Quem ama não mata!

8 de março de 2021

Erika Siebler Branco Advogada, Diretora de Redação da Revista JC / Promotora de Justiça, Coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, Integrante do Conselho Nacional do Ministério Público

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A frase histórica foi cunhada por grupos da sociedade civil que pressionaram para que houvesse um segundo julgamento que ampliaria a pena de Doca Street, assassino de Angela Diniz, em 1976. O principal argumento dos advogados que defendiam o réu confesso, que matou “por amor”, foi a “legítima defesa da honra”. Outros nomes, como o de Lindomar Castilho e Antonio Pimenta Neves também estão na memória da crônica policial brasileira. Igualmente atribuíram seus homicídios ao “amor exacerbado”, ao ciúme, à legítima defesa de sua honra. A eles somam-se milhares de anônimos que assassinam suas companheiras ou ex-companheiras por sentirem-se ofendidos em sua honra, seu orgulho de macho.

É também histórica a decisão do Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao conceder parcialmente medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779 para firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. “A chamada legítima defesa da honra não encontra qualquer amparo ou ressonância no ordenamento jurídico”, registrou o ministro.

Na prática, advogados de réus acusados de feminicídio estão proibidos de empregar este ou qualquer outro argumento que induza à tese de “legítima defesa da honra”. A ação ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) questionava controvérsia constitucional relevante, posto que existem divergências no que se refere a validar ou não a citada tese em julgamentos nessa esfera judicial tanto no âmbito da segunda instância, quanto no entendimento do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Assinala o ministro, muito corretamente, que “defesa da honra” não é “legítima defesa”. Toffoli não poderia ser mais preciso ao afirmar que tal argumento é “odioso, desumano e cruel” e, além disso, culpabiliza a vítima. “Tenho que a traição se encontra inserida no contexto das relações amorosas, sendo que tanto homens quanto mulheres estão suscetíveis de praticá-la ou de sofrê-la. Seu desvalor reside no âmbito ético e moral, não havendo que se falar em um direito subjetivo de contra ela agir com violência”, escreve.

O acórdão histórico também menciona o fato de ter a autoridade judiciária inserido no atual Código Penal a regra do art. 28, no sentido de que a emoção ou a paixão não excluem a imputabilidade penal. Porém, em contrapartida, o §1º do art. 121 ainda nos traz que “se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, é o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.”

Apesar disso avançamos, nem que para isso tenhamos esperado séculos. Toffoli, em sua decisão, escreve “com efeito, a ‘honra masculina’ já foi um bem jurídico protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro, como se verificava, à época da colônia, no Livro V, Título XXXVIII, das Ordenações Filipinas, no qual se concedia ao homem o direito de matar sua esposa quando flagrada em adultério”. Vejam, foram mais de 400 anos para remover este absurdo de nosso ordenamento jurídico. 

“Arcaico”, de fato, e em total desalinho com nosso tempo, como registra Toffoli no acórdão:

A ideia que subjaz à “legítima defesa da honra” – perdão do autor de feminicídio ou agressão praticado contra a esposa ou companheira adúltera – tem raízes arcaicas no Direito brasileiro, constituindo um ranço, na retórica de alguns operadores do Direito, de institucionalização da desigualdade entre homens e mulheres e de tolerância e naturalização da violência doméstica, as quais não têm guarida na Constituição de 1988.

Seja na esfera legal ou judicial, medidas para rever esse quadro assustador são urgentes. Na véspera do natal de 2020, a Juíza Viviane Vieira do Amaral, de 45 anos, foi assassinada a facadas pelo ex-marido na frente de suas três filhas. Foi mais uma vítima entre a média de cinco mulheres mortas ou vítimas de violência diariamente no ano passado. Os dados são da Rede de Observatório da Segurança, que registram 449 casos de feminicídio ao longo dos doze meses de 2020.

Porém, não são apenas as leis ou o ordenamento jurídico que precisam ser revistos. Existe entre nós um sólido machismo estrutural que não será revogado com um acórdão. Trata-se de problema educacional, que envolve aspectos culturais enraizados em nossa sociedade. Infelizmente, nessa confusão sociocultural entranhada nas cabeças de meninos e meninas, perpetua-se o sentimento histórico dos homens como “donos” e com direitos imprescritíveis sobre as mulheres. O acórdão histórico de 26 de fevereiro de 2021 retira um dos tijolos que sustentam esse torto edifício, mas nos alerta para outros que precisam ser removidos para que se desconstrua um vício social que faz com que a violência contra a mulher se mantenha vergonhosamente naturalizada verbal, física e cotidianamente.