Relevância das questões de Direito federal infraconstitucional

3 de março de 2023

Da Redação

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STJ avalia os possíveis caminhos para a regulamentação do novo instituto processual

Para inaugurar os estudos sobre a implantação da relevância da questão federal (RQF), instituto jurídico inserido no art. 105 da Constituição Federal pela Emenda nº 125/2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) promoveu em fevereiro o seminário “Relevância das questões de Direito Federal infraconstitucional”. Realizado sob a coordenação da Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas (Cogepac) do STJ – e idealizado pelo presidente da Comissão, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino – o debate reuniu magistrados, membros do Ministério Público e advogados públicos e privados.

“A concretude da novidade jurídica será construída nos campos legislativo e jurisprudencial e promoverá notáveis impactos nas relações sociais, econômicas, políticas e jurídicas da sociedade brasileira. Ciente disso, a atual gestão deu importante passo ao entregar ao Senado Federal, no início de dezembro passado, a proposta de regulamentação da relevância federal”, informou o Ministro Og Fernandes, Vice-Presidente do STJ, na mesa de abertura do seminário.

Um dos pontos principais da proposta de regulamentação elaborada pelo STJ é a inclusão do art. 1.035-A do Código de Processo Civil (CPC), para introduzir a sistemática da RQF no Código, com detalhamento do seu conceito para fins de admissibilidade do recurso especial. O STJ propõe ainda que, após o reconhecimento da relevância, seja suspensa a tramitação de processos idênticos no Judiciário, em mecanismo semelhante ao que ocorre hoje na sistemática da repercussão geral no Supremo Tribunal Federal (STF).

“A proposta encaminhada ao Senado seguia a linha da justificativa apresentada pelo Tribunal da Cidadania, calcada em sólidas bases conceituais e práticas, frutos da experiência de 15 anos da sistemática da repercussão geral no âmbito do STF e dos muitos aprendizados desta Corte no trâmite dos recursos especiais, que vem desde 2018, no sentido de dotar os recursos especiais com os efeitos do repetitivo. Com isso, parte-se de um paradigma seguro de que é possível prever com certa precisão aspectos positivos e negativos a serem enfrentados na missão agora posta, de buscar a melhor regulamentação para a aplicada relevância na questão federal”, acrescentou o Ministro Og Fernandes, que no ato representava a Presidente do Tribunal, Ministra Maria Thereza de Assis Moura.

O Ministro Og Fernandes lembrou que a regulamentação da QFR vai exigir também alterações no regimento interno do STJ, para que diversos procedimentos “ofereçam eficácia e aplicabilidade à vontade do constituinte”, a exemplo do que ocorreu no STF, que editou 14 emendas regimentais, entre 2017 e 2022, para ajustar-se ao sistema da repercussão geral.

Acidente histórico – A primeira mesa de debates, presidida pelo Ministro João Otávio de Noronha, contou com a participação do Conselheiro Diretor da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) Alexandre Freire, que é ex-secretário de Altos Estudos, Pesquisa e Gestão da Informação do STF, e deu um testemunho sobre o processo de regulamentação da relevância geral naquela Corte.

Ele explicou que a repercussão geral deu ao Supremo a possibilidade de construir sua própria agenda, o que só foi possível graças a um “acidente histórico”. Segundo ele, num primeiro momento, quando julgada presencialmente, a repercussão geral gerava os mesmos problemas dos julgamentos sobre questões de fundo e casos complexos: longos votos e frequentes pedidos de vista. O primeiro avanço veio com a criação de um circuito deliberativo digital para permitir aos ministros a análise dos temas em prazo razoável, sem a necessidade de apresentar longos votos. Esse ambiente digital trouxe a possibilidade de aprimorar a técnica da repercussão geral, que embora tenha sido pensada como filtro, passou a ser utilizada como elemento de gestão processual.

Contudo, segundo o Conselheiro, a inovação tecnológica não seria suficiente para que a Corte tivesse condições de fazer o exame da repercussão geral, devido ao número excessivo de processos. “O acidente histórico que deu à repercussão geral um novo sentido foi a grave crise da covid-19. (…) Diante da pandemia, se pensou em duas formas de deliberar. Primeiro, criar um ambiente em que os ministros pudessem, nos grandes temas desafiadores de 2019, deliberar de forma remota. A segunda seria ampliar as funcionalidades do plenário virtual, que à época era previsto apenas para algumas situações. A partir de decisão corajosa do Ministro Dias Toffoli, a Corte passou a deliberar todos os temas, entre os quais os de repercussão geral, no ambiente do plenário virtual. A partir do instante em que passou a usar esses ambientes de deliberação, o Tribunal deu a vazão que a repercussão geral exigia, deliberar em tempo razoável”, explicou ele.

Corte de precedentes – O primeiro painel contou ainda com a participação da professora e Procuradora Nacional de Servidores e Militares da Procuradoria-
Geral da União (PGU/AGU), Ana Karenina Andrade, para quem a arguição de relevância vai dar ao STJ a oportunidade de exercer sua missão constitucional como corte de precedentes.

“Não há discussão se pode ou não, porque o STJ é corte de precedentes e precisa desse filtro para poder exercer essa função. A relevância é uma necessidade também do jurisdicionado, precisamos saber pautar nossa conduta. O precedente tem o potencial, inclusive, de ir além da própria resolução do conflito e do processo judicial. Preciso saber o que pensa e como interpreta (o Tribunal) para pautar nossa conduta cidadã”, observou a advogada pública.

Para Ana Karenina Andrade, a RQF pode ter surgido da necessidade de reduzir o acervo e permitir que o STJ possa exercer sua missão constitucional, mas se tiver a regulamentação “bem pensada” pode favorecer ainda a análise da transcendência dos temas e a formação de um verdadeiro sistema de precedentes. “O grande desafio do STJ é entender que tipo de precedente tem que ser produzido para nossa sociedade”, pontuou.

Nas considerações finais do painel, o Ministro Noronha observou que quando se fala da transcendência das decisões judiciais, trata-se da consolidação dos modos de agir dos cidadãos na sociedade, o que requer cautela para evitar precipitações. “Ao fim e ao cabo (os precedentes) traçam normas de conduta. A lei não é aquilo que está escrito, é aquilo que o tribunal interpreta e diz que ela é. São as normas de conduta. É fundamental que não tenhamos pressa em temas importantes que possam influir, sobretudo, em modificações de comportamento”, observou o magistrado.

Possibilidade de escolha – A mesa seguinte, presidida pelo Ministro Marco Aurélio Bellizze, trouxe reflexões sobre o procedimento de formação concentrada de precedentes qualificados. Em sua participação, o Juiz Auxiliar do STJ Fernando Gajardoni avaliou que a Corte terá uma “facilidade” que os outros tribunais superiores não tiveram no momento em que conquistaram a possibilidade de escolher o que julgar: poder escolher entre o modelo da repercussão geral do STF ou o modelo da transcendência econômica e social adotado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Segundo o magistrado, um efeito colateral esperado a partir da regulamentação da RQF é o fortalecimento da jurisdição exercida pelos tribunais estaduais e regionais. “Isso vai levar ao ‘empoderamento’, a uma responsabilidade muito grande dos Tribunais de Justiça (TJs) e dos Tribunais Regionais Federais (TRFs), que a partir do momento em que o STJ disser que não há a relevância terão a responsabilidade de dar a última palavra nessas questões”, avaliou Gajardoni.

O juiz auxiliar do STJ defendeu ainda que, além de arguir a relevância ou não das questões federais, o Tribunal deve ter o poder de julgar “apenas o caso concreto, sem formar precedente, e falar que não há por ora relevância da questão federal, para que os tribunais eventualmente continuem julgando a questão”. Com isso, segundo ele, os ajustes regimentais que o STJ vai fazer vão precisar contemplar também a apreciação dos eventuais recursos especiais, que poderão surgir diante de divergências de interpretação entre TJs e TRFs. O que, em sua avaliação, “talvez seja a maior sinuca de bico em que o STJ vai se meter.”

Olhar da advocacia – No mesmo painel, a Secretária-Geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil e Conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal (OAB-DF), Ana Carolina Caputo Bastos, trouxe o olhar da advocacia privada sobre o novo instituto. Para ela, na regulamentação da relevância da questão federal, o STJ deverá estar atento à questão do contraditório e da “pluralização dos debates”, por meio, por exemplo, da participação de amici curiae e da realização de audiências públicas, algo que, segundo ela, tem sido comum no STF em sede de repercussão geral. 

“A Corte precisa mudar um pouco, me permitam essa crítica, na admissão dessa pluralidade, desses pares que dialogam sobre a prestação jurisdicional agora muito mais sofisticada no STJ”, cobrou a presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais da OAB-DF, que também pediu a atenção do STJ em relação às ações de reclamação (Rcl): “O cabimento de reclamação, na minha humilde opinião, será uma das grandes questões a ser enfrentada pelo Tribunal. Não há sistema de precedentes em que o próprio tribunal que os julga e os fixa não consiga reconhecer a sua autoridade”.

Para Ana Carolina Bastos, a repercussão geral não é apenas um filtro recursal ou um mero requisito de admissibilidade, mas uma técnica de julgamento, pois uma vez reconhecida a relevância da questão federal, haverá impactos em diversas perspectivas, como na questão da suspensão nacional dos processos e no deferimento de liminares.

Cabimento das reclamações – A mesa seguinte, presidida pelo Ministro Sérgio Kukina, da Seção de Direito Público do STJ, debateu os possíveis fluxos procedimentais internos com a regulamentação da RQF. Na abertura do painel, o ministro comentou que se inscreve no rol daqueles que tinham “inveja” do STF, desde a Emenda nº 45: “Passaram-se quase 17 anos até que ganhássemos o nosso ‘caso distinto’,, mas quanto mais ouço os expositores e quanto mais procuro ler a respeito, mas me sinto tal qual aquele cachorro que corre atrás do carro desesperadamente e não sabe o que fazer quando ele para. E agora?”

Quanto à observação feita pela advogada Ana Carolina Bastos em relação às ações de reclamação, o Ministro Kukina observou que “se o STJ de fato abrir as porteiras para as reclamações, logo vamos ter que afetar reclamação em repetitivos, verificar se há relevância em reclamações e, o mais perigoso, teremos dezenas ou centenas de reclamações oriundas de um mesmo repetitivo, de uma mesma tese, e acabaremos percebendo que entre nós cada um virá a dar uma interpretação diferente”.

No mesmo painel, ainda sobre a questão das reclamações, o Secretário-Executivo da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), Fabiano Tesolin, comentou que nesse momento de construção do sistema de precedentes a reclamação “tem um papel muito relevante, ao menos em tese”, apesar do risco de sobrecarga. 

A respeito da “estadualização” do Direito Federal, Tesolin comentou que o papel do advogado perante os tribunais locais, em alguns casos, era mero rito de passagem até a questão chegar ao STJ e ao STF, mas que a partir do momento em que a relevância for implementada, a importância do entendimento dos TJs e TRFs certamente será fortalecida. 

Sobre os eventuais conflitos entre as interpretações de TJs e TRFs, segundo o secretário-executivo, uma alternativa será reconhecer a relevância dos recursos. “A partir do momento em que existe divergência entre os tribunais a respeito da interpretação de uma lei federal, não parece ser razoável negar o acesso dessa divergência ao STJ, que tem a função constitucional de uniformizar os entendimentos”, observou

Já o Assessor-Chefe do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes e de Ações Coletivas (NUGEPNAC) do STJ, Marcelo Ornellas Marchiori, lembrou que com a regulamentação da RQF também entrará em debate o papel das turmas do Tribunal, porque há uma grande tendência de levar a apreciação da relevância das questões federais para as seções ou para a Corte Especial, a exemplo do que ocorreu no STF em relação à repercussão geral.

Sistema tupiniquim – O painel de encerramento contou com a participação do Juiz Supervisor do NUGEPNAC, Renato Castro, que disse torcer para que a RQF ajude a criar uma verdadeira cultura de precedentes no Brasil, um sistema “tupiniquim de precedentes”: “Digo isso com muito orgulho, não de forma jocosa. Estamos verificando mundo afora, e no Brasil não seria diferente, uma espécie de simbiose entre common law e civil law. Foi mais ou menos o que ocorreu com nosso sistema, principalmente a partir do CPC/2015. Temos que compreender que temos um sistema diferenciado, uma fábrica de precedentes, produzimos precedentes de propósito, coisa que não acontece nas cortes americanas ou inglesas. Isso é um privilégio para nós. (…) Saber que vamos construir um precedente faz com que possamos construí-lo de forma mais adequada”.

“Temos que aproveitar esse momento para que o STJ passe realmente a cumprir sua missão prevista na Constituição e, especialmente, para colocar na cabeça dos operadores do Direito que o precedente é obrigatório. Com todo respeito, discussões sobre ‘precedente persuasivo’ ou ‘precedente vinculante pero no mucho’ são estéreis, data maxima venia. Quando o art. 927 (do CPC) diz que os tribunais e magistrados em geral deverão observar, está escrito que todo mundo vai observar. Já que existe um anteprojeto, deveriam colocar um parágrafo no art. 927 para perguntar: ‘Qual foi a parte do caput que vossa excelência não entendeu?’, porque é obrigatório”, acrescentou o magistrado.

Por fim, a Ministra Assusete Magalhães, que representa a Seção de Direito Público na Comissão Gestora de Precedentes, comentou que o ordenamento jurídico processual brasileiro de fato exige uma nova ferramenta processual para que o STJ possa exercer sua missão constitucional de uniformização do Direito federal. Após apresentar um panorama das estratégias que o STJ tem adotado para incrementar a afetação e julgamento dos recursos repetitivos, a magistrada comentou que, de fato, é importante aprender com os erros e acertos do STF na implantação da repercussão geral para melhor conduzir a regulamentação da relevância da questão federal pelo STJ. 

“A justificativa da PEC nº 209/2012, da qual decorreu a Emenda Constitucional nº 125, traz dados estatísticos do STF para demonstrar que ao longo do tempo foi possível, com a repercussão geral, reduzir o acervo processual. Em 1988, quando transferiu parcela de suas atribuições para o STJ, a Corte Suprema recebeu 21 mil processos em distribuição. Em 2006, antes da vigência da lei que regulamentou a repercussão geral, o Supremo recebeu 116 mil feitos e os ministros julgaram 110 mil processos. Em 2007, quando entrou em vigor a lei que regulamentou a repercussão geral, a Suprema Corte recebeu 159 mil processos em distribuição. Pois bem, a justificativa da PEC nº 209 registra que em 2011 o STF conseguiu reduzir seu acervo processual a 38 mil processos. Apurei na data de ontem que o STF tem hoje em tramitação pouco mais de 24 mil processos. Isso mostra que na implementação dessa nova ferramenta processual, possamos geri-la de modo bem positivo, valendo-
nos da experiência do STF, para que possamos obter também resultados relevantes e positivos em prol da entrega da prestação jurisdicional”.

Além da redução do acervo processual, a Ministra Assusete Magalhães disse esperar da RQF promova a racionalização recursal, a redução do custo social do processo, a valorização do trabalho das instâncias ordinárias e a já mencionada possibilidade de cumprimento, pelo STJ, das tarefas imaginadas pelo constituinte original: “Esse trabalho de implementação da relevância da questão federal permitirá, como uma consequência importantíssima, que o STJ exerça de fato sua missão constitucional, com o desempenho de sua função nomofilácica”.