Prorrogar é preciso

5 de junho de 2004

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Estas breves reflexões nascem de muitas vivências de episódios judiciais que envolvem o Ministério Público e as prorrogações de concessões ou permissões de ônibus no País.  Há duas grandes portas para entrar no serviço público, o concurso e a licitação. O concurso é a porta de ingresso, por exemplo,  para os servidores em geral, inclusive juízes e membros do Ministério Público [CF, art. 37, II], e a da licitação, é o portal do ingresso nos serviços públicos assim legalmente definidos [CF, art. 175].

Depois de ingressar, a regra é a da continuidade, vale dizer, a continuidade faz parte da essência da atividade.

As pessoas físicas, por exemplo, depois do ingresso, se tornam em geral estáveis; juízes e promotores se tornam até mesmo vitalícios, forma que a Constituição encontrou para lhes preservar a independência.

Nenhuma pessoa contestou a vitaliciedade sob argumento de que ela impede o acesso de outros bacharéis aos cargos mencionados, violando, assim, a regra constitucional da liberdade de acesso aos cargos públicos.

Ninguém igualmente defendeu que esses cargos vitalícios deveriam ser temporários e objeto de concursos periódicos.

Não há, ainda,  quem se tenha atrevido a afirmar que essa perpetuidade fere alguma regra de moralidade pública.

Já as pessoas jurídicas delegadas de serviços públicos, aquelas que são centros geradores de empregos e de desenvolvimento econômico, têm tratamento diferente. Estão subordinadas à cláusula “enquanto bem servir”.

Quanto a elas, há uma grande divisão: concessões de ônibus, de um lado,  e todas as demais concessões, de outro. Os ônibus são os primos pobres; os demais, os ricos. Num certo sentido, os primeiros são os perseguidos; todos os demais são os protegidos.

O Ministério Público, no Rio de Janeiro e em outros Estados,  acusa o setor de transportes coletivos por ônibus, embora essenciais [CF, art. 30, V], de tentativa de perpetuar-se no serviço público e, por isso, ferreteia com o selo da imoralidade o fato de seus contratos sofrerem sucessivas prorrogações.

No Rio de Janeiro, há mais de cem ações civis públicas que buscam anular prorrogações de concessões ou permissões de transporte coletivo do Estado, afetando uma comunidade de mais de trinta mil empregos diretos e ameaçando a estabilidade desse setor da economia dos transportes essencial para a vida da cidade e do Estado, responsável pelos deslocamentos de seis  milhões de pessoas por dia.

O mesmo tratamento, porém, não é dado aos demais setores do serviço público delegado.

Por exemplo:

A VARIG está completando 77 anos de sucessivas prorrogações de sua concessão. . Pelo menos nos últimos trinta anos, recebeu, por decreto, diversas ampliações de sua concessão. Pelo Decreto 72.898, de 9/10/73, teve sua concessão – que já vinha de 1.927 – prorrogada por 15 anos, até 15/10/88. O Decreto 95.910, de 11/04/88, agregou nova prorrogação de mais 15 anos até 10/10/2003. Um dia antes do vencimento da concessão, o Decreto 4.856, de 9/10/03, prorrogou a concessão até 31 de dezembro de 2010. Finalmente, em face das dificuldades das empresas de transporte aéreo em obter atestados de regularidade fiscal, o Decreto 5.034, de 5 de abril de 2004, ampliou-lhe o prazo para firmar o novo aditivo de prorrogação até 10de outubro de 2004.

Nesse ínterim, por lei e não por decreto, os transportes coletivos por ônibus do Rio de Janeiro, urbanos e intermunicipais, obtiveram igualmente prorrogações de suas concessões ou permissões.

Sobre as prorrogações, por decreto,  da VAR1G, o MP nada falou. Conduta correta.

Enquanto isso, prorrogações, mediante lei, do transporte de ônibus do Rio de Janeiro, são condenadas como imorais, sob estapafúrdios fundamentos de que prorrogar viola o princípio da licitação.Conduta no mínimo contraditória com a anterior.

Mas não é só no transporte aéreo que as prorrogações acontecem e as contradições se acentuam. O MP se omite quanto a todas,  enquanto ataca, com extremo vigor, as concessões… de ônibus.

A Medida Provisória 144, de 10 de dezembro de 2003, deu nova redação a disposições do art. 4o da  Lei 9.074 para autorizar uma prorrogação de 35 anos para as concessões de energia elétrica.

Não se ouviu nenhuma voz discordante de parte do Ministério Público. Conduta incensurável.

Querem outro exemplo recente?

A ANATEL acaba de prorrogar, por vinte anos,  os contratos das seis concessionárias de telefonia fixa – Embratel, Telefônica, Brasil Telecom, Telemar, Sercomtel e CTBC Telecom. Por antecipação, já que os contratos terminariam em 30 de dezembro de 2005.

Não se pense que se tratou de uma decisão da ANATEL tomada nos desvãos dos corredores da autarquia. Na calada das noites governamentais.

A decisão de prorrogar foi adotada depois de consulta pública, de 27 de dezembro de 2002 até 17 de março de 2003, e seis audiências públicas realizadas em diferentes capitais brasileiras.

Sabem os leitores, entre outros, quem participou desses atos  preparatórios de prorrogação?

O Ministério Público

E fê-lo muito bem. Aprovando as prorrogações.

Todos os dias, o Presidente da República firma um ato de “renovação” de concessões de radiodifusão, cumprindo um rito que termina no Congresso Nacional onde, por votação nominal, dois quintos dos congressistas podem recusá-la [CF, art. 223].

Em época alguma essas prorrogações foram questionadas como violadoras do princípio da licitação.

Por que, então, o fato é questionado  somente quanto ás concessões ou permissões de ônibus?

Trata-se, tudo isso, de um lamentável equívoco jurídico que envolve uma das mais respeitáveis instituições do novo país surgido em 5 de outubro de 1988.

Se as prorrogações são imorais, todo o serviço público está manchado com a mesma imoralidade, inclusive as funções vitalícias, estas por violadoras do princípio do concurso público, e todas as prorrogações autorizadas por todas as leis de concessões sobre as quais se construiu grande parte da reforma do Estado não passam de uma extraordinária operação imoral que envolveria todos os setores do Governo e da atividade privada.

Entre elas, as mais expressivas, como energia elétrica, telefonia, mineração, petróleo, portos, estações aduaneiras e, por que não, também ônibus, talvez os primos pobres dessa nobre estirpe de grandes empresas do serviço público.

A moral da história parece ser a seguinte: prorrogar somente é imoral quando se trata de ônibus, mesmo que por lei, como no caso submetido à Justiça do Rio de Janeiro. Mas, prorrogar concessões, por decreto ou simples atos administrativos,  do resto do serviço delegado, é moral porque a regra da licitação é de chumbo, como a régua dos arquitetos de Lesbos. Adapta-se às situações.

Na verdade, a contradição é a de quem persegue alguns e se omite quanto aos demais.

A prorrogação, contudo,  é legítima para todo o serviço público: para a VARIG, para a ENERGIA ELÉTRICA, para a TELEFONIA, para a RADIODIFUSÃO e, por que não? para os modestos ÔNIBUS que são responsáveis por noventa por cento dos deslocamentos terrestres no País e de sessenta milhões de pessoas, por dia, nas cidades brasileiras.

Assim como a vitaliciedade não viola o princípio da liberdade de acesso aos cargos vitalícios, a prorrogação dos serviços públicos de transporte coletivo, enquanto eles bem servirem, não agride o princípio da licitação.

Serviço público, para ser eficiente, deve ser contínuo e atendido por empresas permanentes, não sacudidas por competições periódicas e ameaças de despedida do serviço público.

O Ministério Público, portanto, está certo quando se omite em relação às prorrogações da energia elétrica, da telefonia, da radiodifusão etc. e errado quando age contra as concessões de transporte coletivo… por ônibus. A situação é exatamente a mesma. Ou está tudo errado; ou está tudo certo. Na verdade, prorrogar é preciso. E legal.