Edição 294
Quando seguir um precedente não é o suficiente
3 de fevereiro de 2025
Mariana Marinho Juíza de Direito no Tribunal de Justiça do Piauí
Taís Schilling Ferraz Desembargadora Federal do TRF4 / Professora e Vice-Coordenadora Acadêmica do Mestrado da Enfam
Um dos principais receios, quando da introdução do sistema de precedentes em solo brasileiro, era de que os magistrados, especialmente os de primeiro grau, desafiassem a eficácia vinculante das decisões dos tribunais que passariam a ser consideradas vinculantes.
Embora haja evidências de que essa preocupação é fundada em alguns casos, ela não parece se confirmar nas demandas repetitivas envolvendo grandes litigantes, em especial as instituições financeiras.
Diferentemente do que se poderia supor, nos processos em que se discute a validade de cláusulas e contratos bancários, os juízes vêm observando os inúmeros precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ). No entanto, poucos deixam claro, em suas fundamentações, que, de fato, utilizaram os precedentes.
Este foi um dos principais achados de uma pesquisa de mestrado sobre a efetividade do sistema de precedentes, realizada na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM e que buscou explorar possíveis causas da manutenção da intensa e crescente litigiosidade em matéria de contratos bancários, mesmo diante da existência de mais de 30 precedentes qualificados já julgados no Superior Tribunal de Justiça.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), obtidos a partir da Base Nacional de dados do Poder Judiciário (Datajud), esse assunto, ocupa, há anos, as primeiras posições no ranking de novos casos ajuizados na Justiça Estadual.
Sem a pretensão de esgotar as possíveis causas e correlações desse contingente de demandas, que, em grande medida, vem sendo também alimentado pelo fenômeno da litigância predatória, a pesquisa, analisou grande número de sentenças produzidas na Comarca de Teresina, no Piauí, cujas varas vêm sendo alvo de intensa judicialização, partindo do pressuposto de que a visibilidade dos precedentes é um dos aspectos mais críticos para o sucesso do atual modelo, e, investigando-se, em que medida e de que forma vêm sendo aplicados nas sentenças judiciais.
Os achados revelaram que embora o padrão decisório dos precedentes seja frequentemente observado, sua aplicação não fica explícita. As sentenças não trazem, na fundamentação, a referência à utilização de um precedente específico como razão de decidir, além de não deixarem claro que o caso sob análise se ajusta à ratio decidendi do julgamento paradigma.
Evidenciou-se, na análise documental das sentenças, que, em muitas delas, são referidas e até mesmo transcritas ementas de acórdãos do STJ, porém, com função de demonstrar a existência de jurisprudência em reforço argumentativo ao convencimento dos magistrados e não como razão suficiente para a decisão, o que é característico dos precedentes. Há ainda, a preferência por utilizar o termo jurisprudência, ao invés de se referir a precedente ou mesmo tese.
Essa tendência configura desafio crucial, pois pode comprometer o impacto do novo modelo, especialmente sobre a litigiosidade.
A visibilidade dos precedentes qualificados nas decisões judiciais de instâncias inferiores é um dos aspectos cruciais para o sucesso do sistema sistematizado no CPC de 2015. Trata-se de passo fundamental para garantir que o sistema de precedentes tenha seu potencial plenamente realizado, com coerência e a devida harmonização. A tendência observada na pesquisa pode dificultar a internalização do modelo pelos operadores do direito, comprometendo a segurança jurídica.
Quando um(a) juiz(a) ou tribunal menciona, de forma clara, que está seguindo um julgado, nos termos do artigo 927 do CPC, originado do regime de recursos repetitivos, repercussão geral, incidente de resolução de demandas repetitivas ou incidente de assunção de competência, isso não só esclarece o fundamento da decisão, como também propaga o precedente, tornando-o mais acessível e compreensível por todos os envolvidos, contribuindo para a coerência e a integridade do direito.
Ao ser claramente invocado, o precedente atua como ponto de referência para questões iguais e correlatas, orientando a solução de casos semelhantes subsequentes, cujas decisões dependam da interpretação de questões, conceitos e princípios que tenham sido construídos ou aplicados na formação da ratio decidendi do julgado paradigma.
Uma consequência que pode ser significativa, ao se conferir maior visibilidade à aplicação dos precedentes, é a redução de recursos desnecessários e da judicialização de conflitos sobre temas já solucionados em definitivo pelos tribunais. Quando um precedente qualificado é devidamente mencionado nas decisões, todos aqueles que a elas tiverem acesso, como partes, interessados, ou através de ferramentas de consulta, terão maior clareza sobre os fundamentos da decisão e sobre a circunstância de que a temática já está equacionada, o que pode reduzir o número de apelações e outros recursos destinados a reverter decisões que já estão em consonância com a jurisprudência consolidada.
A falta de visibilidade, por sua vez, pode contribuir para que partes e advogados alimentem expectativas de eventual reversão da decisão judicial, levando à interposição de diversos recursos infundados, em prejuízo à efetividade e celeridade da prestação jurisdicional. Se as decisões não referenciam os precedentes, ainda que sigam suas orientações, esta conduta compromete a função normatizadora.
A decisão, sem a devida referência, pode ser percebida como interpretação isolada do órgão julgador, sem ligação com o entendimento consolidado e vinculante dos tribunais e, este não foi o objetivo almejado com a entrada em vigor do CPC de 2015, que alçou os precedentes judiciais qualificados à categoria de fonte primária do direito.
Além disso, se os operadores do direito não conseguem identificar claramente o precedente aplicável a um caso, podem acabar propondo ações ou recursos sobre questões que já foram pacificadas, gerando aumento desnecessário de litígios.
A comissão de juristas, responsável pela elaboração do código de processo civil de 2015, ao conferir força de lei aos precedentes judiciais, alçando-os ao patamar de fonte formal primária do direito, buscou assegurar maior segurança jurídica, integridade e previsibilidade ao sistema, e, para que este ideal seja alcançado, é necessário que se dê transparência à aplicabilidade das teses fixadas.
Além dos efeitos diretos sobre a coerência na aplicação do direito, os precedentes têm papel fundamental na definição de pautas de conduta nas relações sociais. O conceito de previsibilidade, que permeia o sistema, implica a formação de expectativas quanto à aplicação do direito. Quando uma questão é decidida de forma reiterada e consolidada pelos tribunais superiores, ela passa a influenciar ações e comportamentos na sociedade. Não por outra razão, hoje tanto se debate quanto à importância da modulação de efeitos, quando da mudança de entendimento das cortes. Os precedentes, ao serem visíveis e aplicados de forma consistente, indicam claramente o que é aceito como correto ou legítimo no ordenamento, criando ambiente de segurança jurídica.
Em cenário ideal, onde a visibilidade dos precedentes qualificados seja efetivamente garantida, o sistema funcionará não apenas como instrumento de coerência na solução de casos semelhantes, mas também como estratégia para garantir integridade ao ordenamento jurídico, disseminação de princípios, conceitos e forma de atuar, aplicáveis, inclusive, a casos diferentes, que reclamem a interpretação dos mesmos institutos jurídicos. Trata-se de abrir espaço ao romance em cadeia, na forma idealizada por Dworkin.
A adoção de práticas que garantam a menção clara e expressa dos precedentes qualificados nas decisões judiciais que os aplicam, e que demonstrem a pertinência entre o conflito sob apreciação com fatos e fundamentos que compõem a ratio decidendi dos julgados paradigmas é, portanto, passo fundamental para a consolidação do novo modelo.
Será, porém, insuficiente, se toda a comunidade jurídica, em especial os atores do sistema de justiça não adotarem semelhante iniciativa, em suas petições, pareceres e recursos. A mera existência de ferramentas de consulta e de disponibilização dos precedentes nos portais dos tribunais superiores, embora fundamental, vem sendo insuficiente como estratégia para redução da litigiosidade nos temas já resolvidos em definitivo pelos tribunais superiores.
É fundamental preencher a lacuna entre a existência formal dos precedentes e demonstração de sua aplicação prática. A justiça, no sistema de precedentes, não se manifesta apenas na aplicação das decisões dos tribunais superiores, mas também na visibilidade e explicabilidade dessa aplicação.
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