Registro especial de fabricante de cigarros – constitucionalidade e jurisprudência dos tribunais

23 de agosto de 2013

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Ana Tereza BasilioMarcelo LudolfA jurisprudência dos tribunais sempre rechaçou a adoção de sanções políticas pelo Poder Público como instrumento de coerção capaz de compelir o contribuinte a pagar tributos. É reputada, pois, ilícita a restrição excessiva e desproporcional ao direito de livre exercício de atividade lícita, instituída com a intenção de pressionar o devedor de tributos a quitar seus débitos.

O Supremo Tribunal Federal, inclusive, após reiteradas decisões nesse sentido, editou os vetustos verbetes nos 70, 323 e 5471, que integram a Súmula daquela Corte Constitucional. Segundo os referidos enunciados, é ilícita a utilização pelo Estado de meios coercitivos oblíquos com a finalidade meramente arrecadatória.

É inegável, no entanto, que a construção de toda a jurisprudência acerca do conceito de sanções políticas, notadamente do Supremo Tribunal Federal, refere-se a restrições unilaterais impostas pelo Estado às atividades empresariais ordinárias.

Instaurou-se, recentemente, em vários tribunais do País, a polêmica a respeito do caso específico da reiterada inadimplência no pagamento de tributos de empresas fabricantes de cigarros. A celeuma refere-se ao disposto no art. 2o do Decreto no 1.593/77, que prevê a possibilidade de cassação do registro especial de empresas tabagistas pela Receita Federal por, reiteradamente, não recolherem os tributos devidos. Nesse contexto, instaurou-se debate judicial se essa previsão consubstanciaria ou não a denominada sanção política.

Especificamente em relação à fabricação de cigarros, é relevante salientar que se trata de atividade tolerada pelo Estado, com a imposição de inúmeras restrições, já que o consumo dos produtos derivados do tabaco pode causar dano à saúde pública, impondo, como consequência, expressivo ônus ao Estado na área de saúde pública.

Nesse contexto, a atividade de fabricação de cigarros é submetida a rigorosas regras de controle estatal, tais como: a necessidade de registro prévio de marcas na Anvisa com obrigatoriedade de informar os ingredientes que compõem o produto; a inclusão de imagens e advertências nas emba­lagens dos produtos, as quais devem ser aprovadas pela agência; a restrição à publicidade fora dos pontos de venda; a proibição de uso de produtos fumígenos em ambientes coletivos; a elevada carga tributária de matizes extrafiscais, entro outras.

No plano fiscal, as regras impostas à atividade de fabricação e comercialização de produtos derivados do fumo estão previstas no Decreto-Lei no 1.593/77, que impõe a obrigatoriedade de instalação, pela Receita Federal nos estabelecimentos industriais, de contadores de produção de cigarros (sistema denominado Scorpios) e a necessidade de autorização prévia da autoridade fazendária para a produção de cigarros, denominada registro especial2, que, dentre outros requisitos para sua concessão, exige a comprovação da regularidade fiscal.

O Decreto-Lei no 1.593/77 prevê, ainda, a possibilidade de cancelamento do referido registro especial pela prática de reiterado descumprimento de obrigação tributária principal ou acessória; pela prática de conluio ou fraude (Lei no 4.502/64); pela prática de crime contra a ordem tributária (Lei no 8.137/90); pela prática de crime de falsificação de selos de controle tributário (Decreto-Lei no 2.848/40); e pela prática de infração, cuja tipificação decorra do descumprimento de normas reguladoras da produção, da importação e da comercialização de cigarros e outros derivados de tabaco, após decisão transitada em julgado3.

A previsão de cancelamento do registro especial para produção de cigarros pela autoridade fazendária foi promulgada sob a égide da Constituição Federal de 1967 e recepcionada pela Constituição Federal 1988.

Especificamente sobre o setor de cigarros, o Supremo Tribunal Federal somente havia proferido decisões no âmbito de tutelas de urgência, sempre no sentido da constitucionalidade da norma. Em sessão realizada em 22/3/2013, entretanto, a Suprema Corte, por meio de sua composição plenária, julgou o mérito do leading case sobre a matéria (Recurso Extraordinário no 550.769), o qual teve a relatoria do Ministro Joaquim Barbosa e envolvia débitos superiores a 2 bilhões de reais da empresa American Virginia, a qual teve seu registro de fabricante de cigarros cancelado, pela última vez, em 2010.

Por ocasião do referido julgamento, a Suprema Corte enfrentou diversos aspectos envolvidos no caso, como o fato de que o não pagamento reiterado de tributos não decorria de dificuldades financeiras momentâneas, mas sim de estratégia comercial deliberada, no sentido de não pagar tributos. Reconheceu, ainda, o caráter nitidamente extrafiscal da tributação de IPI incidente sobre a produção de cigarros, a lesão potencial à saúde pública e à seguridade social, diante dos malefícios do consumo do cigarro, bem como sopesou o fato de que o não pagamento reiterado de tributos implica em dano à concorrência nesse competitivo mercado, pela adoção de preços predatórios por aqueles que não cumprem com as suas obrigações tributárias, e, portanto, concluiu que a prática seria violadora da livre concorrência no setor.

Por meio da ponderação dos valores constitucionais em discussão, o Supremo concluiu que a norma prevista no Decreto-Lei no 1.593/77 não caracteriza sanção política, porque, no caso peculiar da fabricação de cigarros, a regularidade fiscal é requisito essencial para o desempenho da atividade.

A decisão do Supremo Tribunal Federal no mencionado leading case corrobora a compreensão que já vinha sendo adotada pelas demais instâncias do Poder Judiciário sobre o setor de cigarros, no sentido da constitucionalidade da exigência de regularidade fiscal, bem como pela possibilidade de revogação do registro especial de fabricante de cigarros com o consequente fechamento do agente sonegador.

De forma semelhante, a Corte Especial do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, em decisão proferida na sessão plenária do dia 20/6/2013, decidiu pela constitucionalidade da exigência e da possibilidade de cancelamento do registro especial da empresa Cia. Sulamericana de Tabacos. O acórdão da lavra da eminente Desembargadora Federal Selene Maria de Almeida é no seguinte sentido:

AGRAVO REGIMENTAL EM SUSPENSÃO DE LIMINAR. GRAVE LESÃO À ORDEM TRIBUTÁRIA E À SAÚDE PÚBLICA.

1. Evidenciada a grave lesão à saúde pública quando, deixando de recolher o IPI, que é a parcela preponderante na composição do preço final do produto, o fabricante de cigarros tem condições de colocá-lo no mercado a um preço muito menor, o que faz aumentar o seu consumo e, consequentemente, os riscos à saúde da população.

2. Verificada, também, a grave lesão à economia pública: a uma, porque, ao não recolher o IPI, o Estado ficou sem parcela importante da arrecadação tributária, parcela esta que poderia ser utilizada, inclusive, para custear o tratamento das pessoas acometidas pelos malefícios causados pelo consumo de cigarros: a duas, porque, ao praticar preços mais baixos, a empresa alarga a sua fatia otite a concorrência e ganha poder de mercado, prejudicando a concorrência que, em tese, esteja recolhendo os tributos, e não poderia, por isso, com ela competir. (AGRSL no 0024266-42.2007.4.01.0000 / DF, Rel. Desembargador Federal Jirair Aram Meguerian, Corte Especial, e-DJF1 p.158 de 17/8/2009).

3. Agravo regimental da Fazenda Nacional provido.4

Conforme se extrai dos recentes julgados do STF e do TRF-1a Região, a ratio iuris do requisito de regularidade fiscal imposta para a atividade de produção de cigarros provém de norma inspirada não apenas pela finalidade de composição dos cofres públicos para fazer frente às políticas públicas e ao custeio do aparato estatal, mas, sobretudo, pelo caráter extrafiscal da tributação que visa a proteger e custear a saúde pública, já que o consumo do tabaco, em larga escala, pode implicar em custos sociais suportados pelo Estado e pela coletividade.

Assim, a tributação dos produtos derivados do tabaco busca repassar esses custos sociais para as empresas que desempenham essa atividade econômica. Sem essa tribu­tação, de cunho eminentemente extrafiscal, a sociedade como um todo suportaria esse ônus em benefício único do lucro da empresa tabagista inadimplente, que não cumpre com suas obrigações fiscais onerando a sociedade e praticando concorrência desleal.

É relevante salientar que a carga tributária dos cigarros possui alíquotas elevadas, que representam aproximadamente 65% (sessenta e cinco por cento) do preço final do produto. Dessa forma, distorções na carga tributária, decorrentes do reiterado não pagamento de tributos, terminam por ocasionar vantagem indevida aos agentes sonegadores, gerando um desequilíbrio que prejudica as empresas demais de competir, de modo isonômico e leal, nesse competitivo segmento. E o descumprimento reiterado de obrigações fiscais por parte de empresas desse ramo provoca distorções no mercado, pois permite o comércio de produtos em patamares de preço predatórios, inferiores aos da concorrência e, até mesmo, como se verificava, inferiores ao preço de custo do mercado legal, ainda que não se considere qualquer margem de lucro5.

Conclui-se, pois, que, se à autoridade fazendária fosse vedado cancelar o registro especial de fabricantes de cigarros devedores contumazes de quantias vultuosas, perderiam a sociedade, as empresas concorrentes, obrigadas a competir com concorrentes que adotam práticas comerciais desleais, e a União Federal, que tem a sua arrecadação diminuída e é onerada com altos custos relacionados ao sistema público de saúde e à Previdência Social.

Na verdade, o Supremo Tribunal Federal não mitigou a aplicação dos verbetes de sua Súmula, que vedam a prática de sanção política, já que as hipóteses neles previstas não se aplicam às regras especiais, previstas no Decreto-Lei no 1.593/77. Esse fato, inclusive, foi salientado pelo eminente Ministro Ricardo Lewandowski, nos seguintes termos: “Não seriam aplicáveis à espécie, por aludirem a devedores inseridos no regime geral de atividades econômicas, o que difere da atividade específica de produção e comercialização de cigarros.”

Não se trata, por conseguinte, de interpretação modificativa da consolidada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca da proibição de prática de sanções políticas pelo Estado, mas, tão somente, do reconhecimento das particularidades de setor dotado de inúmeras peculiaridades, até então não submetidas ao crivo daquela Corte.

O entendimento consolidado na jurisprudência é, portanto, no sentido da legalidade e da constitucionalidade do cancelamento de registro especial de produtores de cigarros devedores do fisco quando verificado descumprimento substancial, reiterado e injustificado de obrigação tributária principal ou acessória. E a hipótese não se enquadra no conceito jurisprudencial de sanção política.

Em passado recente, praticamente metade das empre­sas fabricantes de cigarro do País funcionavam à base de decisões judiciais, isentando ou suspendendo obrigações fiscais, para demandantes que adotavam a estratégia comercial de não pagar tributos para obtenção de lucros expressivos e para alavancar a sua participação nesse competitivo segmento da economia. Mas essas iniciativas ilícitas estão agora com os dias contados.

Notas ____________________________________________________________________

1 Súmula 70 – É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.

Súmula 323 – É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.

Súmula 547 – Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.

2 “Art. 1o A fabricação de cigarros classificados no código 2402.20.00 da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – TIPI, aprovada pelo Decreto no 2.092, de 10 de dezembro de 1996, será exercida exclusivamente pelas empresas que, dispondo de instalações industriais adequadas, mantiverem registro especial na Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda.

§ 1o As empresas fabricantes de cigarros estarão ainda obrigadas a constituir-se sob a forma de sociedade e com o capital mínimo estabelecido pelo Secretário da Receita Federal.

§ 2o A concessão do registro especial dar-se-á por estabelecimento industrial e estará, também, na hipótese de produção, condicionada à instalação de contadores automáticos da quantidade produzida e, nos termos e condições a serem estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, à comprovação da regularidade fiscal por parte: (…)”

3 Art. 2o O registro especial poderá ser cancelado, a qualquer tempo, pela autoridade concedente, se, após a sua concessão, ocorrer um dos seguintes fatos:

I – desatendimento dos requisitos que condicionaram a concessão do registro;

II – não cumprimento de obrigação tributária principal ou acessória, relativa a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal;

III – prática de conluio ou fraude, como definidos na Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964, ou de crime contra a ordem tributária previsto na Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, ou de crime de falsificação de selos de controle tributário previsto no art. 293 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, ou de qualquer outra infração cuja tipificação decorra do descumprimento de normas reguladoras da produção, importação e comercialização de cigarros e outros derivados de tabaco, após decisão transitada em julgado.”

4 Tribunal Regional Federal da 1a Região, Agravo Regimental na Suspensão de Liminar no 0057014-54.2012.4.01.0000/DF, Rel. Des. Selene Maria de Almeida, j. 20/6/2013, DJ 28/6/2013.

5 A possibilidade de venda de produtos por preços inferiores ao custo, seja decorrentes de sonegação fiscal, seja decorrente de contrabando, motivou a mudança legislativa advinda através da Lei no 12.546/11, que estabeleceu preço mínimo para a venda de carteira de cigarro.