Quem pode investigar?

5 de junho de 2004

Presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República

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O Ministério Público pode investigar em matéria criminal? O Supremo Tribunal Federal debruça-se sobre o tema na hora presente. Há decisões de tribunais em diversos sentidos. O STJ, com acerto, afirma que o Ministério Público também investiga. Afinal, é o titular da ação penal e a investigação, num primeiro momento, se destina a formar seu convencimento para promover a acusação perante o Judiciário.

Num instante de enfrentamento de uma das maiores crises na área de segurança pública e em que a criminalidade organizada se espraia, infiltrando-se até mesmo no próprio aparato oficial, a discussão chega a ser bizantina.

A questão não é complexa. Basta boa vontade e basta desapego a preconceitos, para chegar-se a uma solução coerente. Se ao Ministério Público cabe oferecer a ação penal; se a investigação tem destinatário certo – que é o próprio órgão de acusação; se, perdoem o truísmo, a investigação não é um fim em si mesma, vindo depois dela a acusação e, após esta, a instrução do processo e o julgamento, por que privar o Ministério Público da tarefa de desenvolver, também, investigações?

Delegados e advogados criminalistas (nem todos, frise-se) afirmam, num diapasão, que investigar é atividade exclusiva das polícias, exercitada apenas no inquérito policial. Pasmem todos! A forma é mais importante que o conteúdo!

São óbvias as motivações de uma e outra corporações, não obstante as imbricadas jurídicas exibidas. Aqueles querem preservar um monopólio e, com ele, o poder de definir se e quando um crime deve ser levado a julgamento. Sim, pois uma investigação mal sucedida converter-se-á logicamente em arquivamento. Logo, o Ministério Público só irá propor ações nos casos em que a polícia – única e “soberana’’ – concluir pela existência de delito e de seu autor. Quanto a determinado setor da advocacia criminal, não é difícil intuir a razão maior desse pensar. Ora, quanto menos forem os responsáveis por atividades investigativas, menores e mais lentas serão as chances de identificação de criminosos e, pois, de condenações. Desnecessários serão maiores esforços nas defesas. A equação é simples: se um só órgão investiga, poucos serão os casos a serem efetivamente encerrados em razoável espaço de tempo. E com uma série de diligências protelatórias e uma infindável teia de recursos, como alcançar resultado efetivo? Viva, então, a prescrição!

O Ministério Público não almeja a exclusividade da investigação. Absolutamente, não! Pretende-se compartilhamento, ampliação do leque investigatório. Quer o Ministério Público apenas o reconhecimento de que a plenitude de seu papel de titular da ação penal nunca será alcançada com seu distanciamento do cenário da investigação. Há casos, por exemplo, que somente poderão ser elucidados com a atuação de um órgão com independência funcional, dotado de poderes requisitórios e desvinculado do Executivo. Há situações, ainda, em que as provas poderão ser viabilizadas diretamente junto à Receita, ao INSS, ao Banco Central, ao Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf) e a tantos outros órgãos de investigação. Para que burocratizar a investigação, instaurando-se inquérito policial? E o que se dirá quando o fato criminoso se situar no seio da própria polícia, como nos casos de violações de direitos humanos?

Em vez dessa disputa estéril, vazia de sentido, a racionalização da colheita da prova é, hoje, exigência inarredável, no momento em que o crime organizado atua com velocidade cibernética. Além disso, se todos os monopólios estatais já foram quebrados, por que e para que manter o monopólio das investigações, nas mãos da polícia?

É necessário tirar o véu da polêmica instaurada. Será que assistimos a uma discussão meramente técnica? Ou serão temidos os chamados “excessos’’ do Ministério Público? Se esse temor for factível, certamente não será a limitação da atuação da instituição que trará solução para o “problema’’. O adultério – todos sabemos – não se resolve com a retirada do sofá da sala. Se houver riscos de excessos (riscos para quem?), que se regulamente, então, a atividade investigatória, definindo-se objeto, prazos e formas de atuar. Mas não se impeça o Ministério Público de investigar, como se tal atividade implicasse prejuízo à sociedade. Ao contrário, não são poucos os casos em que a investigação do Ministério Público tem conduzido a resultados positivos, aplaudidos pelo cidadão contribuinte. O caso do TRT de São Paulo é apenas um, dentre tantos que poderiam ser aqui elencados.

Enquanto o Estado brasileiro e suas instituições se contorcem nessa discussão insensata, a criminalidade, penhorada, agradece.