União Federal, e pela distribuição de medicamentos excepcionais, além de repassar recursos e medicamentos aos municípios. Já os municípios ficam responsáveis por definir a relação municipal de medicamentos essenciais, com base na Remane, e executar a assistência farmacêutica. Todavia, há inúmeros medicamentos que não se encontram padronizados na lista elaborada pelo Ministério da Saúde. Estão na denominada zona cinzenta, pois nem estados nem municípios são por eles responsáveis.
Daí verifica-se a relevância e compreende-se a conclusão de Barroso, em seu trabalho já citado, quando assevera que para os medicamentos não previstos em nenhuma lista (isto é, não fornecidos pelo sistema público), a única ação cabível será a coletiva, inadmissível a individual. Aduz, também, que um ente não pode ser compelido a fornecer medicamento já previsto na lista de outro, sendo mister sua exclusão do feito. Este entendimento vem sendo adotado no TJ/RJ, como ocorreu em recente sentença da ilustre magistrada Alessandra Tufvesson, ao excluir o Estado de demanda na qual não se pleiteava medicamento excepcional, com base no estudo de Luis Roberto Barroso. Ademais, se a ação pugna pelo fornecimento de medicamento ou insumo não incluído nas listas oficiais – elaboradas pelo Ministério da Saúde – como estados e municípios podem ser responsabilizados por isso? A União deve fazer parte deste processo, pois a mora, nesse caso, e se houver (pois depende de critérios técnicos alheios ao mundo jurídico), é somente dela.
O TJ/MG já decidiu estar “ausente a verossimilhança do direito do autor ao recebimento de tratamento de saúde não fornecido pelo sistema público…” por não ser possível ao magistrado determinar que o ente estatal suporte os custos de medicamentos que não foram previamente selecionados mediante critérios
técnicos (Processo 1.0024.07.486861-3/0001(1), rel. Des.
Dídimo Inocêncio de Paula, publicação:11/10/2007).
Para auxiliar o Judiciário, em especial o TJ/RJ no enfrentamento dessa penosa questão, a Administração tem de colaborar. Como primeiro passo, já exposto, a Sesdec buscou regularizar as aquisições dos itens de obrigação do próprio Estado. Após, em conjunto com o Município, criou-se um único órgão para recebimento de mandados judiciais e de ofícios da Defensoria Pública; os técnicos dos dois entes fazem imediatamente a divisão do que é obrigação do Estado e do que é do Município, evitando a duplicidade de entrega do medicamento e que um ente cumpra obrigação que pela ótica do SUS é atribuída a outro.
Tais medidas redundam também no resgate da credibi­lidade da Secretaria junto ao Poder Judiciário, Defensoria Pública e Ministério Público. Acordos foram feitos. O primeiro, realizado com a Defensoria Pública do Estado, estabeleceu que quando se tratar de medicamento que integra a lista oficial, ela se compromete a oficiar o ente competente para que o medicamento seja fornecido administrativamente em certo prazo, o que gerou redução no volume de ações, com benefícios para os entes, para o Judiciário e para o paciente, atendido mais rapidamente.
Atualmente, encontra-se em implantação projeto piloto com o Egrégio Tribunal de Justiça, pelo qual a Secretaria irá fornecer profissionais da área de saúde (médicos, farmacêuticos, enfermeiros e nutricionistas) para que os juízes tenham maiores subsídios técnicos para proferir suas decisões liminares ou sentenças nas demandas de fornecimento de medicamentos e insumos. Sistema semelhante já foi implementado pelo município de Ribeirão Preto em São Paulo. Após sua criação verificou-se que cerca de 30% (trinta por cento) das demandas não prosseguem por não apresentarem evidências científicas da droga ou pela composição do medicamento ainda não ser registrada no Brasil.
Obviamente, todos esses fatos narrados são apenas pequenos atos para se resgatar um serviço de saúde pública digno à população fluminense. Apesar da caminhada longa e cheia de obstáculos, os primeiros passos foram dados.