Edição 288
Reengenharia da Polícia Civil
5 de agosto de 2024
Luiz Augusto de Salles Vieira Desembargador do TJSP
Ao comunicar um fato criminoso à autoridade policial, sem elaboração do boletim de ocorrência, exerce-se uma competência superior à do Supremo Tribunal Federal. Sem a necessária investigação, denúncia e julgamento, fica impossibilitada a interposição de recursos inclusive aos tribunais superiores. Cria-se, à vista do exposto, o “nada jurídico”, motivado pela omissão e pela prevaricação da autoridade policial. Esse exemplo revela que o delegado
de polícia, tal qual o promotor de justiça e o juíz de direito, exerce função essencial à Justiça. Podemos sustentar que o delegado de polícia é um juiz de investigação e instrução, o promotor de justiça é um juiz de acusação e o juiz de direito é um juiz de decisão.
É sabido que o juiz de direito é um agente do poder político do Estado, integrante do Poder Judiciário, um dos poderes da República. Instituição bem-organizada e estruturada, cujos direitos, deveres e garantias estão expressos na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Seus integrantes são titulares das garantias da inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos e vitaliciedade.
Entre os órgãos do Poder Judiciário, há o Conselho Nacional de Justiça, com membros de diversas instituições e representantes da sociedade que exercem o controle administrativo sobre seus integrantes, nomeados pelas respectivas instituições e alguns pelo Presidente da República, conforme artigo 103-B da Constituição Federal. Têm, ainda, a faculdade de organizar anualmente o seu próprio orçamento,
o qual é enviado ao chefe do Poder Executivo, e de eleger por meio dos desembargadores o presidente do Tribunal de Justiça. Cônscios, também, de que o promotor de justiça, parte no processo criminal, fiscal
da lei e titular da ação penal pública, membro do Ministério Público, tal qual o Poder Judiciário, está bem-organizado e estruturado. É considerado na Constituição Federal como função essencial à Justiça e possui os mesmos direitos, deveres e garantias da Magistratura. Não está vinculado aos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo, a ponto de ser considerado como um quarto poder da República.
Tal qual a Magistratura, tem sua Lei Orgânica do Ministério Público e o seu Conselho Nacional do Ministério Público, podendo, ainda, organizar o seu orçamento anual, como o Judiciário, e indicar, em lista tríplice, o seu chefe ao Poder Executivo, que nomeará o procurador-geral de justiça, em nível estadual, e o procurador-geral da república, em nível federal. Ambas instituições estão, portanto, bem organizadas e estruturadas, praticamente imunes à influência política ou ao menos preparadas e em condições de enfrentar eventual nefasta influência interna e externa. Suas autoridades, exceto por um desvio de conduta, na prática de atos, deixarão de agir em conformidade com a Constituição Federal e as leis vigentes.
Apesar da importância da Polícia Civil na condução do inquérito policial, ela não está bem organizada e estruturada. Trata-se de uma instituição encarregada da investigação criminal, possuidora de funções típicas de Estado, essenciais à Justiça criminal, imprescindíveis à segurança pública e à garantia dos direitos fundamentais no âmbito da investigação criminal, conforme artigo 1o da recente Lei Orgânica da Polícia Civil (Lei no 14.735 de 2023), que dispõe sobre suas normas gerais de funcionamento e dá outras providências, sendo possuidora, inclusive, de um Conselho Nacional da Polícia Civil, sem decreto regulamentador. No entanto, a Polícia Civil, no seu formato atual, é um órgão do Poder Executivo, sujeita à influência política. Seus delegados de polícia, responsáveis pela presidência do inquérito policial e pela polícia judiciária, não possuem um lugar apropriado na Constituição Federal, com as necessárias garantias a sua relevante missão.
Embora já tenham uma Lei Orgânica da Polícia Civil, como esclarecido acima, não têm o poder de organizar o seu orçamento e de indicar o seu chefe ao Poder Executivo, no caso da Polícia Civil Estadual; e seus integrantes, como é sabido, não são titulares das garantias da inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos e vitaliciedade.
Embora a Polícia Civil, ao investigar a prática de crimes, tenha por finalidade que os indiciados sejam denunciados pelo Ministério Público e julgados pelo Poder Judiciário, ela continua vinculada ao Poder Executivo, órgão político por excelência, tal qual o Poder Legislativo, como se órgão de segurança ostensiva e preventiva fosse. A Polícia Civil, vista sob o prisma patrimonial, não possui as necessárias condições materiais para desenvolver sua atividade, como fóruns e prédios do Ministério Público. Suas autoridades e seus funcionários não são remunerados de forma adequada. Somente com a Lei Orgânica da Polícia Civil conseguiram dar uma melhor proteção aos aposentados. Em face da precariedade da remuneração na instituição, muitos de seus funcionários e autoridades cumulam a função de policial com outras atividades, o que é vedado pela lei e representa grave distorção funcional, que redunda no aprofundamento do desprestígio da instituição.
Ainda não possui, outrossim, um serviço de inteligência, tecnológico, técnico e científico eficiente e eficaz. Enquanto apenas a partir da decisão de um órgão especial do Poder Judiciário ou do Ministério Público um juiz de direito ou um promotor de justiça pode ser removido, a decisão de um superior hierárquico, na Polícia Civil, pode remover uma autoridade policial, em face dela não estar protegida pela inamovibilidade. Ante a garantia constitucional da irredutibilidade dos vencimentos, de juízes de direito e promotores de justiça, seus subsídios são fixados em valores expressivos, em face da nossa realidade social. Isso sem falar no fato de que os subsídios do ministro do STF e do procurador-geral da República balizam o teto do salário do funcionalismo.
Como a Polícia Civil e seus funcionários, notadamente a Estadual, não possuem a referida garantia da irredutibilidade de vencimentos, recebem salários bem inferiores. No tocante à vitaliciedade, como também não a possui, seus funcionários podem ser demitidos em face de um processo administrativo, enquanto juízes e promotores públicos somente perdem o cargo em virtude de uma decisão judicial. É possível falar sem receio de errar: o Poder Legislativo Federal, ao manter a atual organização Constitucional e Institucional da Polícia Civil, principalmente a Estadual, está contribuindo para a impunidade, a insegurança e o desprestígio do Poder Judiciário e do Ministério Público e a consagração da hipertrofia do Poder Executivo.
Sob a égide do Direito Processual Penal, é, em verdade, uma autoridade que tem poderes restritos considerando-se a importância da sua função. Tendo em vista que o delegado de polícia, responsável pela investigação criminal, é, na sua essência, um juiz de investigação e instrução, é razoável concluir que não existe independência constitucional e institucional entre os poderes do Estado.
Como sustentar a independência entre os Poderes do Estado, se a Polícia Civil, órgão essencial à Justiça, responsável pela elaboração do inquérito policial, exercendo a função de polícia judiciária e sendo responsável pela segurança repressiva, é um órgão do Poder Executivo? A exceção, dentro da Polícia Civil, em termos organizacionais e estruturais, é a Polícia Federal, uma vez que passou a ter a prerrogativa de indicar o chefe da instituição e, ainda, a ser bem remunerada. Seus funcionários, no entanto, não são igualmente valorizados, e este fato resulta obviamente em problemas internos na instituição. O desrespeito à isonomia, quando comparamos a estrutura da Polícia Estadual com a da Federal, é um fato flagrante e o problema não vem sendo enfrentado pelo Poder Legislativo. Apesar do aparente sucesso da Operação Lava Jato e de outras que a antecederam, como a do Mensalão, é evidente que a Polícia Federal não tem a necessária independência e isenção, ora estando sob a influência de juízes e promotores, ora sob a influência do Ministério da Justiça. Igual fato ocorre no âmbito Estadual. Sob a minha ótica e a de profissionais da área jurídica, a Polícia Civil, Estadual e Federal, carece de profunda reforma.
Imbróglio jurídico – A Constituição Federal de 1988, no Título V, trata da “Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”, e no Capítulo III, trata “Da Segurança Pública”, dispondo no artigo 144 que: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I- polícia federal; II- polícia rodoviária federal; III- polícia ferroviária federal; IV- polícias civis; V- polícias militares e corpos de bombeiros militares”.
Conclusão – A leitura dos incisos I a IV e seus parágrafos, do art. 144 da Constituição Federal, leva à conclusão de que as Polícias Civis Federal e Estadual destinam-se à atividade de polícia judiciária e repressiva, enquanto que as demais instituições policiais federais, denominadas marítimas, aeroportuárias e de fronteiras, rodoviárias e ferroviárias, destinam-se à atividade de polícia preventiva, ostensiva e de auxílio das Forças Armadas, tais como a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros, inclusive as Guardas Municipais.
A Polícia Federal, subvertendo suas atribuições de polícia judiciária e repressiva, assume atribuições de polícia preventiva e ostensiva. Inconcebível que as Polícias Civis, Estadual e Federal, sejam consideradas, pela Constituição Federal, como órgão de segurança repressivo e ostensivo, vinculadas ao Poder Executivo e às Forças Armadas. É necessário, portanto, criar normas no âmbito constitucional, no sentido de que a Polícia Civil Federal e Estadual, ou seja, Nacional, tenha uma função essencial à Justiça, da mesma forma que o Ministério Público, a Advocacia Pública, a Defensoria Pública, passando a figurar no Título IV, Capítulo IV, da CF, que trata “Da Organização dos Poderes” e “Das Funções Essenciais à Justiça”. Mantêm-se no artigo 144 da Carta Magna apenas aquelas que na sua essência apresentam a natureza de polícia preventiva e ostensiva.
Tal qual o MP, a Polícia Civil, Estadual e Federal, poderá indicar o seu representante ao Poder Executivo, possuir Órgão Especial e um Conselho Nacional com novo formato e garantias constitucionais. Esse novo modelo dará margem a que as investigações sejam efetuadas sem interferência política em nível Estadual e Federal, por uma Polícia Civil Nacional. Teremos, assim, uma Justiça, Estadual e Federal, um Ministério Público, Estadual e Federal, e uma Polícia Civil, Estadual e Federal, órgãos todos isentos e independentes, trabalhando para o combate à criminalidade, sem influência política ou melhor estruturados para afastar a sua nefasta influência.
NOTAS_________________
1 Segundo Francisco Sannini, Delegado de Polícia/SP, em artigo intitulado Delegado de polícia: O juiz da fase pré-processual, – O Delegado de Polícia exerce papel crucial na fase pré-processual, possuindo, em certos casos, funções judiciais atípicas como a decretação da prisão em flagrante ou a concessão de liberdade provisória mediante fiança em crimes cuja pena seja inferior a 4 (quatro) anos.
2 No artigo Juiz Agente Político? Uma análise da Evolução do Constitucionalismo Moderno e suas influências sobre o ativismo judicial, Hely Lopes Meirelles e o Supremo Tribunal Federal, conforme análise de sua jurisprudência, defendem a posição de que os juízes são agentes políticos. Celso Antônio Bandeira de Mello, José dos Santos Carvalho Filho e Maria Sylvia Zanella di Pietro afirmam que eles são servidores públicos.
3 Conforme a Wikipedia, o Ministério Público é um organismo público, geralmente estatal, ao qual se atribui, dentro de um Estado de direito democrático, a representação dos interesses da sociedade mediante o exercício das faculdades de direção da investigação dos fatos que revestem os caracteres de delito, de proteção às vítimas e testemunhas, e de titularidade e sustento da ação penal pública. Quanto à sua posição institucional, o Ministério Público, no Brasil, encontra-se “Independente dos poderes do Estado, entendendo-se como um órgão que não responde ante nenhum dos poderes clássicos em qualidade de subordinado hierarquicamente”.
4 Garantias Institucionais do Delegado de Polícia e o Exercício da Soberania Estatal. Coordenador. Luiz Carlos de Almeida. Delegado de Polícia. Sindpesp. Letras Jurídicas. Sumário. 1.Leonardo Duque Barbabela. Promotor de Justiça. Delegado de Polícia e Autoridade do Estado. Pag. 31: “Qualquer movimento ou tentativa no sentido de estender as atribuições, ou mesmo a denominação da elevada função de “Autoridade Policial”, exclusiva do Delegado de Polícia, a outros cargos de instituição policial configura violação dos princípios republicano e democrático que regem o país, caracteriza violação da natureza filosófica do cargo de “autoridade estatal”, e provoca grave desorganização da Administração Pública e danos irreparáveis à garantia da segurança pública”.
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