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Quebra de sigilo no Orkut

31 de outubro de 2007

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O Ministério Público apresentou reclamação contra decisão proferida pelo Juízo da 34ª Vara Criminal da Comarca da Capital, que indeferiu pedido de quebra de sigilo de dados cadastrais, bem como os números de IP, data e hora completa, dos membros e criadores das comunidades “Eu sei Dirigir Bêbado”, “Sou Menor Mas Adoro Dirigir” e das demais relacionadas integrantes do sítio de relacionamento Orkut.

Aduz o Ministério Público a imprescindibilidade da medida para apurar a autoria e demais circunstâncias que envolveram a prática dos delitos de incitação e apologia ao crime, tipificados nos artigos 286 e 287, do Código Penal, sendo certo que a Autoridade Policial informou que já realizou inúmeras diligências para a obtenção dos dados dos usuários, que restaram infrutíferas, diante da utilização de nomes falsos para evitar a identificação.

A decisão que indeferiu o requerimento teve como fundamento o fato de que os crimes investigados são apenados com detenção, daí porque seria incabível a medida com base na Lei nº 9.296/96, que regula a interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática.

A interposição veio instruída com os documentos de folhas 14/38.

A decisão foi mantida em sede de juízo de retratação (folha 32).

Informações prestadas pelo Juízo reclamado nas folhas 42/43.

A douta Procuradoria de Justiça apresentou o parecer de folhas 45/49, opinando pelo provimento do recurso.

É o relatório.

Voto

Saliente-se, de início, o cabimento da reclamação oferecida pelo Ministério Público para a insurgência contra a decisão judicial impugnada.

É verdade que alguns intérpretes da lei enxergariam no mandado de segurança o remédio adequado para o combate à decisão do Juízo monocrático.

De outro lado, a reclamação tem sido considerada a via idônea para superar impasses concernentes ao indeferimento injustificado de requerimentos formulados pelo Ministério Público, objetivando instruir inquéritos e ações penais com elementos de apuração e comprovação de ilícitos penais.

O fato é que o exame da matéria controvertida sob as lentes da reclamação não conduz a qualquer aberração ou prejuízo,
mas sim a prevalência do conteúdo meritório sobre o forma-lismo ultrapassado, em prestígio ao princípio constitucional da efetividade do processo, assim como a seu corolário lógico, o princípio da instrumentalidade das formas.

Com efeito, os autos dão conta de que a empresa que representa legalmente o sítio de relacionamentos Orkut, a empresa Google Brasil Internet Ltda., não atendeu à requisição formulada diretamente pelo Ministério Público, argumentando que a lei de regência em casos dessa natureza é a do local onde estão situadas as informações, exigindo a legislação norte-americana determinação judicial para se proceder à quebra de sigilo de comunicação eletrônica.

Diante da resistência manifestada pela Google Inc. para prestar as informações solicitadas, o Ministério Público teve de se valer de requerimento à Autoridade Judiciária, que indeferiu o pedido, dando azo à apresentação da presente Reclamação.

Cabível, portanto, a reclamação para o fim postulado. No tocante ao mérito, a reclamação merece prosperar.

O fundamento do indeferimento do pedido de requisição dos dados cadastrais dos criadores e membros das comunidades “Eu Sei Dirigir Bêbado” e “Sou Menor Mas Adoro Dirigir”, bem como dos criadores de todas as demais comunidades a elas relacionadas – a vedação legal do art. 2º, inciso II, da Lei nº 9.296/96, de deferimento da medida requerida em crimes apenados com detenção –, não se sustenta, porque é inaplicável aos fatos investigados na referida legislação.

Na espécie, não se cuida de interceptação telefônica ou telemática, a abranger a transmissão, emissão ou recepção de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza, por meio da telefonia, estática ou móvel, mas sim de registros que permitam a identificação dos usuários e criadores das comunidades e de outros registros imprescindíveis à investigação levada a cabo pelas autoridades competentes.

Nesse contexto, é oportuna a lição de Luis Flávio Gomes e Raúl Cervini, diferenciando comunicação telefônica (e, por extensão, comunicação telemática) e quebra de sigilo de dados telefônicos, verbis:

“Uma coisa é a ‘comunicação telefônica’ em si, outra bem diferente são os registros (geralmente escritos) pertinentes às comunicações telefônicas, tais como: data da chamada telefônica, horário, número do telefone chamado, duração do uso, valor da camada, etc.  Pode-se dizer que esses registros configuram os ‘dados’ escritos correspondentes às comunicações telefônicas. Não são ‘dados’ no sentido utilizado pela ciência da informática (informação em forma codificada), senão referências, registros de uma comunicação telefônica, que atestam sua existência, duração, destino, etc.” (in: Interceptação Telefônica – Lei nº 9.296, de 24.07.96. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997, pp. 100/101) (sem destaques no original).

Com efeito, a doutrina pátria percebeu a distinção entre a comunicação de dados, dinâmica, e dos dados cadastrais e registros, estáticos, que poderiam ser apreendidos como os documentos em geral, e não com base na Lei nº 9.296/96.

Veja-se, a esse respeito, a lição de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, verbis:

“A segunda dificuldade é delimitar a proteção cons-titucional: estaria protegida somente a comunicação
de dados, ou seja, aquela que é feita em rede de computadores, transmitida normalmente por linha telefônica ou também os dados armazenados? A rara doutrina sobre o assunto caminha no sentido de considerar que não estão compreendidos na proteção constitucional os dados armazenados ou estanques, ou melhor, os que não estão sendo transmitidos. A vedação, portanto, é para a captação ilícita da transmissão. Os dados armazenados, segundo Geraldo Prado, William Douglas e Luiz Flávio Gomes, podem ser apreendidos como os documentos em geral.” (O Processo Penal em Face da Constituição – Princípios Constitucionais do Processo Penal. Ed. Forense, 2ª ed., p. 25) (sem destaques no original).

Em idêntico sentido, Luis Flávio Gomes e Raúl Cervini concluem que:

“Os dados telefônicos (registros pertinentes a chamadas pretéritas) não contam com sigilo absoluto. Por ordem judicial pode ser quebrado esse sigilo, mas sempre que houver autorização legal, distinta da Lei nº 9.296/96.” (op. cit, p. 104.) (sem destaques no original).

Nesse contexto, os dados objetos do requerimento Ministerial indeferido, concernente aos dados cadastrais, números de IP’s, data e hora completa dos criadores e membros das comunidades “Eu Sei Dirigir Bêbado” e “Sou Menor Mas Adoro Dirigir”, bem como dos criadores de todas as demais comunidades a elas relacionadas, do sítio de relacionamentos Orkut, inserem-se no conceito de dados registrais passíveis de obtenção através de decisão da autoridade judiciária competente, cujo fundamento não é a Lei nº 9.296/96, que cuida da interceptação das comunicações.

Isso não significa dizer que tais dados não mereçam proteção legal, mas sim que o direito ao sigilo de tais registros não é absoluto, tanto que a quebra daquela faceta da intimidade do usuário depende de autorização judicial, devendo o Juiz observar, no momento da decisão, o princípio da proporcionalidade.

Na hipótese dos autos, é evidente que o direito à intimidade dos usuários das comunidades investigadas no inquérito policial deve ceder em função de um interesse maior, coletivo, de proteção a número indeterminado de pessoas, entre eles jovens habilitados e não habilitados para a condução de veículos, já que aquelas comunidades estariam incitando seus membros à prática de condutas que, em tese, são típicas e certamente trariam, se efetivamente já não trouxeram, nefastas conseqüências à segurança do trânsito, e, ainda, a perda de vidas humanas, estas irreversíveis.

Assim, tenho como dispensável maiores considerações teóricas sobre a ponderação de interesses fundamentais aparentemente colidentes, sendo certo que o direito do Poder Público de apurar condutas ilícitas deve preponderar sobre o direito à intimidade, que não tem a finalidade de blindar praticantes de crimes que o Estado tem o dever de prevenir, apurar e reprimir.

Desse modo, a vinda das informações necessárias à in-vestigação policial é providência que expressa indiscutível razoabilidade e proporcionalidade, na medida em que o eventual desconforto de restrito número de usuários e participantes das comunidades investigadas é bem inferior aos incalculáveis benefícios à sociedade, decorrentes da preservação e prevalência da lei, do resgate da autoridade e do fim da impunidade.

A decisão proferida na presente reclamação tem como escopo possibilitar ao Poder Público, através dos órgãos cons-titucionais e legais competentes, a investigação de possíveis condutas caracterizadoras de ilícitos penais, envolvendo pes-soas cuja identificação somente será possível com a medida postulada e indeferida pelo Juízo reclamado.

Como já salientado, a respeitável decisão alvejada na pre-sente Reclamação inseriu a discussão em contexto diverso do prestigiado na presente decisão, daí porque não pode prevalecer.

O direito à intimidade, em suas múltiplas e variadas facetas, não é, como nenhum outro direito o é, um direito absoluto, não podendo ser veículo de impunidade, de propagação de danos à esfera jurídica de terceiros e de insegurança para a coletividade.

Não se confunda a proteção concedida aos cidadãos e às partes, em geral, no Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição Federal de 1988, com o direito à prática de condutas contrárias à coletividade, ou mesmo o direito à impunidade, inexistentes em nosso ordenamento jurídico, em que pese a crença em sentido contrário, ao que parece estimulada pela inércia e ineficiência dos órgãos envolvidos com a prevenção e repressão de crimes, fato infelizmente verdadeiro.

É certo que as autoridades que promovem as investigações em curso deverão zelar pela proteção das informações e dados obtidos em decorrência da presente decisão, como também eventuais providências futuras solicitadas pela Autoridade Policial ou pelo Ministério Público, na investigação ou mesmo na deflagração ou no curso de eventual ação penal, serão, necessariamente, objeto de rigoroso e atento controle judicial, à luz dos princípios constitucionais, diante dos relevantes interesses em confronto, evitando-se abusos e ilegalidades.

Tenha-se, em perspectiva, que os princípios constitucionais traçam a forma, o limite e a extensão do controle dos atos pelo Poder Público, estabelecendo o equilíbrio de armas entre a defesa e a acusação, mas não impedem a atuação estatal pautada na legalidade de investigar e punir condutas contrárias à lei penal.

O que não é possível, nesse momento, a meu juízo, é fechar os olhos aos desafios e complexidade do mundo atual, mantendo postura formalista e descompromissada com a realidade, para impedir o Poder Público de exercitar e cumprir o difícil, mas indispensável, dever de investigar condutas que possam caracterizar crime, principalmente aquelas praticadas através de veículos de comunicação de amplo espectro, produto do mundo globalizado e da (r) evolução da tecnologia.

À conta de tais considerações, voto no sentido de conhecer e julgar procedente a Reclamação, para, cassando-se a decisão reclamada, determinar ao Juízo reclamado que requisite à empresa Google Brasil Internet Ltda. as informações, dados cadastrais, números de IP’s, data e hora completa (referência horária, inclusive, GMT, BRT, etc) dos criadores e membros das comunidades do sítio de relacionamentos Orkut  “Eu Sei Dirigir Bêbado” e “Sou Menor Mas Adoro Dirigir”, bem como dos criadores de todas as demais comunidades a elas relacionadas.

É como voto.