“Que sejam expulsos os vendilhões do templo”

5 de agosto de 2005

Edson Vidigal Ex-Ministro e Presidente do STJ

Compartilhe:

O País, como que perplexo e insone, parece estar à espera de uma voz que lhe repita o brado de Caxias: “Quem for brasileiro que me siga!”.  “Brado de Caxias”, esse foi o nome do primeiro jornal fundado na nossa cidade, Caxias, por Cândido Mendes de Almeida, em 1846, aos 27 anos de idade.

Uma vez, eu ainda menino, recém-chegado para trabalhar e estudar na capital, São Luís, fui atraído a um ajuntamento que crescia mais e mais, numa tarde, na Praça João Lisboa. Naquele Maranhão, onde a pobreza era quase tudo e o direito às oportunidades quase nada, ouvi, pela primeira vez, sobre a necessidade e a possibilidade de um “desenvolvimento já!”. O profeta, naquele Maranhão escravizado e dominado pela “politicalha” e pela “politiquice”, era o professor Cândido Mendes de Almeida. Aquele discurso me inundou e me impeliu e ainda hoje me inspira – “desenvolvimento já!”.

Com o tempo, fui aprendendo que o desenvolvimento é incompatível com a mediocridade, com a falta de coragem e que, ao contrário, é compatível com a ousadia de sonhar sonhos grandes, sonhos possíveis de serem realizados. “Desenvolvimento já!” é possível, sim.

A cruzada do desenvolvimento não é convocação que se faça aos covardes, de almas míopes; não é tarefa que se entregue aos que se acomodam, que se conformam; não é serviço para os que não gostam do salário honesto.

Aliás, já está passando da hora de voltarmos a falar seriamente em “desenvolvimento já!”. Precisamos reescrever, adaptando-o ao novo século, o nosso projeto de Nação. O que queremos para o Brasil? Quais os nossos maiores desafios? Como vencê-los e com quais recursos e aliados contaremos? Aonde queremos chegar? Não podemos, com certeza, ceder à mesmice.

Precisamos mostrar a nós mesmos o quanto somos capazes, fortes, honestos, idealistas, criativos. Precisamos resgatar valores, muitos dos quais nos foram arrebatados pelo populismo político, de alguns dos quais fomos nos desprendendo em momentos difíceis de fadiga moral imposta pela predominância de tantos maus exemplos. Precisamos resgatar a família, a escola com a educação moral e cívica e, também, a fé religiosa. É esse engenho de virtudes que vai nos restituir a coesão familiar, a responsabilidade escolar, o respeito com o coletivo e os limites espirituais.  Tudo em favor de uma sociedade mais comprometida com o desenvolvimento e com a paz.

Para nada servem as leis quando o Estado, encarregado de fazer cumpri-las, se enfraquece e se distancia, ampliando o dissenso entre a sociedade e os grupamentos políticos incumbidos de fazê-lo funcionar.

As leis não se realizam na sua força coercitiva quando a sociedade, indiferente, não as legitima. Sem legitimidade, não há autoridade e, sem autoridade, tudo resulta num teatrinho de intermináveis formalidades. As pessoas do povo em geral já não disfarçam o cansaço com a desfaçatez que de há muito estamos vivenciando.

Do mesmo modo como a política de juros altos não pode ser o único remédio para o controle da inflação, também o Código Penal não pode ser a única saída para o enfrentamento da violência.

A criminalidade a ser combatida não é apenas a das ruas, das praças, das favelas. Não podemos perder de vista a criminalidade do conluio, da cumplicidade, do silêncio; a criminalidade engravatada, exatamente aquela do malandro “que nunca se dá mal”, conforme os versos de Chico Buarque de Hollanda:

“Agora já não é normal / o que dá de malandro / regular, profissional / malandro com aparato de malandro oficial / malandro candidato a malandro federal / malandro com retrato na coluna social / malandro com contrato / com gravata e capital / que nunca se dá mal (…)”.

É o malandro que não bate carteira até porque o Zé do Povo já nem a usa mais à falta do que nela guardar; é o malandro que não troca tiros com  a Polícia,  até porque  não atua  nas ruas nem nos morros; é o malandro  que, com mandato político ou não, consegue ficar cada vez mais parceiro da arrecadação tributária porque tem sempre um coleguinha  pelas adjacências  dos cofres públicos. É o malandro “que nunca se dá mal”.

O povo brasileiro, que é todo, em si, íntegro, trabalhador, honesto, ético, envergonha-se quando se apercebe de que está sendo enganado por quantos, malandramente, conseguem mandatos políticos e, malandramente, passam a atuar no seu nome.  Não sendo tais políticos pessoas honradas, não têm como honrar a representação. Aliás, nem precisam, até porque os seus compromissos são outros e com outros igualmente malandros.

Os nossos políticos, na grande maioria, felizmente, pessoas do bem, precisam se acertar com a Nação. Sem corporativismos, sem conluios de qualquer espécie, precisam reagir logo com normas legais rígidas de procedimentos sumários contra a impunidade triunfante. A impunidade não pode continuar fazendo troça da sociedade. Sendo o Congresso Nacional o grande templo onde se louva e se afirma a democracia, a Nação exige que sejam expulsos, o quanto antes, os vendilhões do templo!

Não há que haver condescendência. Não há que haver proteção. Proteção se dá é à vítima de injustiça; a quem sofre constrangimento ilegal por abuso de poder. Nas ditaduras, isso se justifica se a vítima, pessoa honrada, é perseguida pelas suas idéias políticas. Nas democracias, não. Nas democracias, é possível distinguir a impunidade da imunidade. Nas democracias, é dever da Justiça pública perseguir os acusados de qualquer crime, inclusive os lesivos aos cofres públicos.

O último relatório do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – sobre a democracia na América Latina conclui que o Brasil tem menos democratas que a média de todo o continente. A pesquisa envolveu dezoito países, sendo o objetivo central medir o grau de comprometimento das populações com os princípios democráticos.

O Brasil, nessa pesquisa, tem 15º (décimo quinto) percentual de população considerada democrata. Apenas 30,6% dos brasileiros se enquadram nessa classificação, contra 71,3% dos uruguaios, aliás, segundo a pesquisa, os mais democratas do continente. O Brasil fica à frente apenas do Equador, do Paraguai e da Colômbia.

Outra pesquisa do PNUD, divulgada em julho do ano passado, ainda nos espraia perplexidades: 59% dos brasileiros não sabem o que é democracia. Ou seja, ignoram o significado de democracia. E agora, pasmem! Outros 54% apoiariam um governo autoritário se isso resolvesse os problemas econômicos.

E o que esperar do Estado brasileiro quando a sociedade desconfia cada vez mais dos homens públicos? Segundo o IBOPE, numa pesquisa concluída no último mês, 87% dos brasileiros não confiam nos nossos políticos.

Na pesquisa do PNUD, no ano passado, os militares brasileiros tinham 38% de confiança da população, acima, portanto, do Executivo e do Judiciário (25%) e do Legislativo (23%).

Até os bancos, com os juros altos, apareceram com mais credibilidade do que cada um dos três Poderes (36%). Partidos políticos, então, nem falar; 23% de confiança da população. Mas isso no ano passado…

Por que será que a confiança maior hoje, exatos 75%, está com os militares?  Essas duas constatações somam um excelente enredo para conclusões simples, mas preocupantes. É que, quanto mais a imagem dos políticos, no geral, salvo exceções, vincula-se à inoperância e à corrupção, mais o tempo tange para o esquecimento das atrocidades da ditadura militar.

E entre os que não fazem e, dizem por aí, só dão maus exemplos e os que, mais eqüidistantes, mostram-se comprometidos com a ordem e com a disciplina, com a defesa das instituições democráticas e com a defesa das fronteiras da Pátria, logo a tendência do povo é apoiar os que projetam os bons exemplos.

Então, precisamos cuidar melhor da democracia. Precisamos combater a sonegação fiscal, a pirataria, o tráfico de drogas, o contrabando de armas, a lavagem de dinheiro. Precisamos trazer para a legalidade a chamada economia informal, que não assina carteira do trabalhador, nem paga imposto. Se conseguirmos que todos saiam da economia informal e se juntem aos que, na economia, não têm problemas com a legalidade, somaremos uma arrecadação maior; assim, será possível reduzir, de pronto, as alíquotas dos impostos.

Só com justiça tributária, todos pagando pouco e a arrecadação somando mais, será possível apresentar ao País um orçamento forte, suficiente para responder aos compromissos do Estado e às promessas da democracia para com a sociedade. Para cada problema há que haver uma solução simples e barata. Mas mesmo essas soluções simples e baratas não se materializam quando não existe dinheiro.

Está na moda mirar a China. A despeito das nossas divergências quanto à predominância totalitária nas suas instituições, o Estado funciona, o Governo trabalha, a sociedade participa. E o que é que tem a China para justificar tanto crescimento, para sair mundo afora com tanto dinheiro na mão bancando investimentos?  A China tem muito o que nem de longe temos; a China tem reservas, tem dinheiro vivo.

Tenho sustentado a opinião de que a questão agrária não se resolverá no confronto com o direito à propriedade privada. Essa é uma questão que só não é a mais antiga no Brasil porque aflorou logo após a queda do Império, enquanto a reforma do Judiciário vem sendo discutida desde o Império.

Naquele tempo, já se cuidava de garantias individuais como o habeas corpus, por exemplo. Já se falava sobre exigências mais rígidas para o ingresso na magistratura. Já se defendia o principio da súmula vinculante, quando se estabelecia que as decisões de instâncias superiores não poderiam ser contrariadas pelas instâncias inferiores.

A reforma do Judiciário prossegue em discussão até hoje. E é bom que nunca se deixe de falar nisso, pois Justiça precisa e precisará sempre de reformas, de atualizações profundas nos seus procedimentos.

Quanto à reforma agrária, é importante que nunca deixemos de afirmar que ela só se realizará se for pela lei. Nunca pela força, com invasões da propriedade privada e governos inoperantes ou omissos fazendo vistas grossas, não comparecendo com a justa indenização.

Com regras mais flexíveis para o usucapião rural ou urbano, será possível legalizar a situação patrimonial também dos moradores dos morros e das favelas.  Outros países da América Latina já estão fazendo isso. E por que não o fazemos?  Tudo com seriedade, com responsabilidade, sem populismo. Para a subnutrição, centrais de proteínas.

Importante lembrar que, civis, militares ou eclesiásticos, somos todos brasileiros. Nossas mazelas, até quando? O quando não vai demorar. Só dependemos agora de mais efetivos para a Polícia Federal, que precisa ampliar o seu quadro para, no mínimo, mais vinte mil entre agentes, delegados e peritos criminais. Precisamos de mais membros no Ministério Público Federal e de mais juízes federais em quantidade correspondente a, pelo menos, o triplo do atual contingente.

Vamos ter que interiorizar mais as ações da Polícia Federal, do Ministério Público Federal, da Justiça Federal. Os mecanismos da União Federal de apoio à sociedade e de garantia do dinheiro público e do patrimônio das pessoas não se estendem com eficácia ao interior do Brasil. E é para o interior que o crime está indo, que o bandalho das licitações de araque está migrando. Não havendo punição a tempo, quem manda é a impunidade.

Muito do nosso dinheiro, arrecadado dos nossos incontáveis sacrifícios para os cofres públicos, não chega à destinação orçamentária.  Estima-se hoje que algo em torno de 72 bilhões de reais são desviados dos cofres públicos. Isso equivale a sessenta vezes mais que todo o investimento do Governo só no setor dos transportes, no ano passado. Estudos do Banco Mundial indicam que, num país corrupto, os investimentos saem, no mínimo, 20% mais caros.

O retrato moral do mundo de hoje, o Brasil incluído, até supera o quadro de decadência que o apóstolo Paulo descreveu sobre os romanos do seu tempo:

“Estão cheios de toda sorte de injustiça, de perversidade, de cupidez, de maldade, cheios de inveja, de homicídios, de brigas, de dolo, de depravação, são difamadores, detratores, inimigos de Deus, provocadores, orgulhosos, fanfarrões, astutos para o mal, rebeldes contra os seus pais, sem inteligência, sem lealdade, sem coração, sem compaixão”.

Nossa sociedade se entredevora feroz em apetites egoísticos. Ficam em segundo plano a fraternidade e a paz entre os homens. É como se todos se digladiassem na luta insana para esmagar o próximo, fazendo tábula rasa da solidariedade, que até os irracionais manifestam em sua vida coletiva.

É oportuna a advertência do poeta Moacir Félix:

“No Brasil, o poema drapeja em suas lanças a mais sagrada das fúrias, a do homem condenado a morrer vivendo longe da sua mais própria identidade”.

É hora de restaurar valores eternos, que se julgam superados, mortos, enterrados. A História, que Cícero chamava de “a professora da vida” (magistra vitae), está aí para nos recordar exemplos de superação de momentos críticos, nos quais a nação se reencontra e ganha forças para vencer as dificuldades.

No Brasil, vemos o Poder Executivo paralisado por um Estado mastodonte, incapaz de cumprir os seus deveres elementares e de atender aos reclamos essenciais da população; o Legislativo, dividido entre a sua missão maior de elaborar as leis da Democracia Representativa e o emaranhado de lutas políticas e partidárias intestinas.

Apesar dos seus problemas e falhas, só o Poder Judiciário ainda pode inspirar à sociedade a confiança de que ela tanto necessita. O Poder Judiciário emerge, neste momento, como uma luz na escuridão, uma chama de esperança para os que ainda crêem na força do Direito, no respeito às leis e aos contratos legitimamente firmados, na garantia das liberdades individuais.

Ontem, diante do arbítrio, a História nos cobrou a coragem de resistir. Resistimos e vencemos. Hoje, na democracia, a mesma História nos cobra atitudes, resgate de princípios, lealdade a valores, muitos dos quais até esquecidos. E é a História que molda o caráter de um povo, que dá consistência a uma Nação.

Devemos, portanto, aprender com as lições da História. Ela nos ensina que o País não se compadece dos covardes, dos acomodados, dos conformados, dos que insistem na defesa dos seus privilégios em detrimento da democracia e da cidadania. O que a História afinal nos ensina é que não devemos ter medo. E o povo brasileiro não terá medo.