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Quando as leis não bastam – Trinta anos do Estatuto da Criança e do Adolescente

3 de agosto de 2020

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No último 13/7, o Estatuto da Criança e do Adolescentes (ECA) completou 30 anos de existência e, ao acompanharmos os textos, debates e reportagens feitos em homenagem à data, com suas cores e desenhos alegres, foi impossível não recordar de como nosso contato mais direto com o Direito Infracional, desde o início, traduziu-se sempre em um espanto: o de descobrir que a realidade da Justiça Juvenil e do sistema socioeducativo não cabe nos eufemismos alegres da lei.

Quando falamos sobre este espanto não estamos – que fique desde já bem marcado – a desvalorizar ou a rejeitar o ECA. Sua relevância histórica é imensurável: o Estatuto configura uma ruptura paradigmática tanto com o modelo tutelar, quanto com o modelo penal indiferenciado que o antecederam, introduzindo na América Latina o espírito, os princípios e os direitos da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, aprovada em 20/11/1989 pela Assembleia Geral das Nações Unidas. O ECA consolidou legalmente a doutrina da proteção integral abraçada pela Constituição Federal de 1988 e reconheceu crianças e adolescentes como sujeitos de direito merecedores de prioridade absoluta, abandonando, a nível normativo, a vil doutrina da situação irregular e servindo de fonte de inspiração para todas as outras leis latino-americanas sobre a infância e juventude. Em seus 30 anos, temos evidentemente muito a comemorar.

A despeito, contudo, de reconhecermos sua importância histórica e de reafirmarmos cotidianamente quão imprescindível é que os direitos previstos no ECA sejam efetivamente assegurados a nossas crianças e adolescentes, ainda precisamos falar sobre o espanto, a realidade, a lei e seus eufemismos.

Entre o ECA e o mundo real, o espanto começou com o acompanhamento dos processos de apuração de ato infracional, oportunidade em que, ao realizar a defesa técnica dos adolescentes representados, deparamo-nos com um reduzidíssimo standard probatório para o reconhecimento de autoria e materialidade infracional e com um contraditório de baixíssima densidade. Se os artigos 110 e 111 nos diziam que nenhum adolescente a quem se imputasse a prática de ato infracional seria privado de sua liberdade sem o devido processo legal, sendo-lhes asseguradas, dentre outras, as garantias do pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual, defesa técnica e assistência judiciária gratuita e integral, a realidade gritava que estávamos diante de uma realidade completamente diferente.

Com efeito, acompanhamos inúmeros processos em que adolescentes foram condenados ao cumprimento de medidas socioeducativas por atos infracionais cujos correlatos delitos exigem laudos periciais (por lei, doutrina e jurisprudência), sem que tais laudos tivessem sido juntado aos autos; outras vezes, sem que a perícia sequer houvesse sido realizada. Embora saibamos que tal situação é também encontrada no âmbito processual penal, o espanto se deu sobremaneira ao percebermos que não apenas o laudo não era juntado aos autos ou a perícia não realizada, como sua ausência ou presença não eram sequer mencionadas nas manifestações da acusação ou nas decisões judiciais, ainda que para se sustentar sua prescindibilidade para a comprovação da materialidade do fato em apuração.

O mesmo era perceptível quanto aos depoimentos das vítimas e testemunhas, muitas vezes contraditórios entre si ou simplesmente dispensados a partir da confissão do adolescente durante a oitiva informal ou audiência de apresentação. A confissão adquiria relevância probatória suficiente para uma condenação, ainda que não seja incomum, na justiça juvenil, que o interrogatório seja realizado sem se advertir o adolescente imputado sobre seu direito ao silêncio ou que tal silêncio não poderá ser interpretado em seu desfavor. Ao revés, parece preponderar no imaginário judicial a ideia de que o caráter pedagógico do processo de apuração de ato infracional e respectivas medidas passa necessariamente pelo reconhecimento da culpa pelo adolescente, ao qual não seria dado o direito de permanecer calado, ainda que o art. 5º, inciso LXIII da Constituição da República lhe seja plenamente aplicável, nos termos do caput.

Lado outro, sobre a inconstitucionalidade da oitiva informal pelo Ministério Público e da realização do interrogatório do adolescente como primeiro ato processual, seria impossível discorrer em tão poucos caracteres, de modo que nos limitamos a destacar o notório tratamento mais gravoso dado ao adolescente que, obrigado a apresentar sua versão dos fatos antes da efetiva produção probatória, tanto ao seu acusador (sem previsão legal de participação de sua defesa técnica), quanto ao seu julgador, vê frontalmente violados seus direitos ao contraditório e à ampla defesa.

De volta aos processos, o que víamos era que a prova material do fato e de sua autoria era secundária para seu deslinde. Não raras vezes, lemos e ouvimos que importava muito mais, na Justiça Juvenil, educar aquele adolescente, retirá-lo do mau caminho, das más amizades, do meio social pernicioso em que vivia do que propriamente produzir provas quanto ao ocorrido. Cabia ao juiz ensiná-lo o caminho do bem, ainda que as provas não fossem seguras quanto à materialidade infracional. Em alguns momentos, ouvimos que, embora houvesse incerteza quanto à efetiva participação do adolescente no ato ilícito apurado, era notório que ele estava se envolvendo com “más companhias”, cabendo ao Judiciário – este grande pai que, cada dia mais, assume o papel de superego da sociedade pós-moderna que tudo judicializa – intervir pedagogicamente, ainda que isto ensejasse o confisco da liberdade deambulatória de um sujeito de direito em peculiar condição de desenvolvimento.

Muitos afirmarão que o desapego da legislação e justiça juvenis quanto às formalidades processuais, notadamente aquelas probatórias e recursais, objetiva atender ao caráter socioeducativo, pedagógico do processo de apuração de ato infracional; que as medidas socioeducativas não têm caráter retributivo, mas sim educativo e, portanto, são desnecessários e descabidos os rigores processuais penais, sob pena de inviabilizar o alcance dos objetivos do ECA.

A tais afirmativas, perguntamos: como nós adultos queremos educar adolescentes a respeitar as leis se nós mesmos não o fazemos? Ora, se o devido processo legal – com todas as suas formas e garantias – é constitucional e legalmente assegurado aos adolescentes implicados na prática de atos infracionais, o que nós adultos estamos lhes ensinando ao descumpri-lo?

Tais perguntas ganham ainda mais peso quando falamos sobre outro espanto: a condição das unidades socioeducativas. Um nome tão bonito para locais tão terríveis. Mais um desses desencontros aparentemente nada casuais entre os eufemismos da lei e a realidade. Ambientes degradantes impostos a meninos e meninas ainda em formação de identidade e caráter. Que geração esperamos formar em espaços como esse? Superlotação, estruturas precárias, falta de materiais básicos e violência como rotina daqueles que visitam essas unidades.

A ausência de políticas públicas que tornem efetivas as medidas em meio aberto, somada a um sistema de Justiça Juvenil cada vez mais punitivista, transformou a privação de liberdade em regra, ao contrário do que anuncia o Estatuto.

A institucionalização, apesar do esforço do legislador, ainda não chegou perto do quanto idealizado por aqueles que participaram dos movimentos que desembocaram na Constituição de 1988 e, após, no ECA. Ao revés do que dispõe o texto legal, as condições da internação colocam o viés pedagógico em segundo plano, fazendo com que o trabalho de contenção seja prioridade na lógica das unidades.

Por outro lado, o subjetivismo inocente do Estatuto, que não traz balizas objetivas para execução das medidas, acaba por colocar o juiz, em sua discricionariedade, como figura central na decisão, inclusive em desprezo, por vezes, dos pareces técnicos, valendo-se de conceitos vagos como o “melhor interesse do adolescente”. Nesse ponto, resta claro o quanto ainda convivemos como uma cultura menorista, que deveria ter sido superada há 30 anos, mas se encontra enraizada em um paternalismo adultocêntrico que ainda vê no cárcere algo bom ao desenvolvimento do adolescente: distorção que mais parece ser um exercício com sua própria consciência do que efetivamente algo que acredite alguém que visite, ao menos uma vez, um centro de internação.

Em que pese os avanços, ainda persiste uma realidade tutelar que não enxerga o adolescente como sujeito de direitos e não lhe assegura sequer os mesmos direitos garantidos ao adulto acusado. A ternura ingênua do Estatuto esconde, em verdade, a marca cruel da nossa sociedade, a indiferença diante do que não é visível mas que todos sabemos que existe, mesmo quando falamos de filhos que não são os nossos, mas que poderiam ser. Nos 30 anos do ECA é preciso reconhecer, como Drummond, que “as leis não bastam. Os lírios não nascem das leis”.