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Reflexões sobre o ensino e a pesquisa jurídica no Brasil

16 de setembro de 2015

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Lier1. O ensino jurídico no Brasil

Os cursos de direito no Brasil foram criados por força da Lei Imperial de 11/8/1827, assumindo de imediato duas funções básicas: a) integrar ideologicamente o novel Estado brasileiro, pela síntese do liberalismo exarado particularmente por França, Inglaterra e Estados Unidos da América; e b) formar a burocracia encarregada de gerir esse mesmo Estado, sob a égide da interpretação nacional do liberalismo euro-americano. Essa dupla função, originalmente expressa pelas Universidades de Olinda (deslocada para Recife, em 1854) e São Paulo, esteve desde sempre presente no ensino jurídico brasileiro. 

Na materialização dessas funções, pode-se afirmar que, em seus primórdios, as universidades pernambucana e paulista cumpriam tarefas diferentes. A Escola do Recife, instalada no convento de São Bento, pela forte influência humanística que recebera, esposava uma visão mais ampla do Brasil, privilegiando a “questão nacional” sobre os “particularismos provincianos”. Já a Escola Paulista, que ocupou o velho convento do Largo de São Francisco, teve sempre um caráter mais pragmático, centrado na reflexão e na militância política burguesas, adaptando pragmaticamente o humanismo jurídico aos interesses dos setores agroexportadores e industriais. Dessa forma, analisar as origens do ensino jurídico no Brasil é compreender a formação do próprio Estado brasileiro, já que ser bacharel em direito significava, ao mesmo tempo, apropriar-se da cultura jurídica, acadêmica, e credenciar-se para o exercício de prestigiosas funções na burocracia civil-estatal. Em outras palavras, o acesso às faculdades de Direito era uma fonte segura de poder político e elevado prestígio social. 

Ao longo do século XX, o caráter pragmático do ensino jurídico vai progressivamente impondo-se à dimensão humanista. Tal se deu tanto por uma exegese assaz monolítica do positivismo jurídico, de matriz kelseneana, quanto pelos diferentes compromissos políticos e ideológicos assumidos entre a Academia Jurídica e o projeto de modernização conservadora do Brasil, originalmente implementada por Vargas a partir dos anos 1930. Nesse sentido, em especial a partir dos anos 1970, o ensino jurídico entra em uma fase de decadência humanista e técnica, diretamente proporcional à sua progressiva expansão, particularmente no que se refere ao ensino privado. Como consequência, hoje o ensino jurídico brasileiro acha-se comprometido por três diferentes crises: a) científico-ideológica, relacionada ao descolamento entre teoria e prática; b) político-institucional, atinente à imensa plasticidade do Direito, aparentemente moldável a qualquer interesse presente na sociedade; e c) teórico-metodológica, concernente à (des)integração entre ensino, pesquisa e extensão. Nesse contexto, a precária qualidade do ensino jurídico tem as seguintes razões principais: a) despreparo dos estudantes provenientes do ensino médio; b) massificação do ingresso nas faculdades; c) baixa profissionalização dos profissionais do magistério jurídico; e d) supervalorização das carreiras de Estado, o que conduz ao direcionamento para o ensino superior não como vocação, mas como caminho mais curto para uma inserção qualificada no mercado de trabalho.

2. A pesquisa jurídica no Brasil

A implementação da pesquisa jurídica no Brasil veio a reboque de uma política de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) implantada entre os anos 1960 e 1970, e da quais o Parecer/CFE no 977/1965 é um dos marcos referenciais mais importantes. Noutros campos de conhecimento, como o das Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia e Ciência Política), os programas de pós-graduação foram fator preponderante para o crescimento expressivo da pesquisa científica. Tal não ocorreu em relação ao Direito. Nas Ciências Jurídicas (com raríssimas exceções) a pós-graduação cresceu sem estar organicamente articulada com a investigação científica e como o ensino jurídico em nível de graduação. Por evidente, essa desarticulação está diretamente relacionada ao fato de que, no Brasil, a pesquisa jurídica pleiteou uma autonomia científico-metodológica absolutamente insustentável, e somente explicada pela expressão política e social inerente à própria história do ensino jurídico no País. Assim, tolhida por uma interpretação restritiva do positivismo jurídico e pela própria autonomia científica do Direito, idealmente reivindicada pelo positivismo, a pesquisa jurídica restou adstrita aos aspectos meramente formais do mundo jurídico. 

De fato, entre os anos 1970 e 1990, a pesquisa jurídica foi, de certa forma, realizada como se a Ciência Jurídica pudesse efetivamente operar metodologias e técnicas de pesquisas absolutamente diferentes daquelas desenvolvidas no campo mais amplo das Ciências Sociais. Dessa forma, a pesquisa jurídica operada em nível de pós-graduação pouco avançava em relação ao levantamento de legislações para a elaboração de pareceres técnicos, argumentos utilizados no contencioso ou tão somente como suporte para novas produções legislativas. Essa perspectiva, embora obsoleta, foi dominante no período em tela e, ainda hoje, prepondera nas pós-graduações em Direito no Brasil, prejudicando a busca por alternativas reais que apontem na direção de novos horizontes investigativos, bem como de novas técnicas e procedimentos teórico-metodológicos.

Nas últimas duas décadas, contudo, profissionais como José Ribas Vieira, Werneck Vianna, Roberto Kant de Lima e Aurélio Wander Bastos têm contribuído para oxigenar a pesquisa jurídica no Brasil. Partindo da perspectiva de que a realidade jurídica não é um objeto exclusivo da Ciência do Direito, esses pesquisadores granjearam forte legitimidade acadêmica operando metodologias típicas das Ciências Sociais em temas historicamente adstritos ao Direito. Dessa forma, questões antes limitadas ao universo jurídico, como a eficácia das decisões judiciais e a efetividade das normas jurídicas, passaram progressivamente a ser pesquisadas por profissionais que, egressos ou não das faculdades de Direito, lograram avançar sobre a incipiente metodologia jurídica praticada no Brasil e aplicar, verbi gratia, técnicas de investigação empírica egressas da Sociologia e da Antropologia. Outra contribuição essencial desses pesquisadores foi fraturar o protagonismo que o Estado e seus agentes (magistrados, burocratas etc.), bem como os advogados, tinham sobre a pesquisa jurídica. Dessa forma, concorreram não apenas para a valorização profissional do magistério jurídico, mas, fundamentalmente, propiciaram real autonomia investigativa para toda uma nova geração de profissionais que articulam, em seu exercício profissional no Direito, ensino, pesquisa e extensão.

3. Considerações finais

Essa necessária articulação entre ensino, pesquisa e extensão define, ainda que indiretamente, uma pauta para a pesquisa jurídica nos próximos anos. Em nível do seu conteúdo substancial, essa pauta é composta por elementos como: a) definição do real sentido da pesquisa jurídica; b) aprofundamento do diálogo entre o Direito e as Ciências Sociais; e c) ampliação da contribuição que os programas de mestrado e doutorado (particularmente em Direito) devem dar ao ensino jurídico, ou seja, para as graduações em Direito. Outrossim, do ponto de vista material, destacam-se temas como: a) Teoria do Direito; b) Violência e Conflitos Sociais; c) Administração da Justiça; e d) Judicialização da Política e Politização do Direito. 

A definição dessa pauta enseja questão primordial para as presentes considerações finais: como melhorar o ensino jurídico? Parece não haver outro caminho que não o aperfeiçoamento da regulação pública; a aproximação sistemática entre órgãos estatais e societais, bem como o aprofundamento da pesquisa jurídica, inclusive com sua progressiva expansão para os cursos de graduação em Direito. Só assim poderemos superar as expressões mais vetustas do pragmatismo positivista e, quiçá, resgatar o caráter humanista, emancipador, que, por um tempo, certamente animou
alguns dos pioneiros do ensino jurídico no Brasil.