Projeto contribui para a formação cidadã de Índios – Entrevista com Daniel Issler

31 de julho de 2011

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Entrevista: Daniel Issler – Juiz auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça.
Comunidades indígenas de todo o Brasil estão sendo beneficiadas com o Programa Cidadania, Direito de Todos, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A iniciativa foi criada em meados do ano passado, para possibilitar o registro dos índios, com a concessão de certidões de nascimento, CPFs e carteiras de identidade e de trabalho. O juiz auxiliar da presidência do Conselho e coordenador da iniciativa, Daniel Issler, explicou que o projeto já passou por aldeias de Mato Grosso do Sul que têm contato com a sociedade tradicional. Na ocasião, mais de mil pessoas foram atendidas. Agora, o programa chega à Amazônia. A expectativa é de que oito mil documentos sejam expedidos.

De acordo com o magistrado, o registro civil é um passo fundamental para incluir os índios no universo dos direitos concedidos pelo Estado, entre eles educação ou programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. O programa é desenvolvido em parceria com diversas entidades, entre elas a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e a Fundação Nacional do Índio (Funai) – os maiores parceiros em nível nacional.

“O projeto busca, dessa forma, fazer com que os índios tenham registro de nascimento, RG, CPF e Carteira de Trabalho. Isso tudo sem afetar a identidade cultural deles. Os documentos são expedidos de forma que os índios não precisam ter receio de perder sua condição. Nos documentos, há menção da aldeia de origem, que é a naturalidade deles, assim como a etnia à qual eles pertencem. Essa menção é feita em campo separado e de acordo com as normas das corregedorias de cada estado”, explicou Issler.

Na avaliação do magistrado, a presença do Estado nessas comunidades, com esse tipo de ação, é muito importante. “O índio precisa ter cidadania, acesso à educação e todos os seus direitos garantidos. Somente assim, a população indígena vai ter mais prosperidade, diminuiremos gradativamente a miséria e a carência nas aldeias e permitiremos que eles tenham uma interface mais saudável com a sociedade tradicional, sem tantos conflitos, como por terras”, afirmou.

Confira abaixo íntegra da entrevista:
Justiça & Cidadania – Qual é o objetivo do Projeto Cidadania, Direito de Todos?
Daniel Issler – O objetivo do projeto é garantir cidadania aos povos indígenas com a expedição de documentos básicos. Sabemos que há índios vivendo em áreas urbanas e que precisam de documentos. Muitos não os têm, às vezes, porque a aldeia não fica tão próxima à cidade. No entanto, ele [o índio] já tem contato com a sociedade tradicional e precisa trabalhar e estudar; enfim, praticar para vários atos da vida civil. Normalmente, ele só tem o registro administrativo de nascimento, que muitas vezes não é aceito. Ele, então, acaba prejudicado. O projeto busca, dessa forma, fazer com que os índios tenham registro de nascimento, RG, CPF e Carteira de Trabalho. Isso tudo sem afetar a identidade cultural deles. Os documentos são expedidos de forma que os índios não precisem ter receio de perder sua condição. Nos documentos, há menção da aldeia de origem, que é a naturalidade deles, assim como a etnia à qual eles pertencem. Essa menção é feita em campo separado e de acordo com as normas das corregedorias de cada estado. Muitos têm medo de que alguém diga que eles não são mais índios por causa do documento. O projeto, portanto, tem essa preocupação, pois visa a garantir aos índios todas as condições para que não percam sua condição e todos os direitos que lhes são atinentes.

JC – Quando e por que o projeto foi criado?
DI – O programa foi criado em meados do ano passado. Iniciamos esse trabalho em Campo Grande, no estado do Mato Grosso do Sul. Lá, estivemos nas aldeias urbanas de Marçal de Souza, Darcy Ribeiro, Água Bonita, Tarsila do Amaral e Índio Brasil. Ali, foram expedidos 114 certidões de nascimento, 216 RGs, 217 CPFs e 78 Carteiras de Trabalho. Esses documentos foram entregues no final do ano passado. Prosseguindo com a ação no Mato Grosso do Sul; estivemos, nos dias 3 e 4 de junho passados, em Ponta Porã, em aldeias de origem Guarani. Lá, 279 pessoas foram atendidas; muitos não falam sequer português.

JC – Quais são os critérios para a concessão dos documentos?
DI – No caso de Ponta Porã, muitos índios não falam português, mas frequentam a escola, que leciona na língua guarani e também em português. As crianças já falam português; alguns mais velhos, não. Mas mesmo assim, eles têm contato com a cidade e é por isso que essas aldeias foram beneficiadas. Nos próximo dias 18 e 19 de junho, faremos uma outra grande ação em Dourados. A expectativa é de que expeçamos cerca de oito mil documentos. Também já estamos iniciando a mesma ação em Manaus. Realizamos uma reunião preliminar, e o pré-cadastramento de índios naquela região já está sendo realizado. A estimativa é de que cerca 25 mil índios sejam beneficiados em Manaus.

JC – Quais são as vantagens proporcionadas aos índios?
DI – Eles passam a ter acesso ao mercado de trabalho, a estudo, a contratos em geral e a financiamentos bancários, entre tantas outras. Esse trabalho é realizado em parceria com a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, os Tribunais de Justiça dos estados, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Nacional dos Notários e Registradores, o Ministério do Trabalho, o Instituto Nacional de Seguridade Social e diversos outros órgãos.

JC – Como esse trabalho de campo é feito?
DI – Inicialmente, levamos a ideia à localidade, em conjunto com a Funai e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que são os maiores parceiros em nível nacional. Consideramos que há uma demanda suficiente que justifica a nossa ação. Então, escolhemos o local e fazemos uma primeira reunião com as entidades que são ligadas a esse tema, explicando os objetivos do projeto e as formas de atuação. A gente, então, busca fazer parcerias em nível local. Depois disso, fazemos o trabalho de pré-cadastramento dos índios. Precisamos saber onde eles estão e de quais documentos precisam. Com essas informações, organizamos a ação. A gente, normalmente, utiliza o espaço de uma escola, pois precisamos de computadores e de acesso à internet. Chamamos todos os parceiros. Também procuramos organizar uma logística para buscar os índios; providenciamos ônibus, por exemplo, até o local. Também tem que ter alimentação. A ação, normalmente, dura de um a dois dias. Os índios geralmente saem com os documentos no mesmo dia, com exceção do RG, cuja entrega marcamos para outro dia.

JC – Temos visto uma série de denúncias envolvendo violência e tráfico nas aldeias. Na sua avaliação, a maior presença do Estado nessas comunidades pode, de fato, diminuir esses riscos?
DI – Sem dúvida. No entanto, essa presença tem que ser positiva e desejada pelos índios. Infelizmente, ainda existe muito preconceito com relação a eles. Preconceito que leva o índio, muitas vezes, a não ser aceito por determinados setores da sociedade. O índio precisa ter cidadania, acesso à educação e todos os seus direitos garantidos. Somente assim, a população indígena vai ter mais prosperidade, diminuiremos gradativamente a miséria e a carência nas aldeias e permitiremos que eles tenham uma interface mais saudável com a sociedade tradicional, sem tantos conflitos, como por terras. É necessário, também, que os não índios sejam preparados para a convivência com os índios, para que aceitem as diferenças culturais e, assim, tenham uma relação mais saudável. Tudo isso é gradativo. Os índios podem ter sua língua, cultura e tradições valorizadas. A Constituição Federal determina isso.

JC – Como o senhor se sente ao realizar esse tipo de trabalho?
DI – É gratificante. O trabalho do Poder Judiciário é importantíssimo. Em uma ação como essa, os documentos são expedidos e existem questões de registro. Então, o CNJ tem uma parceria importante com o Tribunal de Justiça local, para fazer com que no momento da expedição do documento o juiz dos registros públicos esteja presente, assim como o Ministério Público, justamente para resolver questões incidentes que possam surgir e, assim, garantir que os documentos saiam o mais rápido possível. É um trabalho integrado.