Punctum Pruriens

6 de setembro de 2023

Francisco de Assis e Silva Advogado

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O Direito do dia – onde estamos, de onde viemos, para onde vamos

As palavras não são as coisas, disse Karl Popper, em frase disputada por outros autores. O teletransporte do dilema, para hoje, traz uma dúvida mais pantanosa. Na era da Internet, pode-se dizer que as coisas ainda são as coisas? É certo que a inclinação humana convida ao delírio — afinal, por melhor que seja a realidade, ela jamais será tão emocionante quanto
a fantasia.

Sim. O mundo passa por mudanças. É certo. Mas a sombra dessa construção está desproporcionalmente maior que a nova construção. Afinal: o mundo mudou, mas a Terra segue redonda, com as mesmas estações do ano e os mesmos pontos cardeais. O fato de já não ter uso para o CD, para o disquete e, em breve, para o pendrive, não significa que o conteúdo mude junto com a sua embalagem. O coração artificial continua sendo um coração e cumprindo sua função de bombear sangue pelo corpo. O ponto de mutação ainda não foi atingido.

O fetiche da vez é a inteligência artificial — com modelos que vão do uso de drones que decidem por conta própria em quem atirar até a produção de questionáveis teses ou trabalhos escolares. No mundo do Direito insiste-se, de forma até irritante, se a máquina já substitui ou irá substituir o advogado, o promotor ou o juiz. Seja como for, ao menos por enquanto, o destinatário da “encomenda” continua sendo humano.

O tumulto e o caos podem parecer a tempestade de areia que obnubila a visão. Mas tudo o que estava por trás da poeira continua no mesmo lugar. O que muda é a percepção, não a visão.

Na órbita jurídica e fora dela, as motivações que movem o ser humano seguem as mesmas: a liberdade, a vida, a propriedade, o poder. E é isso que determina as bases e os fundamentos do Direito. A inteligência artificial é a aceleração cibernética do conhecimento humano acumulado. Ou seja: o que mudou foi a velocidade, não o conteúdo ou os protagonistas.

E não se pode falar de velocidade sem falar em freios. Assim como quando se fala de liberdades há que se falar em limites; e quando se fala em Poder é preciso contar com freios e contrapesos.

O pintor holandês Piet Mondrian, grande nome do abstracionismo geométrico, pode ter dado, no século passado, um paradigma para o enigma destes dias. Na sua fase mais famosa, o artista montou quadrados e retângulos em cores quase sempre primárias. A desavisados, as obras podem parecer simplórias. Mas não na explicação do próprio autor.

A sua mensagem foi a de que, por mais caótica que pareça a vida, por trás do confuso cenário visível, há uma lógica cartesiana que dá sentido a tudo. Ou, em suas palavras, “uma concepção mística de harmonia cósmica que se esconderia na superfície da realidade”.

Nesse cruzamento, o universo seria anfitrião de um conflito constante entre forças opostas, do bem ou do mal, positivas ou negativas, masculinas ou femininas, dinâmicas ou estáticas.

Em sentido tangente, o físico e pensador sistêmico Fritjof Capra (autor de “O ponto de mutação”) inferiu que todas as crises vividas pelo homem são uma só. As aparentes mutações seriam, na realidade, mudanças de percepção do mesmo cenário e da estruturação do conhecimento.

Assim, toda a realidade poderia ser explicada pelo movimento e descrição das partes. No seu livro mais conhecido, Capra busca explicar os fenômenos em sínteses mecanicistas, em que exclui a complexidade multifacetada da realidade, o que levaria a um modelo incapaz de abranger todas as dimensões da vida humana.

Aplique-se agora o raciocínio ao universo jurídico. O Direito deve manter firmes laços com seus fundamentos, sem deixar-se hipnotizar pelas pretensas inteligências artificiais, que mudam a velocidade da informação — mas que não alteram um grau no movimento de rotação e translação da Terra. E muito menos os valores básicos e imutáveis da humanidade.

Como dissemos, quando se fala em velocidade é preciso principalmente pensar nos freios. Coube a quem inventou a aceleração inventar a desaceleração. Agora é preciso parametrizar a inteligência da mesma forma que o homem fez com a velocidade nos séculos passados. O coração artificial deve bombear o sangue para manter o Ser vivo. Do contrário, ultrapassaremos o ponto de mutação e ficaremos sem Paradigma algum.

Nota___________________________

1 Fritjof Capra define o ponto de mutação como aquele momento em que o processo de evolução atinge seu auge e os sistemas alteram todas as suas estruturas.