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Questões polêmicas em matéria de execução

11 de julho de 2012

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“Sinto-me muitíssimo distinguido pelo convite para participar desse magnífico evento. É curioso, mas verdadeiro que, a um seminário dedicado ao transporte coletivo, chamem um processualista para examinar dois aspectos operacionais da execução judicial, que é o termo inicial da multa de 10% e por igual o cabimento de honorários advocatícios, nesse singular procedimento.

São dois aspectos operacionais, mas não é possível compreender o seu mérito, ou não, sem examinar determinadas premissas. A primeira delas respeita a origem da Lei 11.232. É um movimento mundial o das mudanças legislativas. Existem, a esse propósito, dois marcos significativos. O primeiro deles foi em 1998: o surgimento do Código de Processo Civil inglês, uma lei processual com os predicados da abstração e da generalidade. Mas esse movimento não se limitou ao Ocidente; em 1996, o Japão, que já adotara, em 1890, um Código de Processo inspiradíssimo na então recente ZPO alemã de 1887, aprovou um novo Código de Processo Civil.

Entre nós, porém, assumiu-se uma política legislativa diferente. Por razões de oportunidade, utiliza-se no Brasil a reforma parcial do Código. Só este ano é que se lançou um novo projeto de Código de Processo Civil. E não há nada de revolucionário. A meu ver, trata-se de uma compilação. Mas é um passo positivo, pelas razões que irei expor.

Como disse, a reforma parcial calca-se unicamente em critério de oportunidade. Mas esse modelo se ressente de três dificuldades capitais. A primeira é a falta de identificação dos verdadeiros problemas do Processo Civil através de pesquisa empírica. O fato é que jamais se apurou verdadeiramente por que e como o processo se retarda na média. Não há dados concretos a esse respeito. Tal ausência explica reviravoltas no diagnóstico e na terapêutica adotada. Vale o exemplo do agravo, que mudou duas vezes, nenhuma delas satisfatoriamente.

Em seguida, as reformas parciais inspiraram-se frequentemente em experiências pessoais insuscetíveis de generalização. Vale aqui o exemplo da inclusão, dentre os títulos executivos extrajudiciais, da debênture, o que é muito raro. Mas como houve processos em que advogados atuaram sustentando a inexequibilidade da debênture, já há muitos anos incluiu-se, todavia, a debênture no artigo 585, inciso I.

O terceiro problema foi a execução sofrível das reformas. Sinto-me inteiramente à vontade para falar isso porque o redator dessas reformas é um patrício meu, foi meu professor na faculdade; mas, objetivamente, as reformas não são bem escritas. Basta mencionar o parágrafo primeiro do artigo 745-J, que tem dois cacófatos e dois gerúndios. Não há tolerância possível com uma redação tão agressiva aos ouvidos, e eu decididamente não sou um especialista nessa matéria.

Mas essas dificuldades de concepção projetaram-se na lei processual, produzindo dois efeitos colaterais terríveis. O primeiro é a complexidade da lei processual. Podemos não gostar disso, mas a verdade é que se adotaram tantos instrumentos sofisticados que eles não são de fácil operação. Cito o exemplo da execução provisória, que haveria de ser completada, entregando o produto da execução ao exequente. Para tal arte, exigindo eventualmente alienação de bens, mostrar-se-ia razoável impor caução ao exequente, fundada no recente dano. Mas em outras circunstâncias, a caução pode ser dispensada, também com fundamento no receio de dano inverso. Ora, não conheço evidentemente juiz ou juíza que utilize, para medir esses receios de dano, uma “balança de farmacêutico”, nem sequer eletrônica. Então, é muito difícil operar a lei com esses conceitos jurídicos indeterminados e contraditórios.

Mas há outro efeito ainda mais terrível: a quebra do caráter sistemático da lei. E é nesse tópico que se insere o problema da multa do prazo de cumprimento e da incidência da multa no artigo 475-J. Há um exemplo pitoresco na quebra de sistema. Não me levem a mal por citar um exemplo menor, mas que bem representa esse efeito colateral pernicioso, que é o problema da carta de sentença. Mais uma vez se alvitrou, a bem da celeridade e da simplificação, abolir a carta de sentença, porque o instituto de antanho poderia ser substituído por uma petição. É assim que o parágrafo 3º do artigo 475-O designa a iniciativa do vitorioso, contrariando também nesse tópico o 475-J, caput, que alude a requerimento, mas poderia perfeitamente iniciar com uma petição instruída por aqueles mesmos documentos previstos no artigo 590, hoje revogado, com algumas adaptações necessárias. Então, a carta de sentença foi assim substituída.

Mas, como no poema de Baudelaire dedicado ao Rei Leopoldo I, trata-se de um cadáver recalcitrante. A perna e o braço ficaram para fora do caixão, porque o legislador olvidou de alterar o artigo 484, que prevê a execução da sentença estrangeira após a homologação na carta de sentença. Vá lá que o artigo 484 seja de raríssima aplicação — eu mesmo jamais trabalhei em uma execução de sentença estrangeira — mas é muito menos desculpável olvidar o disposto no artigo 521, segundo o qual, não recebida a apelação no efeito suspensivo, incendiar-se-á a execução na respectiva carta.

Enfim, é um tema menor, reconheço, mas revelador da falta de sistema, da quebra da uniformidade. E é bom não esquecer que, apesar de posteriormente estigmatizado, o autor do anteprojeto que se transformou no CPC de 1973, o Dr. Busaid, era fundamentalmente um jurista competente. Ele conhecia o Direito austríaco, o alemão, o francês e tinha também um profundo conhecimento sobre o Direito espanhol e o português. Seus estudos, por exemplo sobre a origem do agravo, são até agora insuperáveis. É uma figura incomparável. Os processualistas brasileiros hoje se concentram fundamentalmente no Direito italiano, e, todos sabem, a Corte de Estrasburgo proclamou várias vezes, a pior Justiça da Europa é a Justiça italiana.

Nesse ambiente, surgiu a Lei 11.232, que alterou a execução dos títulos judiciais, retomando o sistema do CPC de 1939 e propiciando uma confusão enorme em torno da natureza dos provimentos exequíveis agora e doravante em simultâneo processo. Após a introdução, entre nós, da antecipação de tutela, cujo artigo 273, caput, alude a efeitos do pedido, tornou-se dominante no Brasil uma classificação das sentenças pelas suas energias, cargas e efeitos, desenvolvida na Alemanha por um autor chamado George Kutner, em 1914. Em síntese, as sentenças, passando-as por um espectro qual um feixe de luz, seriam discerníveis em cinco classes: declarativa, constitutiva, condenatória, executiva e mandamental. Essa ampliação, que nem de longe é dominante em outros países, se fez necessária justamente por força da antecipação de tutela, porque muito embora vantajoso conceder ao autor no início do processo aquilo que ele só obteria ordinariamente no fim, também se achou que isso não se mostraria suficiente. Seria bem melhor que se pudesse também entregar-lhe desde logo o bem da vida desde o início do processo. Então, generalizou-se a impressão que seria  possível transformar todas as sentenças condenatórias em executivas.

E pior que isso, executivas lato sensu, embora ninguém explique quais seriam as stricto sensu. Sucede que essa transformação é impossível, porque a classificação das sentenças por sua força e efeito não se prende a um critério processual, não está fundada ou se aure de nenhum dado do processo, e sim do direito material. Ela se impôs através da intuição de outro autor alemão chamado Willem Kisch, que se perguntou: o que temos antes do processo? A lide, o conflito. E o que temos depois do processo? A solução do conflito. Ou seja, o provimento do juiz, depois de solucionada a lide, reingressaria no plano das relações jurídicas e sociais rígidas, produzindo, nesse plano efeitos, porque a sociabilidade é própria do Direito. Isso é muito fácil de entender. Antes da separação, por exemplo, temos duas pessoas casadas. Depois do processo de separação, teremos duas pessoas separadas. O que é isso? Um status jurídico novo. Por quê? Porque à força constitutiva corresponde esse efeito, essa utilidade, esse bem da vida. Porque quem ingressa em juízo quer algo perante o seu adversário. Se uma esposa entra com uma ação de separação contra o marido, ela quer exatamente o status jurídico novo, esse é o bem da vida, que corresponde genericamente às pretensões de força constitutiva.

Se o critério é esse, um critério material, e o bem da vida se localiza nos domínios do direito material, já se intui que não é possível apagar a diferença entre sentenças condenatórias e executivas tão só porque se realiza a sua execução no mesmo processo, e de fato é assim. Por que o critério? Ao menos este critério jamais foi o de a execução, se realizar no mesmo ou em diferentes processos. Uma ação de despejo é executiva por sua natureza, não porque os atos executivos se realizem no mesmo processo. E que natureza é essa? Qual a diferença entre a condenação e a execução? Por que algumas pretensões nascem executivas e dispensam a constituição de um novo processo? E por que outras não nascem executivas, nascem simplesmente condenatórias e podem ou não ser realizadas no mesmo processo? Por um motivo simples, na pretensão condenatória, os atos executivos, ou seja, os atos de realização forçada no comando judiciário, recairão sobre o patrimônio do vencido.

Já nas pretensões que nascem executivas, tal qual o despejo ou a reivindicatória, tal ato, idêntico ao anterior — da mesma natureza — deslocamento forçado de coisas ou pessoas, recairá sobre bens do patrimônio do vencedor. Essa é a diferença. Na reivindicatória, o autor recupera o que é seu por definição. Na condenação, para realizar seu direito, vai precisar que o vencido tenha patrimônio. Esta é a diferença aurida do direito material e que a técnica do processo não consegue apagar de forma alguma.

Portanto, tecnicamente, depois da Lei 11.232, o que há é cumulação sucessiva de pretensões. Primeiro, a pretensão à condenação, da qual o órgão judiciário formula a regra jurídica concreta. Trabalho de gabinete, em que predomina a função de conhecimento. Depois o vitorioso, assim desejando, poderá deduzir a sua pretensão à execução. Mas não pensem que isso é teoria. O argumento está na lei. Segundo artigo 189 do Código Civil brasileiro, violado o direito, nasce para o seu titular a pretensão, que extinguir-se-á pela prescrição. Portanto, a prescrição extingue a pretensão. Ora, ao executar, segundo o artigo 475-L, inciso VI, é lícito reagir contra execução injusta, alegando prescrição, “desde que superveniente à sentença”. Portanto, há duas prescrições: a da pretensão à condenação e a da pretensão na execução, de mesmo prazo, a súmula do STF nº150.

Isso explica por que é possível formular a regra jurídica concreta e condenar. Vale o exemplo — eu não sou adepto do politicamente correto — condenar um papeleiro, que com seu carrinho de metal nos risca o carro, e condenar uma empresa de ônibus. O trabalho intelectual do órgão judiciário é idêntico nas duas hipóteses. O resultado do respectivo processo é apreciável e pode ser apropriado; mas, tratando-se de realizar o comando na realidade, impõe-se uma diferença. Há que haver patrimônio. Se o papeleiro não o tiver, é inútil a condenação. Já uma empresa de ônibus seguramente tem, e até se expõe, este é o demérito ou o mérito, conforme a perspectiva que se adote a constituição eletrônica de dinheiro.

Portanto, a reforma da Lei 11.232 não alterou a natureza da sentença. Condenação continua sendo condenação. Essas pretensões dependem do assim chamado princípio da responsabilidade patrimonial. Se o vencido tem bens penhoráveis, o comando judicial é realizável na prática. Se não tiver, não é. Por aí já se vê que os problemas da execução forçada não são propriamente jurídicos, são fundamentalmente econômicos. E foi nesse cenário que o legislador introduziu a multa do artigo 475-J, caput, ao mesmo tempo em que no artigo 475-A introduziu o parcelamento forçado. Qual foi o objetivo? Se, de algum modo, o vencido for estimulado a realizar voluntariamente o depósito da condenação, os problemas da execução forçada desaparecem. Os problemas da execução forçada são simples. Complexo é solucioná-los. Mas a identificação desses problemas é fácil: localização dos bens e sua alienação. Não há outros. Ambos ficam superados se houver depósito voluntário. Além disso, há um ganho colateral, que não pode ser medido a priori, mas é um ganho real. Se alguém for obrigado a realizar o depósito, provavelmente ficará desestimulado a interpor o recurso seguinte. Não se sabe o percentual, não há bases empíricas para medi-lo, mas um percentual não identificado pensará assim: “Já que paguei, para que continuar com uma controvérsia fadada ao fracasso?” Foram esses dois os objetivos.

Para a solução técnica ser coerente com os objetivos, só há um termo inicial concebível, que é o do nascimento da pretensão a executar. No momento em que a condenação se tornar exigível, passa a fluir o prazo, tecnicamente de espera. No seu curso, notem bem, o vitorioso não pode executar. Não pode iniciar os atos de agressão ao patrimônio do vencido. E quando é que nasce a pretensão autônoma de executar? No momento em que a condenação líquida for exigida, ou seja, no momento em que o recurso subsequente não tiver efeito suspensivo.

Este é o sistema da lei, é o duro sistema da lei. E, por ser duro, não se harmoniza com as bases culturais do País. O fato é esse. O fato é que, para funcionar, é preciso que o advogado do vencido pegue o telefone e diga: “Fulano, sabe aquela causa que eu te garanti que ganharíamos? Pois é, perdemos. E agora é preciso depositar o valor rápido, se não incide multa”. Esse é o problema. Quando me encomendaram uma obra sobre o cumprimento da sentença, percebi que haveria dois problemas: esse e o dos honorários. Não é preciso ser o Oráculo de Delfos para perceber a que solução afinal se chegaria. Quem conhece o funcionamento da Justiça brasileira sabe qual seria o desfecho. O mais provável era o de exigir uma intimação específica. Mas essa intimação específica é um absurdo dentro da sistemática da Lei 11.232, que visou justamente abolir uma nova citação.

A economia consistiria em dispensar uma nova citação, só isso. E nem em todos os títulos, em se tratando de sentença penal condenatória, sentença arbitral, sentença estrangeira, segundo o artigo 405-N, parágrafo único, haverá uma nova citação. Mas, na execução da sentença civil, a economia seria dispensar uma nova citação. Ao exigir-se uma intimação pessoal do executado, desaparece a única economia conseguida. Como todos nós sabemos, inclinou-se o STJ, por último, nessa direção, como era previsível, porque essas disposições rígidas e duras não se acomodam com a nossa cultura. Era previsível que isso dividiria os aplicadores. Aí está a quebra do caráter sistemático da lei. O juiz da primeira Vara entende de um jeito, o juiz da segunda entende de outro. Dirão os constitucionalistas: “Mas a jurisprudência vai terminar resolvendo esse problema”. De fato, vai, depois de se gastarem tonéis de tinta, resmas de papel, muito tempo e só então se chegar-se-á a uma solução uniforme, que será ou não adotada por cada um.

É nesse cenário que se impõe o problema do parcelamento forçado do artigo 745. No Direito estrangeiro, cogitam-se os dois mecanismos, ou pena ou incentivo. Eu sou favorável aos incentivos, multa não resolve. Ensina a experiência que é um constrangimento enorme aplicar multa do 538, parágrafo único, no embargante. Só em casos muito específicos isso deve ocorrer. Então a multa não resolve, o incentivo econômico é mais promissor. E qual é a objeção que se faz à incidência desse dispositivo? Não é uma objeção formal, porque formalmente o 475-R manda aplicar o Livro II no cumprimento. E não pode ser de outra maneira, porque o cumprimento se resume a um único inciso do 475-J. Tudo mais, as regras da penhora, da alienação dos bens, estão no Livro II. A objeção é material, diz-se que haverá interferência do órgão judiciário sobre o direito privado de alguém. Mas, efetivamente a Constituição nos assegura a chamada autonomia privada. Portanto, não há nada que impeça, deste ponto de vista, que o órgão judiciário conceda o parcelamento do artigo 745 na execução fundada em título judicial, porque não estará dispondo do direito privado, estará dispondo do objeto do processo, o crédito que o próprio órgão Judiciário criou através do provimento exequível.

Resta o problema dos honorários advocatícios. É outra discussão sem sentido e que revela que as reformas parciais quebram o caráter sistemático do Código e o tornam complexo, ensejando controvérsias. Basta lembrar que essa controvérsia nasceu com o CPC de 1973. Os primeiros comentadores da lei sustentavam que não cabiam honorários na execução fundada em título judicial. E por quê? Porque os honorários já estariam contemplados no título. Não é o sistema da lei, os honorários contemplados no título são aqueles devidos pelo trabalho desenvolvido na formulação da regra jurídica concreta. Basta ler o parágrafo 3º do artigo 20 para tornar-se evidente que a fixação dos honorários pelo juiz considera o trabalho desenvolvido até então. A execução é um novo trabalho, que exige, portanto, uma nova remuneração. Essa é a última palavra do STJ. Também era uma questão previsível. Os tribunais reagem da seguinte maneira: essas questões polêmicas, que rendem muito recurso, tendem a ser resolvidas em prol da tese do recorrente.

Portanto, para encerrar, observa-se que as reformas parciais mais criaram dificuldades do que soluções. Logo, um novo Código, e eu me atrevo a chamá-lo de Código Fux, será muito bem-vindo. Não é uma obra revolucionária, longe disso, porque não há bases para uma transformação revolucionária da legislação processual. O problema não está na lei. Se o juiz de uma Vara Cível tiver 15 mil, 25 mil processos, não há lei processual que resolva. Se, porém, essa carga for de 300 processos por ano, qualquer lei processual resolve.

Muito obrigado a todos.