Reforma do Judiciário, esta rota é segura?

5 de abril de 2004

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A matéria ganhou grande destaque nos últimos dias, mas ainda se mostra distante das preocupações cotidianas da maioria esmagadora da nossa população. Ou seja, não se tornou um tema popular e prioritário, como deveria ser. Incluído na recente convocação extraordinária do Congresso Nacional, quando já tramita no Legislativo ha cerca de 12 anos, surgiu agora a idéia de sua aprovação fatiada, incluindo primeiramente as questões consensuais. Ainda que diante do alheiamento popular pudesse valer a velha indagação: consensuais para quem, cara-pálida? Uma idéia fundamental seria a amplia<;:ao dos participantes do debate, chamando a integrá-lo organismos da sociedade civil, da comunidade universitária, de representações de empregados e empregadores, alem daqueles usualmente envolvidos na discussão (magistrados, classe política e componentes das funções essenciais a Justiça).

As matérias que entrariam no exame fatiado seriam o controle externo do Judiciário, a adoção da sumula vinculante, a autonomia das defensorias públicas, a federalização dos crimes contra os direitos humanos (outro conceito de difícil delimitação), a unificação dos critérios nos concursos para juízes e promotores (com a absurda e inacreditável atribuição da realização dos concursos a órgãos estranhos aos tribunais e procuradorias) e a quarentena para magistrados atuarem como advogados durante três anos nos tribunais onde se aposentarem. É evidente que as duas primeiras estão cercadas por um tratamento preferencial pelo Poder Executivo e por setores do próprio Judiciário favoráveis a atual pressão dos acontecimentos e a formatação que ambas receberam na ultima versão. O risco dessa fórmula de ocasião e aprovar-se as matérias escolhidas, em extravagante sistema de churrascaria rodízio, ficando o restante para as calendas gregas.

Só para comparar, e bom recordar sugestões concretas encaminhadas pela AMB –Associação dos Magistrados Brasileiros ao Congresso Nacional já há cerca de cinco anos, nessa tortuosa tramitação da emenda de reforma do Judiciário: 1. Aprimoramento do acesso a Justiça (autonomia financeira e administrativa da Defensoria Pública, limitação de custas); 2. Combate a morosidade (criação da sumula impeditiva de recursos, direito a razoável duração do processo, extinção do reexame necessário dos processos da Fazenda Pública); 3. Efetividade da prestação de Justiça (pagamento de precatórios em prazos limitados e razoáveis, vedação a restrição de liminares, e, mais recentemente, simplificação da legislação processual; 4. Independência e autonomia do Judiciário (autonomia administrativa e financeira, mediante inclusão na Constituição de percentual mínimo na dotação orçamentária do Poder, ficando eventual majoração para exame na proposta orçamentária anual enviada ao Legislativo, conforme as necessidades, discussão de critério de democratização, com participação ampliada do Poder Legislativo e estendida ao Judiciário, na escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal); 5. Defesa da moralidade administrativa e combate ao nepotismo (criação do Conselho Nacional de Justiça, quarentena para ingresso de juízes pelo quinto constitucional e nos tribunais superiores e para retorno a advocacia após a aposentadoria, proibi<;:ao do nepotismo em regra de conteúdo idêntico para os três poderes); 6. Defesa do cidadão (criação de ouvidorias de justiça, regulamentação de ação direta de inconstitucionalidade por omissão do poder publico, vitaliciedade dos defensores públicos); 7. Democratização interna (eliminação de sessões administrativas secretas, eleição direta, por todos os juízes vitalícios, para os cargos de direção dos tribunais).

Como facilmente se percebe, ha muito de consensual nas propostas, mas também algumas em que se revela bastante antagonismo. O próprio Executivo tem reconhecido, por intermédio desse estranho organismo intitulado Secretaria Nacional de Reforma do Judiciário, cuja própria necessidade e atribuições podem ser contestadas com argumentos que ora não vem ao caso, que o Judiciário se encontra abarrotado por 80% de processos que envolvem interesse da administração pública, cuja síndrome recursal é tão voraz quanto a dos particulares vencidos em pleitos judiciais e que se valem de chicanas processuais vantajosas do ponto de vista custo x benefício.

Já na questão da instituição da sumula vinculante, ainda não foi discutido o importante aspecto da demissão de parcela de soberania pelo Legislativo, ao instituir mecanismo equivalente a lei do ponto de vista normativo. A lei pode ser alvo de ações de inconstitucionalidade, o que a deixaria em patamar inferior ao da súmula vinculante que, se estendida ao STJ e ao TST, deve necessária mente incluir previsão para tal mecanismo de controle. Mas não é só isso, se a finalidade e apenas desafogar, como e indispensável, o Supremo e os Tribunais Superiores, por que não adotar a sumula impeditiva de recursos, que sem duvida acarretaria tal resultado?

Ao que parece, a questão de fundo e verdadeiro objetivo, de produzir decisões uniformes e de força dimensão legislativa, no interesse da previsibilidade dos investimentos e do mercado, permanece em certa penumbra ainda que sejam aqueles que efetivamente contam para alguns setores bastante interessados.

A Conselho Nacional.de Justiça, com maioria de magistrados, não é nenhum bicho-papão, mas não se pode esquecer que, pelo art. 5.°, XXXV, da Constituição, suas decisões estão sujeitas ao controle de legalidade pelo STF, pois na hipótese contraria estaria instituído um organismo supra-poderes da República, violentando o art. 2° da Constituição. Isto sem falar que o Executivo e o Legislativo só dispõem de estruturas de controle interno, pois ao eleitor nada mais cabe, além da pressão pela opinião pública, do que aguardar 0 pr6ximo pleito para tentar a exorcização dos demônios, que não são poucos.

Enfim, o clima geral e de aproveitamento de situações criadas por episódios de exceção como o do “juiz Lalau” (TRT-SP) ou o da operação Anaconda, que estimulam um sentimento contrario ao Poder Judiciário. Aliás, nesse particular, veja-se que voltou a tona das prioridades a Reforma Política, inclusive, após o episódio Waldomiro Diniz, com destaque para o tema do financiamento das campanhas eleitorais, nem por isso se justificando o deslocamento do foro da discussão para fora do Congresso Nacional. É impossível não seria, bastando lembrar que sendo os parlamentares os maiores interessados, a Reforma Política poderia ser discutida e aprovada por uma Câmara Legislativa exclusiva que, não tendo interesses a preservar, se auto-extinguisse após a votação da matéria. De todo o modo, o próprio reconhecimento da necessidade imperiosa da Reforma Política implicaria em que ela, até pelo caráter genético em relação as demais reformas, fosse a primeira a ser concretizada. ou seja: começa-se, naturalmente, pela arrumação da própria casa.

É preciso compreender, por outro lado – para o que a discussão pública ampliada seria essencial – que reforma do Poder Judiciário não pode ser confundida ou tratada como cria<;ao de agencia reguladora. a Judiciário não é apenas uma agencia reguladora de determinada atividade econômica, mas um instrumento de sustentação da própria democracia. E assim quando o juiz federal garante o direito a uma aposentadoria livre do estigma do confisco, ou quando o juiz do trabalho resguarda o lesado contra situações opressivas da relação de trabalho, chegando a escravidão ou semi-escravidão, ou ainda quando o juiz estadual obriga a empresa exploradora do seguro-saúde a custear o tratamento de um doente grave ou terminal ou mesmo protege os pais de aumentos abusivos nas mensalidades escolares.

Afastado da cosmética de ocasião a serviço das exigências dos organismos financeiros internacionais ou dos blocos corporativos das grandes potencias mundiais, o juiz brasileiro não deverá aceitar o garroteamento de suas garantias estabelecidas em prol da população. a sistema judicial deve atender também a população mais carente e aos setores crescentemente inseguros da classe média, e não ao coronelismo político de novo figurino e velho ranço, com sua matreira habilidade midiática. A opção posta a sociedade brasileira e bem clara: deseja-se um Judiciário curvado ao arbítrio e dócil ao poder econômico, com independência apenas de fachada? A reforma apontara para um modelo tecnocrático e reprodutor servil dos valores do mercado e do primado absoluto da economia, ou, no interesse da cidadania, assumira o perfil democrático, dando relevo a universalização do acesso a Justiça, instrumentalizando definitivamente a Defensoria Pública em nosso País e desestimulando os expedientes de chicana e uso abusivo dos processos judiciais, inclusive com multas expressivas aos litigantes de má-fé? A resposta a estas questões indicará o rumo da participação do Judiciário na tarefa instigante, sempre inacabada, da construção da democracia.

O exemplo mais recente dessa profissão de fé foi a recente estréia, na TV Record, de um programa semanal veiculado todos os domingos as 10 horas da manha, produzido pelo Tribunal de Justiça/RJ e pela AMAERJ, intitulado Direito e Avesso, onde todas essas questões é muitas outras estarão sendo abordadas com a participação do grande público, pois, afinal, a Reforma do Judiciário e também uma reforma cultural. Este seria o sentido da advertência do notável Norberto Bobbio, cujo convívio físico perdemos recentemente, mas cujas lições de sabedoria a civilização devera guardar perenemente, quando assinalava que a instala<;ao da barbárie se realiza “SE A LEI CEDER”.