Quixotes de toga

28 de junho de 2013

Compartilhe:

Rogério Medeiros Garcia de Lima – Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais; este artigo foi publicado à revista MagisCultura, Associação dos Magistrados Mineiros, Belo Horizonte-MG, nº 9, abril 2013, pp. 10-21.

“Ó incomparável autor! Ó feliz D. Quixote! Ó famosa Dulcinéia! Ó facecioso Sancho Pança! Juntos vivereis através das idades para recreio e regalo do gênero humano” (Miguel de Cervantes).

I – O tema

Carlos Mário da Silva Velloso, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, escreveu sobre Dom Quixote de La Mancha, personagem imortal da obra do escritor espanhol Miguel de Cervantes:

“O Quixote era a expressão maior do idealismo. Querer salvar o mundo, é extraordinário; julgar que é o salvador do mundo, é ridículo, já o proclamara San Tiago Dantas, escrevendo sobre o Quixote. A notável obra de Cervantes deve ser assim entendida. O Quixote não se julga o salvador do mundo. O Quixote quer salvar o mundo. (…) O Quixote é o meu herói” (revista Justiça & Cidadania, novembro 2011, p. 8).

O texto do ministro Velloso instigou-me. Após mais de duas décadas de exercício da magistratura, trago na alma a quimera do cavaleiro errante de Cervantes. Certamente, a mesma fantasia anima o espírito de incontáveis magistrados no Brasil e mundo afora…

II – A vida de Miguel de Cervantes

Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em Alcalá de Henares, Espanha, em 1547. Era filho de um modesto cirurgião e uma nobre empobrecida.

Estudou gramática e retórica com Juan López de Hoyos, famoso humanista espanhol, em Madri, onde também compôs seus primeiros sonetos (1567).

Em 1569, foi para Roma e serviu como camareiro do cardeal italiano Júlio Acquaviva. Na época, defendiam-se novos ideais de vida e princípios estéticos. Abriam-se caminhos em direção ao Barroco. Admirou, na Itália, as grandes obras da Renascença.

Em 1570, integrou tropas pontifícias na luta contra os turcos. Revelou coragem durante os combates. Perdeu a mão esquerda na batalha de Lepanto. Seu nome correu o vasto império espanhol como sinônimo de bravura e dedicação.

Em 1575, de regresso à Espanha, a galera em que Cervantes viajava foi tomada pelos turcos. Passou cinco anos preso na Argélia. Os mouros exigiram vultosa quantia para o resgate. O pai do escritor, sem posses, arrecadou a soma junto a familiares, fidalgos e padres compadecidos.

Quando Cervantes chegou à sua pátria, em 1580, ninguém mais se lembrava dele. Para sobreviver, engajou-se como soldado nas tropas de Felipe II. Depois de uma missão no norte da África, foi enviado a Portugal, então ocupado pelo duque de Alba.

Desiludido com a vida militar, Cervantes dedicou-se mais intensamente à literatura. Em Madri, concluiu “Galatéia”, obra iniciada no cárcere e que celebrava uma visão plácida e repousante do mundo.

Em 1584, casou-se com Catalina de Palácios. O casal se separou um ano após.

Para sobreviver, Cervantes aceitou o cargo de comissário real de abastecimento da Invencível Armada. Tornou-se, depois, coletor de impostos.

Acusado injustamente de desviar verbas, Cervantes foi encarcerado na prisão de Sevilha, onde se supõe tenha iniciado a obra-prima “Dom Quixote de La Mancha”, cuja primeira parte foi editada em 1605.

A segunda parte apareceu em 1615, quando o escritor já atingira o auge do talento em obras teatrais (“O Cerco de Numância”, “A Viagem de Argel”, “Oito Comédias”, “Oito Prelúdios” e outras) e muitas novelas (“Novelas Exemplares”, “Amante Liberal”, “A Espanhola Inglesa” e “Senhora Cornélia”).

Todavia, o brilho de suas peças foi ofuscado pelo gênio de Lope de Vega, cuja obra dominou todo o século XVII.

Cervantes morreu em Madri, no ano de 1616.

III – “Dom Quixote de La Mancha”

A obra “Dom Quixote de La Mancha” foi inspirada em um caso real de loucura. Opondo-se à irrealidade das novelas de cavalaria andante, muito lidas na Espanha da época, Cervantes pretendeu fazer uma sátira da “propaganda cavaleiresca” e dos que se armavam cavaleiros às cegas:

“Este vosso livro (…) todo ele é uma invectiva contra os livros de cavalarias, dos quais nunca se lembrou Aristóteles nem vieram à ideia de Cícero” (CERVANTES, “Dom Quixote de La Mancha”, prólogo, p. 15).

Todavia, a caricatura de um estilo fantasioso transformou-se no retrato da aventura humana e no perfil do homem dividido entre sonho e realidade. Dom Quixote e Sancho Pança, surgidos da fantasia do artista, aparecem vivos e como se fossem personagens históricas.

“Dom Quixote” foi editado, reeditado, traduzido para todos idiomas da Europa e tornou seu autor quase tão famoso como seus protagonistas. Ainda assim, Cervantes não enriqueceu com a literatura.

Segundo Charles Van Doren (Breve historia del saber, pp. 252-254), se os “Ensaios” de Montaigne não são o livro do Renascimento por excelência, então esse título corresponde, sem dúvida, ao “Dom Quixote”. Que melhor maneira há de anunciar a chegada de um novo mundo do que escarnecer do anterior e fazer com que todos riem consigo? E concluía:

“Puesto que el alto y enjuto caballero y suo rondo escudero capturaron de inmediato y para siempre la imaginación de todo el mundo, su image és la más conocida de todos los personajes de ficción de la literatura mundial”.

Igualmente analisou o crítico norte-americano John Macy (História da Literatura Mundial, p. 161):

“‘Dom Quixote’ passou para todas as línguas modernas, tornando-se um dos grandes livros da humanidade. Os dois heróis encontram-se no curso das aventuras com toda a espécie de homens e neles Cervantes retrata o caráter do seu povo. Mas os heróis centrais são mais que espanhóis. Somos todos nós – cavaleiros andantes do sonho e filósofos do terra-a-terra prático”.

A influência de Dom Quixote – uma das maiores obras-primas da literatura de todas as épocas – estendeu-se ao longo do tempo a escritores, pintores, escultores, dramaturgos, cineastas e músicos. Muitos deram sua versão pessoal do “Cavaleiro da Triste Figura” e seu leal escudeiro.

Otto Maria Carpeaux (Tendências Contemporâneas na Literatura, p. 173) citava o crítico suiço Martin Bodmer:

“As grandes obras da literatura universal são comparáveis aos ‘campos de energia’ da física: irradiam energia espiritual por todos os tempos. Assim, os ‘campos de energia’ Homero, Virgílio, Dante, Cervantes, Shakespeare, Goethe, Dostoievski etc., e esse ‘etc.’ garante a continuidade do processo. É igualmente contínuo o processo em direção inversa: as obras permanentes mudam de aspecto, pelos novos ambientes em que começam a agir”.

Harold Bloom (O Cânone Ocidental, p. 11) incluiu Miguel de Cervantes entre raros escritores integrantes do chamado “cânone ocidental”, cujas qualidades “os tornam canônicos, ou seja, obrigatórios em nossa cultura”.

No Brasil, por exemplo, aponta-se influência de Dom Quixote em Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; em Simão Bacamarte, de Machado de Assis; e em Guimarães Rosa (CRUZ, BERNARDO e DACANAL).

Destacou Ivan Junqueira (Cervantes e a Literatura Brasileira):

“Também a prosa de ficção que se escreveu durante o século passado no Brasil revela, em alguns casos, uma inequívoca influência do Dom Quixote. Prova disso é o romance ‘Fogo morto’, de José Lins do Rego, publicado em 1943 e no qual a personagem do capitão Vitorino Carneiro da Cunha é uma espécie de Dom Quixote do sertão nordestino. Além deste, quatro outros ficcionistas deixaram-se embeber pelos temas cervantinos: Lima Barreto, Dalton Trevisan, Autran Dourado e Ariano Suassuna, particularmente no ‘Romance da Pedra do Reino’, de 1971, e na ‘História do rei degolado nas caatingas do sertão’, de 1976. Entre os poetas brasileiros contemporâneos que pagam algum tributo ao mito de Cervantes, lembrem-se, Alphonsus de Guimarães, Manuel Bandeira, Augusto Frederico Schmidt, autor de ‘A visita’, obra-prima de prosa evocativa em que o autor se imagina recebendo Dom Quixote em sua casa, onde lhe confessa as angústias pessoais e o temores sobre a vida do país; e, mais de que qualquer outro, Carlos Drummond de Andrade, talvez o maior dentre todos os poetas de nossa modernidade e que nos legou, sob o título de ‘Quixote e Sancho, de Portinari’, um conjunto de 21 poemas originalmente escritos para um livro de arte com desenhos do grande pintor Cândido Portinari e depois recolhidos na coletânea poética ‘As impurezas do branco’, publicada em 1973”.

Domício Proença Filho também discorreu sobre a obra cervantina (Estilos de Época na Literatura, pp. 36-37):

“Quer-nos parecer que (…) o escritor se coloca a serviço da sociedade, aponta os caminhos que julgar válidos, e procura conduzir a comunidade a estes caminhos. Ele é um combatente. Um ‘engagé’. Sem deixar, entretanto, de ser um artista. (…)

“E o bravo e audaz ‘Don Quijote, el Caballero de la Triste Figura’, o que pretende quando vai pelo mundo a ‘deshacer agravios’, a fazer justiça? (…) Não morrer. Fazer-se famoso ‘en los presentes y en los venideros siglos’. Viver na memória de todos, ânsia de vida imortal, mola mestra da atitude quixotesca. (…)

“A literatura é então ânsia de imortalidade, pois, afinal, como diria Machado de Assis:

‘Esta é a glória que fica, eleva, honra e consola’” (grifos no original).

O vernáculo incorporou palavras derivadas do personagem universal de Cervantes (Novo Dicionário Brasileiro Melhoramentos, vol. 2, p. 170, e vol. 4, p. 45):

Dom-quixote. 1. Indivíduo que, ingenuamente, pretende ajudar os bons, castigar os maus e corrigir injustiças, defendendo causas alheias em prejuízo próprio. 2. Pessoa alta e magra, de triste figura.

Dom-quixotesco (quixotesco, quixótico). Próprio de dom-quixote, ou que se lhe assemelha.

Dom-quixotismo. Ações ou modos como os de Dom Quixote.

Quixotada (quixotice). Ato ridículo, com pretensões a cavalheiresco; bazófia, fanfarrice, fanfarronada” (grifei).

IV – Dom Quixote, Humanismo e Renascimento

A história da nossa civilização começa com a civilização dos gregos. Do mesmo modo, o humanismo ocidental começa a se formar com o advento da cultura grega. Não há movimento humanista – inclusive o humanismo cristão – que, de uma forma ou de outra, não deite suas raízes no pensamento grego. Protágoras, que viveu na Grécia no século V a. C., assinalou: “o homem é a medida de todas as coisas” (NOGARE, 1981:25-31).

No campo literário, o período renascentista é identificado com a revalorização do homem.

O termo “Renascimento” foi criado por Giorgio Vasari (1511-1574), pintor e escritor italiano. É tradicionalmente empregado para designar, a partir do século XV, o ressurgimento da literatura e das artes por força da redescoberta de obras e autores da Antiguidade. Caracterizava uma volta ao passado, especialmente à cultura greco-latina, fonte por excelência do pensamento e da arte. O movimento foi impulsionado pelo entusiasmo de personalidades conhecidas como “humanistas”. Historiadores modernos ampliaram essas concepções e atribuíram à expressão “Renascimento” uma verdadeira ruptura com a religiosidade medieval, por eles considerada retrógrada. Assim, o “Renascimento” implica a redescoberta do homem. O teocentrismo da Idade Média cedeu lugar ao antropocentrismo. Reabilitou-se o paganismo, em função de uma “revelação do homem e do mundo” (AZEVEDO, 1990:337).

Antonio Carlos do Amaral Azevedo também definiu “Humanismo” (1990:212):

“Termo empregado para designar um movimento cultural surgido na Europa, caracterizado por um interesse apaixonado pela Antiguidade clássica, isto é, greco-latina. Seus participantes eram intelectuais, não no sentido profissional, mas eruditos que descobriam nos textos gregos e romanos a sabedoria e beleza esquecidas pela Idade Média, conforme afirmavam. Viajantes infatigáveis, os humanistas consultavam nas bibliotecas e nos mosteiros os manuscritos dos autores antigos. Rejeitando o latim rude do período medieval, eles reencontraram a língua clássica, não só o grego e o latim, mas também o hebraico, e promoveram a retomada do estudo desses idiomas. (…) Otimista em relação ao mundo, o humanista não ama a erudição confinada nas bibliotecas ou nas clausuras dos mosteiros. Ao contrário do que acontecia na Idade Média – principalmente antes da formação das universidades – o humanista quer desfrutar do livro em companhia do público para o qual ele escreve. A uma concepção teocêntrica, que tem em Deus o centro do universo, opõe-se uma outra, antropocêntrica, que faz do homem o ponto de convergência para o saber. (…) O humanista acredita no homem, sem, entretanto, endossar espiritualmente o paganismo, sem deixar de amar a Deus, procura também amar a vida e a beleza, traços típicos da cultura greco-latina. A Itália foi o berço do humanismo manifestado em Petrarca (1304-1374), sem dúvida o mais conhecido dos humanistas italianos. Nas cortes dos príncipes e dos papas desenvolveu-se o mecenato, que, certamente, explica a quantidade de elogios nos textos dessa época. Ao findar o século XV, Florença, na figura de seu dirigente, Lourenço, o Magnífico, é um poderoso centro humanista. Da Itália, o humanismo espalha-se por toda a Europa. Seu grande mestre, holandês, é Erasmo, monge e teólogo, erudito e pedagogo. Na França, surgem Lefèvre d’Étaples, Guillaume Budé (fundador do ‘Colégio Real’, hoje ‘Collège de France’), Rabelais, erudito e curioso; e, ao findar do século XVI, Montaigne, moralista e cético. Inglaterra, Espanha, Portugal são também tocados pelo humanismo: a UTOPIA, do inglês Thomas Morus, aparece em 1516; no mesmo século, o português Luís de Camões e o espanhol Miguel de Cervantes escrevem duas obras imortais: OS LUSÍADAS e DON QUIXOTE DE LA MANCHA, respectivamente. O movimento humanista encerrou-se, praticamente, ao findar o século XVI. Um novo humanismo surgiria, entretanto, no século XVIII, acentuadamente científico e humanitarista”.

Igualmente, Jean-François Dortier (2010:280):

“Antes de se tornar um termo muito em voga depois da Segunda Guerra Mundial, especialmente no âmbito do existencialismo, o humanismo designa o movimento cultural e social que surge no Renascimento, e ao qual se juntam, por exemplo, Leonardo da Vinci, Erasmo, Rabelais e Montaigne. Redescobre-se a literatura greco-latina, afasta-se a teologia, e a concepção do mundo se reorganiza em torno do homem. O humanismo contemporâneo retoma a fé no homem, mas refere-se mais amplamente a toda posição filosófica que reivindica a preeminência da reflexão sobre o homem e, especialmente, que defende no plano prático a liberdade e a dignidade humanas contra todas as formas de opressão”.

Domício Proença Filho (1969:112, 115 e 116) comentou Os Lusíadas, de Camões. O bardo português cantou “os feitos de armas e os varões ilustres que, saídos das praias de Portugal, enfrentaram o mar desconhecido”:

“‘Pelo espírito de universalidade vinham somar-se novos continentes e novos mares ao mundo relativamente limitado do homem medieval. Pelo espírito de volta à antiguidade, vinham incorporar o mundo antigo ao mundo moderno de então e dele fazer o mesmo modelo para a sociedade que pretendia renascer. Pelo conceito de humanidade, surgia um novo conceito de homem em que a noção de poder, como queria Bacon, iria constituir a expressão representativa da psicologia humana. Foi com o Renascimento que começou, para o Ocidente, o predomínio crescente das ciências naturais, da técnica e da ação, contra o predomínio anterior das ciências especulativas e da vida contemplativa sobre a vida ativa. O homem novo de então vinha trazer ao mundo um novo conceito do homem universal, do homem voltado para as coisas do mundo, da natureza, da vida terrena, da beleza criada, do saber, da cultura, do luxo, do requinte de viver, da aventura das letras humanas separadas ou distintas das letras divinas e voltadas para os modelos pagãos greco-romanos que se chamou de humanismo. Ao teocentrismo medieval se  costuma opor então o antroprocentrismo renascentista. A uma civilização voltada para o céu, sucedeu uma civilização voltada para a terra’ (AMOROSO LIMA, A. ‘Introdução à Literatura Brasileira’, pág. 24)” (grifos no original).

Nesse contexto renascentista, enfim, Cervantes brindou a literatura universal com a sua inigualável novela “Dom Quixote de La Mancha”.

V – Passagens marcantes de “Dom Quixote de La Mancha”

Alonso Quijano e os livros sobre cavalaria

Alonso Quijano era um fidalgo que habitava uma aldeia da Mancha, na Espanha. Não possuía muitos recursos. Viviam em sua casa uma governanta, uma sobrinha e um criado. Tinha aproximadamente cinquenta anos, corpo magro e rosto seco. Era madrugador e gostava de caçar.

Narra Cervantes (“Dom Quixote de La Mancha”, pp. 29-30):

“Este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram os mais do ano), se dava a ler livros de cavalarias, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase de todo do exercício da caça, e até da administração dos seus bens; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino neste ponto, que vendeu muitos trechos de terra de semeadura para comprar livros de cavalarias que ler, com o que juntou em casa quantos pôde apanhar daquele gênero. (…)

“Com estas razões perdia o pobre cavaleiro o juízo, e desvelava-se por entendê-las, e desentranhar-lhes o sentido que nem o próprio Aristóteles o lograria. (…)

“Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites de claro em claro e os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. (…)

“Afinal, rematado já de todo o juízo, deu no mais estranho pensamento em que nunca jamais caiu louco algum do mundo, e foi: parecer-lhe convinhável e necessário, assim para aumento de sua honra própria, como para proveito da república, fazer-se cavaleiro andante, e ir-se por todo o mundo, com as suas armas e cavalo, à cata de aventuras, e exercitar-se em tudo em que tinha lido se exercitavam os da andante cavalaria, desfazendo todo o gênero de agravos, e pondo-se em ocasiões e perigos, donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo nome e fama”.

A armadura

O fidalgo lançou mão de uma enferrujada armadura, que pertencera ao seu bisavô. Depois de limpá-la, notou que o capacete não tinha viseira. Fez uma de papelão. A seguir, pegou a espada e experimentou o gume na viseira improvisada. Ao primeiro golpe, destruiu num instante o que levara uma semana para fazer.

O cavalo Rocinante

O fidalgo pensou em arranjar um cavalo. Havia na cavalariça um animal de aspecto miserável. Batizou-o de Rocinante:

“Pareceu-lhe que nem o Bucéfalo de Alexandre nem o Babieca do Cid tinham que ver com ele” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 30).

Dom Quixote de La Mancha

Não há certeza sobre o verdadeiro sobrenome do fidalgo: Quijano, Quijada, Quesada ou Quexana. No entanto, acrescentou ao seu nome o de sua terra e passou a se chamar Dom Quixote de La Mancha. Em diversas passagens, o personagem é chamado “Cavaleiro da Triste Figura” (“Dom Quixote de La Mancha”, pp. 119, 126 e 144).

A grã-senhora Dulcinéia del Toboso

O fidalgo pretendeu, por fim, ter uma dama a quem, segundo os antigos costumes, pudesse entregar o império do seu coração:

“Foi o caso, conforme se crê, que, num lugar perto do seu, havia certa moça lavradora de muito bom parecer, de quem ele em tempos andara enamorado, ainda que, segundo se entende, ela nunca o soube, nem de tal desconfiou. Chamava-se Aldonça Lourenço; a esta é que a ele pareceu bem dar o título de senhora dos seus pensamentos; e, buscando-lhe nome que não desdissesse muito do que ela tinha, e ao mesmo tempo desse seus ares de princesa e grã-senhora, veio a chamá-la ‘Dulcinéia del Toboso’, por ser El Toboso a aldeia de sua naturalidade; nome este, em seu entender, musical, peregrino, e significativo, como todos os mais que a si e às suas coisas já havia posto. (…)

“Não pode existir cavaleiro andante sem dama, porque tão próprio e natural assenta nos que o são serem enamorados, como no céu ter estrelas. (…)

“O seu nome é Dulcinéia, sua pátria El Toboso, em lugar da Mancha; sua formosura, sobre-humana, pois nela se realizam os impossíveis e quiméricos atributos de formosura que os poetas dão às suas damas; seus cabelos são ouro; a sua testa campos elísios; suas sobrancelhas arcos celestes; seus olhos sóis; suas faces rosas; seus lábios corais; pérolas os seus dentes; alabastro o seu colo; mármore o seu peito; marfim as suas mãos; sua brancura neve; e as partes que à vista humana traz encobertas a honestidade são tais, segundo eu conjeturo, que só a discreta consideração pode encarecê-las, sem poder compará-las” (“Dom Quixote de La Mancha”, pp. 32, 75 e 76).

Partida em busca de aventuras

Numa bela manhã, munido de tudo o que era necessário, envergou a armadura, montou o Rocinante e saiu secretamente ao encontro da primeira aventura:

“Ditosa idade e século ditoso, aquele em que hão de sair à luz as minhas famigeradas façanhas dignas de gravar-se em bronze, esculpir-se em mármores, e pintar-se em painéis para lembrança de todas as idades!” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 33).

A estalagem e a “cerimônia” em que é armado cavaleiro

Decidiu que seria armado cavaleiro pela primeira pessoa que encontrasse. Ao anoitecer, avistou ao longe uma estalagem, em cuja porta estavam “duas mulheres moças, destas que chamam de ‘vida fácil’”. Elas iam para Sevilha com uns arrieiros.

Dom Quixote imaginou que fosse um castelo. Bradou:

“Minhas pompas são as armas,

Meu descanso o pelejar. (…)

“Esta noite na capela deste vosso castelo velarei as armas, e amanhã, como digo, se cumprirá o que tanto desejo, para poder, como se deve, ir por todas as quatro partes do mundo buscar aventuras em proveito dos necessitados, como incumbe à cavalaria e aos cavaleiros andantes, qual eu sou, por inclinação da minha índole” (“Dom Quixote de La Mancha”, pp. 34 e 36).

Em uma cômica cerimônia, com a participação do “governador do castelo” (o estalajadeiro), foi sagrado cavaleiro.

Queima dos livros

Retornando Dom Quixote à aldeia de origem, o cura e o barbeiro, seus amigos, decidiram queimar os livros de cavalaria. Sentenciou o religioso:

“Isso também eu digo, e à fé que não há de passar de amanhã, sem que deles se faça um auto-de-fé, e sejam condenados ao fogo, para não tornarem a dar ocasião, a quem os ler, de fazer o que o meu bom amigo terá feito” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 45).

Sancho Pança

Dom Quixote arregimentou um fiel escudeiro, Sancho Pança, humilde aldeão da região da Mancha. Prometeu torná-lo governador de uma ilha a ser conquistada.

“Ia Sancho Pança sobre o seu jumento como um patriarca, com os seus alforjes e a sua borracha, e com muita ânsia de se ver já governador da ilha que o amo lhe havia prometido (…). Disse então Sancho Pança a seu amo:

– Olhe Vossa Mercê, senhor cavaleiro andante, não se esqueça do que prometeu a respeito da ilha, que lá o governá-la bem, por grande que seja, fica por minha conta. (…)

“Esteja descansado, senhor meu, tenho ânimo, tenho, e mais servindo a um amo tão principal como é Vossa Mercê, que me há de saber dar tudo que me esteja bem, e me couber nas forças” (“Dom Quixote de La Mancha”, pp. 53-54).

Os moinhos de vento

Dom Quixote investiu contra moinhos de vento, “gigantes” imaginários. Após dar uma lançada na vela do moinho, o vento a movimentou com tanta fúria, que fez a lança em pedaços e arrastou cavalo e cavaleiro. Rolaram miseravelmente pelo campo afora:

-Valha-me Deus! – exclamou Sancho. – Não lhe disse eu a Vossa Mercê que reparasse ao que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e que só o podia desconhecer quem dentro na cabeça tivesse outros?

– Cala a boca, amigo Sancho – respondeu Dom Quixote; – as coisas da guerra são de todas as mais sujeitas a contínuas mudanças; o que eu mais creio, e deve ser verdade, é que aquele sábio Frestão, que me roubou os aposentos e os livros, transformou esses gigantes em moinhos, para me falsear a glória de os vencer, tamanha é a inimizade que me tem; mas ao cabo das contas, pouco lhe hão de valer as suas más artes contra a bondade da minha espada. (…)

“Se me não queixo com a dor, é porque aos cavaleiros andantes não é dado lastimarem-se de feridas, ainda que por elas lhes saiam as tripas” (“Dom Quixote de La Mancha”, pp. 55-56).

Bálsamo de Ferrabrás

Dom Quixote se “curava” dos ferimentos com o “bálsamo de Ferrabrás”. Segundo a tradição, o gigante Ferrabrás, personagem da gesta francesa, roubou em Jerusalém dois potes desse medicamento, feito com os perfumes com que foi embalsamado o corpo de Jesus. Tinha a propriedade milagrosa de curar qualquer ferimento instantaneamente. Dizia Dom Quixote a Sancho Pança:

“Uma só gota dele nos pouparia mais tempo e curativos” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 63).

Não obstante, o cavaleiro, ao tomar a “poção milagrosa”, por ele mesmo preparada, vomitou até tombar desfalecido…

Elmo de Mambrino

Dom Quixote pretendia resgatar o “elmo de Mambrino”. Reinaldo de Montalbán tirou a vida de Dardinel de Almante e arrebatou o famoso elmo encantado que sua vítima havia conquistado ao rei mouro Mambrino (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 64).

O fidalgo deparou-se na estrada com um barbeiro, que cavalgava com uma reluzente bacia sobre a cabeça, para se proteger da chuva. Dom Quixote assaltou o barbeiro, para tomar-lhe a bacia, a qual julgava ser o “elmo de Mambrino” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 115).

Alguns filosofares de Dom Quixote

“O exercício que professo não me deixa jornadear de outra maneira. O bom passadio, o regalo e o descanso inventaram-se para os cortesãos mimosos; mas o trabalho, o desassossego e as armas fizeram-se para aqueles que o mundo chama cavaleiros andantes, dos quais eu, ainda que indigno, sou um, e o mínimo de todos” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 73).

“Nas desgraças sempre a ventura deixa uma porta aberta para remédio” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 87).

“Sou um cavaleiro da Mancha chamado Dom Quixote; e é o meu ofício e exercício andar pelo mundo endireitando tortos, e desfazendo agravos” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 105).

“Sancho amigo, hás de saber que eu nasci, por determinação do céu, nesta idade de ferro, para nela ressuscitar a de ouro, ou dourada, como se costuma dizer. Sou eu aquele para quem estão guardados os perigos, as grandes façanhas, e os valorosos feitos” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 107).

“Natural condição de mulheres desdenhar a quem lhes quer, e amar a quem as aborrece” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 110).

A soltura dos presos

Dom Quixote soltou presos, que seguiam para as galés por ordem de el-rei, sob escolta e acorrentados (“Dom Quixote de La Mancha”, pp. 121-128):

“Como quer que seja, esta gente, ainda que os levam, vai à força, e não por sua vontade. (…) Pois sendo assim, aqui está onde acerta à própria o cumprimento do meu ofício; desfazer violências e dar socorro e auxílio a miseráveis (…)

“Façam favor de vos desacorrentar e deixar-vos ir em paz; não faltarão outros, que sirvam a el-rei com maior razão; porque dura coisa me parece o fazerem-se escravos indivíduos que Deus e a natureza fizeram livres; quanto mais, senhores guardas – acrescentou Dom Quixote – , que estes pobres nada fizeram contra vós outros; cada qual lá se avenha com o seu pecado. Lá em cima está Deus, que se não descuida de castigar ao mau e premiar ao bom; e não é bem que os homens honrados se façam verdugos dos seus semelhantes, demais sem proveito”.

Os guardas fugiram assustados. Os presos livraram-se das correntes e se libertaram. Mas Dom Quixote queria uma retribuição dos recém-libertos:

“De gente bem nascida é próprio – lhes disse o cavaleiro – agradecer os benefícios recebidos; e um dos pecados que mais ofendem o Altíssimo é a ingratidão. (…) Em paga do que queria e é minha vontade que carregando com essa cadeia que dos vossos pescoços tirei, vos ponhais para logo a caminho, e vades à cidade de El Toboso, e ali vos apresenteis perante a Senhora Dulcinéia, e lhe digais que o seu cavaleiro, o da Triste Figura, lhe manda muito saudar, e lhe conteis ponto por ponto toda esta minha famosa aventura, com que vos restituí à desejada liberdade. Feito isso, podeis vós ir para onde vos aprouver, e boa fortuna vos desejo”.

Com a recusa dos libertos, Dom Quixote dirigiu-lhes impropérios:

“Retirando-se à parte começaram a chover tantas pedradas sobre Dom Quixote, que poucas lhe eram as mãos para se cobrir com a rodela”.

Furtaram, ainda, o asno de Sancho Pança, que, condoído, pouco antes havia dado esmola a um dos presos.

A penitência

Sancho Pança foi em busca de Dulcinéia, a quem entregaria uma carta de seu amo. O escudeiro partiu, esquecido de levar a missiva. Deparou-se, no caminho, com o barbeiro e o cura, amigos de Dom Quixote:

“Meu amo ficou a fazer penitência no meio desta montanha, muito por sua vontade” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 150).

Sancho reencontra o asno

Sancho Pança reencontrou o asno, furtado por um dos prisioneiros libertados por Dom Quixote:

“Saltou Sancho aos abraços ao animal, dizendo:

– Como tens passado, meu bem, menina dos meus olhos, meu ruço, meu companheiro fiel?

“Beijava-o e acariciava-o como se fora gente. O asno deixava-se beijar e acarinhar, sem responder meia palavra. Aproximaram-se todos, dando ao pobre homem os parabéns de ter achado o seu ruço, especialmente Dom Quixote” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 180).

Batalha contra odres de vinho

O barbeiro e o cura queriam levar o amigo fidalgo de volta à aldeia de origem. Iludiram-no com a história ardilosa de que iriam salvar a Rainha Micomicona, capturada por um gigante. Dom Quixote, de novo hospedado na venda que confundia com castelo, travou grande e descomunal batalha com alguns odres de vinho tinto:

“Dêem cabo de mim – exclamou o vendeiro – se Dom Quixote ou Dom Diabo não deu alguma cutilada em alguns dos odres do tinto que lhe estavam cheios à cabeceira. Aposto que não é senão o meu vinho o que se figurou sangue a este palerma.

“Assim dizendo, entrou no aposento com todos atrás de si, e acharam a Dom Quixote no mais extravagante vestuário do mundo: estava em camisa, que não era tão comprida que por diante lhe cobrisse inteiramente as coxas, e por detrás faltavam seis dedos. As pernas eram muito compridas e fracas, cheias de felpa, e nada limpas. Tinha na cabeça um barretinho vermelho e surrado pertencente ao vendeiro; no braço esquerdo enrodilhada a manta da cama, a que Sancho tinha ojeriza por motivos que ele muito bem sabia; e na direita floreava a espada nua, atirando cutiladas para todas as bandas, dando vozes como se realmente estivera pelejando com algum gigantes. E o bonito era que estava com os olhos fechados, porque realmente dormia sonhando andar em batalha com o gigante. Tão intensa havia sido a apreensão da aventura que ia acabar, que o fez sonhar achar-se já no reino de Micomicão e a braços com o seu adversário; e tantas cutiladas tinha assentado nos odres, supondo descarregá-las no gigante, que todo o quarto era um lagar de vinho” (“Dom Quixote de La Mancha”, pp. 211-212).

O retorno à aldeia de origem e o fim do Dom Quixote

Frustrado o ardil do salvamento da Rainha Micomicona, o cura e o barbeiro atraíram Dom Quixote para uma jaula de paus encruzados, com a qual o levaram à aldeia de origem.

Dom Quixote, acompanhado pelo fiel Sancho Pança, empreendeu uma terceira fuga e se meteu em novas aventuras, até que finalmente retornou à sua aldeia.

No leito de morte, acompanhado pelos amigos, a sobrinha e a governanta, ditava seu testamento a um testamenteiro (“Dom Quixote de La Mancha”, pp. 275 e seguintes).

“Sinto-me, sobrinha, à hora da morte; quereria passá-la de modo que mostrasse não ter sido tão má a minha vida que deixasse renome de louco, pois, apesar de o ter sido, não quereria confirmar essa verdade expirando. (…)

“Dai-me alvíssaras, bons senhores, que já não sou Dom Quixote de la Mancha, mas sim Alonso Quijano, que adquiri pelos meus costumes o apelido de ‘Bom’. (…) Já me são odiosas todas as histórias profanas de cavalaria andante; já conheço minha necedade e o perigo em que me pôs o tê-las lido; já por misericórdia de Deus, e bem escarmentado, as abomino” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 601).

“Voltando-se para Sancho, disse-lhe:

– Perdoa-me, amigo, o haver dado ocasião de pareceres doido como eu, fazendo-te cair no erro, em que eu caí, de pensar que houve e há cavaleiros andantes no mundo.

– Ai! – respondeu Sancho Pança, chorando – não morra Vossa Mercê, senhor meu amo, mas tome o meu conselho e viva muitos anos, porque a maior loucura que pode fazer um homem nesta vida é deixar-se morrer sem mais nem mais, sem ninguém nos matar, nem darem cabo de nós outras mãos que não sejam as da melancolia. (…)

– Senhores – acudiu Dom Quixote -, deixemo-nos dessas coisas; o que foi já não é; fui louco e estou hoje em meu juízo; fui Dom Quixote de la Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano, o Bom” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 602).

“Dom Quixote (….), entre os suspiros e lágrimas dos que ali estavam, deu a alma a Deus: quero dizer, morreu. (…)

“Não trasladamos para aqui nem os prantos de Sancho, da sobrinha e da ama de Dom Quixote, nem os novos epitáfios da sua sepultura, ainda que Sansão Carrasco lhe fez o seguinte:

Aqui jaz quem teve a sorte

De ser tão valente e forte,

Que o seu cantor alegou

Que a morte não triunfou

Da sua vida coa sua morte

Foi grande a sua bravura,

Teve todo o mundo em pouco,

E na final conjuntura

Morreu: vejam que ventura,

Com siso vivendo louco!” (“Dom Quixote de La Mancha”, p. 603).

VI – Fé e liberdade

Já tive oportunidade de refletir sobre a dificuldade de se sustentar uma fé (GARCIA DE LIMA, Fé e liberdade, 2009). Somos extremamente vulneráveis às tentações mundanas. Os primeiros cristãos, porque pregavam a justiça e a fraternidade, sofreram perseguições e massacres dos poderosos de então.

Tortuoso também é o caminho daqueles que cultivam a fé política.  Sir Bertrand Russel, um dos maiores filósofos do século 20, escreveu o famoso ensaio Caminhos para a liberdade (Companhia Editora Nacional, 1955, pp. 19-20). Segundo Russel, desde Platão os pensadores formulam utopias e preconizam o mundo ideal para mitigar os sofrimentos do homem. O objetivo desses homens notáveis não é o progresso pessoal. Expressam a esperança de pensadores solitários, enquanto a maioria dos seres humanos passa pela vida sem se preocupar com o sofrimento dos semelhantes. Os líderes políticos, que buscam pôr em prática as idéias desses filósofos, são igualmente solitários. Quase sempre as massas de indivíduos os ignoram, pois estão sufocadas pela labuta diária e temem represálias dos detentores do poder.

Da mesma maneira, a utopia da justiça requer pessoas de fé. No mundo contemporâneo, a fé jurídica exige alta dose de coragem. Vivemos o apogeu do individualismo, apregoado pelo renovado liberalismo econômico.

Pensadores e juristas dotados de visão social são desqualificados como ultrapassados e descompromissados com a “governabilidade” do país.  A consciência da justiça social é retribuída com achincalhe.

No entanto, os juízes não desenvolvem atividade discricionária e neutra. Devem atuar inspirados pelas regras e princípios adotados, implícita ou explicitamente, pelo sistema jurídico do Estado Democrático de Direito. A Constituição de 1988 espera dos julgadores, aos quais garante independência institucional e funcional, a utilização da liberdade de julgar para a realização dos valores por ela abraçados. Por isso, todo magistrado tem responsabilidade social (AGUIAR JÚNIOR, Revista dos Tribunais, 751/35-50).

O saudoso filósofo, jurista e político André Franco Montoro (1997:13-26), assinalava o intento de se construir um mundo sem ética. Todavia, essa ilusão se transforma em desespero. No campo do direito, da economia, da política, da ciência e da tecnologia, as grandes expectativas de um sucesso pretensamente neutro, alheio aos valores éticos e humanos, têm resultado desalentador e muitas vezes trágico.

A caminhada é árdua, mas os cidadãos e a comunidade jurídica não podem esmorecer. Recordarão sempre a máxima de Fiódor Dostoiévski, no clássico romance Os Irmãos Karamázovi: “Crê até o fim, mesmo que todos os homens se hajam desviado e tenhas ficado fiel sozinho; leva então tua oferenda e louva a Deus, por teres sido o único a manter a fé”.

VII– Quixotes de toga

Ao enlouquecer por excesso de leitura de romances de cavalaria, Dom Quixote tornou-se a mais bela metáfora do esforço humano para buscar o impossível equilíbrio entre sonho e realidade (FRENETTE, Cavaleiro da condição humana).

Juízes são quixotescos quando querem salvar o mundo. Isso é extraordinário, observaria San Tiago Dantas. Ridículo seria se considerarem os salvadores do mundo.

Com a licença do ministro Carlos Velloso, ao seu herói Dom Quixote calha o papel de herói da magistratura brasileira.

Os magistrados trazemos na alma a quimera do “Cavaleiro da Triste Figura”. A toga é nossa “armadura” e a caneta é nossa “lança”. Dramaticamente solitários, como observava Piero Calamandrei (Eles, os Juízes…, p. 172), não temos um fiel Sancho Pança por escudeiro.

“Togados da Triste Figura”, montamos o Rocinante das carências materiais, vagamos pelas comarcas e galgamos entrâncias e instâncias.

Recordamos Sísifo, o lendário rei de Corinto. Pelas iniquidades que praticou na terra, foi condenado a rolar, até o topo de uma colina, enorme pedra. Quando a pedra atingia o ponto mais alto, rolava novamente para baixo. Tinha de recomeçar a pesada tarefa e sua punição se tornou eterna (HARVEY, 1987:466).

Já refletimos sobre o papel do Poder Judiciário no Terceiro Milênio (GARCIA DE LIMA, 2003:15). Durante todo o século XIX, houve o predomínio do Poder Legislativo sobre o Poder Executivo. Era preciso consolidar o princípio da legalidade, apanágio das democracias liberais. Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei. Todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido. O governante atuará submetido à Constituição e às leis elaboradas pelos representantes dos cidadãos.

O século XX foi o século das Grandes Guerras e das crises econômicas. Fez-se necessária a intervenção do Estado na ordem econômica e social. O Poder Executivo concentrou poderes: em situações emergenciais, poderá legislar mediante instrumentos decretos-leis, medidas provisórias e congêneres.

Se o século XIX foi do Legislativo e o século XX foi do Executivo, o século XXI será do Judiciário. Na nova centúria, o Poder Judiciário conciliará os atritos emergentes entre os demais Poderes constituídos. Viveremos, outrossim, a “Era dos Direitos”, a que se referiu Norberto Bobbio (1996). Além da liberdade individual e da propriedade, estarão garantidos direitos mais abrangentes. Dentre outros, direitos à cidadania, à dignidade, à justiça social, ao meio-ambiente saudável, ao consumo sustentável etc.

Moinhos de vento. Perdemos o juízo? Ou nunca tivemos? Vale até o duplo sentido…

Bibliografia ___________________________________________________________________

AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Responsabilidade Política e Social dos Juízes nas Democracias Modernas. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, volume 751, maio de 1998, p. 35-50.

AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário de Nomes, Termos e Conceitos Históricos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

BERNARDO, Gustavo. Machado de la Mancha contra o gigante do realismo, texto apresentado no Seminário Machado de Assis da PUC-RJ em 03/09/2008; disponível em http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a301.htm, 26.12.2011.

BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva, trad. Marcos Santarrita, 2010.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, tradução de Carlos Nelson Coutinho, 1996.

CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, Vistos por Nós, os Advogados. Lisboa: Livraria Clássica Editora, trad. Ary dos Santos, 7ª ed., sem data.

CARPEAUX, Otto Maria. Tendências Contemporâneas na Literatura. Rio de Janeiro: Ediouro, sem data.

CRUZ, Ana Aparecida Teixeira da. Dimensões da loucura nas obras de Miguel de Cervantes e Lima Barreto: “Don Quijote de la Mancha”e “Triste fim de Policarpo Quaresma”, dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2009, disponível em http://pandora.cisc.usp.br/teses/disponiveis/8/8145/tde-02022010-170141/publico/ANA_APARECIDA_T_DA_CRUZ.pdf, 26.12.2011.

DACANAL, José Hildebrando. Um coloninho lê “Grandes Sertões: Veredas”; disponível em http://seer.uniritter.edu.br/index.php/nonada/article/viewPDFInterstitial/51/24, 26.12.2011.

DOREN, Charles Van. Breve historia del saber – La cultura al alcance de todos. Barcelona: Editorial Planeta, trad. Claudia Casanova, 2009.

DORTIER, Jean-François. Dicionário de Ciências Humanas. São Paulo: Martins Fontes, trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar (coord.), 2010.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Irmãos Karamázovi. Rio de Janeiro: Ediouro, trad. Natália Nunes e Oscar Mendes, sem data.

Enciclopédia Barsa. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica Editores Ltda., vol. 4, 1969, pp. 202-203.

GARCIA DE LIMA, Rogério Medeiros. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora RT, 2003.

_______________________________. Fé e liberdade. São João del-Rei-MG: Revista da Academia de Letras de São João del-Rei, Ano III, nº 3, 2009, pp. 229-230.

FRENETTE, Marco. Cavaleiro da condição humana; disponível em: http://www.revistaforum.com.br/conteudo/detalhe_materia.php?codMateria=5153/cavaleiro-da-condicao-humana, captado em 26.12.2011.

HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica Grega e Latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, trad. Mário da Gama Cury, 1987.

JUNQUEIRA, Ivan. Cervantes e a Literatura Brasileira. Conferência sobre Cervantes, disponível no portal da Academia Brasileira de Letras, http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=4534&sid=338, captado em 26.12.2011.

MACY, John. História da Literatura Mundial. São Paulo: Companhia Editora Nacional, trad. Monteiro Lobato, 5ª ed., 1967.

MONTORO, André Franco Montoro. Retorno à Ética na Virada do Século, in Ética na Virada do Século. São Paulo: Editora LTR, coord. Maria Luiza Marcílio e Ernesto Lopes Ramos, 1997, pp. 13-26.

NOGARE, Pedro Dalle. Humanismos e Anti-Humanismos: Introdução à Antropologia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 6ª ed., 1981.

Novo Dicionário Brasileiro Melhoramentos. São Paulo: Melhoramentos, org. Adalberto Prado e Silva, 2ª ed., 4 vols., 1964.

PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de Época na Literatura. Rio de Janeiro: Liceu, 2ª ed., 1969.

RUSSEL, Bertrand. Caminhos para a liberdade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, sem referência ao tradutor, 1955.

SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. Dom Quixote de La Mancha. São Paulo: Abril Cultural, trad. Viscondes de Castilhos e Azevedo, 1981.

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Orpheu Santos Salles, Quixote do Século XXI. Rio de Janeiro: revista Justiça & Cidadania, novembro 2011, p. 8.