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Representação por inconstitucionalidade

5 de fevereiro de 2004

Roberto Wider Desembargador Wider

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n° 37/02 – Lei n° 3339/99 do Estado do Rio de Janeiro

DECLARAÇÃO DE VOTO

A apreciação das questões de direito suscitadas na presente representação, devem ser analisadas sob a ótica de direitos fundamentais constitucionais e da exegese a eles aplicáveis.

Numa sumaríssima descrição do que se quer abordar, colhe-se em artigo do Professor Gustavo Binenbojm “Direitos humanos e Justiça Social: As idéias de liberdade e igualdade no Final do Século XX” (Vol. XII da Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro – Lumen Júris), a descrição dos denominados “direitos de primeira geração”, que seriam os direitos da liberdade, aí incluídos os direitos individuais e os direitos políticos; os de “segunda geração” correspondendo aos direitos de igualdade, que seriam os direitos sociais, econômicos e culturais e, os de “terceira geração”, como o direito ao meio ambiente, ao patrimônio histórico, à paz e ao desenvolvimento, também tratados como direitos difusos ou coletivos (ob.cit. p.73).

Os atributos desses direitos de 1ª geração são, entre outros, os de inalienabilidade, auto-aplicabilidade, eficácia erga omnes, o caráter absoluto e a imprescritibilidade.

Os de 2ª geração – os sociais, estão relacionados ao valor da igualdade, o qual, ainda com o Professor Binenbojm, é o valor associado mais diretamente à idéia da Justiça e que, além da sua representação formal – igualdade perante a lei e proibição de privilégios – se viu desenvolvido por Rawls, como representativo do maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade (ob.cit. p.80-81).

Ainda numa visão bem perfunctória se pode afirmar que os de primeira geração correspondem ao dever geral de abstenção do Estado, enquanto que os de segunda visam os direitos prestacionais, ou seja, reconhecem a existência de direitos materiais em favor do indivíduo frente ao Estado, e que, por isso, são chamados de direitos sociais.

Visam tais direitos fundamentais de caráter prestacional o reconhecimento e a efetividade de garantia das condições materiais básicas para a população e a promoção da igualdade material.

Na mesma Revista acima referida, dedicada apenas ao tema dos Direitos Fundamentais, o Professor Ricardo Lobo Torres, no artigo – A Jusfundamentalidade dos Direitos Sociais – após distinguir os direitos fundamentais como aqueles plenamente justiciáveis, que independem de complementação legislativa, tendo eficácia imediata e que estão positivados, entre outros, no artigo 5º da Constituição Federal, trata dos segundos, como direitos a prestações positivas, sujeitos à “reserva do possível” e a concessão do legislador, e que se positivam na Constituição Federal, nos artigos 6º e 7º , entre outros (ob.cit.p.350-351).

Frente à reconhecida falência do Estado-Providência, como assinala o mesmo professor adiante “a tese do primado dos direitos sociais sobre os individuais, como vimos acima, se dissolveu com o colapso do socialismo real e com a crise do Estado-Providência”, “a saída para a afirmação dos direitos sociais tem sido, nas últimas décadas: a) a redução de sua jusfundamentalidade ao mínimo existencial, que representa a quantidade mínima de direitos sociais abaixo da qual o homem não tem condições para sobreviver com dignidade; b) a otimização da parte que sobreexcede os mínimos sociais na via das políticas públicas, do orçamento e do exercício da cidadania” (ob.cit.p.356).

Assentado que estamos tratando de direitos sociais, que se consubstanciam na obrigação do Estado de prestar aos cidadãos a garantia ao chamado “mínimo existencial”, ou seja, prestações materiais que garantam sua sobrevivência com um mínimo de dignidade humana, ou, numa fase subseqüente, “a otimização da parte que sobreexcede os mínimos sociais”, impõe-se a análise de qual a jusfundamentalidade do direito social ao transporte coletivo gratuito prestado de forma indireta, visando identificar os seus elementos integradores, forma de realização e imposição de custos.

É certo que tal política pública para os transportes coletivos pode estar inserida dentro do chamado “mínimo existencial” no mesmo patamar dos programas de “Bolsa-Escola” do Ministério da Educação, da “Bolsa-Alimentacão” do Ministério da Saúde ou, do “Vale-Gás” do Ministério de Minas e Energia.

Penso, no entanto, que esta política se situa num patamar acima dos “mínimos sociais”, haja vista a consideração do público alvo e objetivos colimados, quais sejam, um benefício aos idosos que necessitam de amparo; uma sobregarantia aos estudantes da rede pública, ao menos do 1o grau, para o acesso ao estudo fundamental e uma assistência suplementar aos deficientes.

Como se tratam de direitos sociais aos quais correspondem políticas prestacionais materiais por parte do Estado e aí, acrescenta a Constituição Federal, de responsabilidade da sociedade como um todo, a teor do artigo 194, a sua integração depende de diversos fatores, entre os quais o que se denominou “a reserva do possível”, ou seja, a disponibilidade orçamentária ou previsão de fonte de custeio e a concessão legislativa; esta, por sua vez, objetivando uma atividade prestacional de assistência social, qualifica os destinatários como os efetivamente necessitados de tais prestações, como não poderia deixar de ser, sob pena de subversão de seu caráter social.

Nesse ponto é que se deve prevenir a indesejada transformação da política de assistência em assistencialismo.

As questões suscitadas impõem a aplicação de princípios hermenêuticos, notadamente as exegeses sistemática e teleológica das normas que explicitam os direitos sociais.

Quando se pensa em gratuidade concedida para o fornecimento de um serviço público, para logo se concebe tratar-se de um benefício social.

O benefício social decorre da execução de uma política de assistência social, prevista na Constituição Federal, que, como se sabe, é altamente impregnada de um sentido de socialidade e por isso, inteiramente afastada de qualquer sentido de privilégio, devendo se entender a assistência social como “serviço gratuito, de natureza diversa, prestado aos membros da comunidade social, atendendo às necessidades daqueles que não dispõem de recursos suficientes.” (Novo Aurélio – Século XXI).

Nesta linha, estabelece a Carta Magna:

Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 203 – A assistência social será prestada a quem a dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;

III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV – a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.  (Os grifos são meus).

Por não se tratar de um “privilégio” e sim de uma “assistência”, colhe-se nos textos constitucionais, sempre, a referência à necessidade e a figura da carência:

“assistência aos desamparados”;

“a assistência será prestada a quem dela necessitar”;

“o amparo às crianças e adolescentes carentes”;

“a pessoa portadora de deficiência e o idoso que comprovem não possuir meios de prover à sua própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”.

Neste contexto, a assistência social é deferida à atividade estatal, como um objetivo e um ônus da Administração Pública e da sociedade como um todo,  sendo implementada por um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, a teor do previsto no art. 194 da Carta Magna, que tem abrangência maior do que a previdência social, tratada a partir do art. 201 do mesmo  diploma. Isto decorre do que estabelecem os artigos 204 e 195 da mesma Carta, a saber:

Art. 204 – As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

………………………………………………….

Art. 195 – A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

………………………………………………….

Dentro dessas políticas de amparo às pessoas necessitadas, notadamente as idosas, a Constituição prevê, como parágrafo do artigo 230, que justamente determina o dever de amparar às pessoas idosas, a garantia de gratuidade dos transportes coletivos urbanos aos maiores de sessenta e cinco anos.

Como se fazer a leitura e interpretação deste artigo, fora do contexto em que foi criado?

Leia-se o caput do artigo:

“Art.230 – A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem estar e garantindo-lhes o direito à vida”.

Especificamente no que se refere aos serviços públicos de transportes coletivos, estão previstos sistemas de benefícios, a saber:

1. em relação aos maiores de sessenta e cinco anos, o supra citado artigo 230; no entanto, deve ser tratada a questão como “assistência social a quem necessitar” e não como privilégio, pois não passa pela cabeça de ninguém, que os componentes da classe média e alta da sociedade, maiores de sessenta e cinco anos, deverão ter o direito à gratuidade do serviço, às custas do Estado ou dos trabalhadores da classe inferior (que usam o transporte público);

Tenho para mim que se tal entendimento for adotado, estar-se-á subvertendo o cânone fundamental do princípio da igualdade, pelo qual este resulta no tratamento desigual aos desiguais, ficando o mesmo transformado não numa política de amparo aos idosos, mas, num privilégio, o que viola, dentro de uma exegese sistemática e teleológica das normas constitucionais que regem os direitos sociais, a sua razão de ser e objetivos colimados, quais sejam, a concessão de benefícios aos menos privilegiados da sociedade.

Neste sentido já se manifestou uma vez o Cardeal Dom Eugênio Sales, com o bom senso que lhe é peculiar:

“é necessário reexaminar o assunto, não à luz do interesse político, mas, unicamente, segundo a justiça social e caridade com os mais necessitados. Por exemplo, só o fato de ser velho, não deve justificar passagens gratuitas, mas, as pessoas que são velhas e pobres, a elas deve ser concedida a gratuidade”.

Também o professor italiano Pietro Perlingieri (in Perfis do Direito Civil – Introdução do Direito Civil Constitucional – Ed. Renovar, 1999, p.168-169) ao tratar do idoso, no capítulo das situações subjetivo existenciais, preocupado com a questão da limitação da capacidade civil deste, assinala com propriedade: “deve se desconfiar da construção de uma categoria do idoso e de uma normativa exclusiva para o idoso tout court” para concluir que certas soluções legislativas, mesmo quando parecem atuar no interesse do idoso, na realidade “freqüentemente propõem estatutos de favor ou desfavor irrazoavelmente lesivos ao princípio da igualdade”.

É ao que leva a interpretação do parágrafo segundo do artigo 230 da CF, sem a integração da finalidade da norma – torna-se um estatuto irrazoavelmente lesivo ao princípio da igualdade, agravado ainda mais, quando os idosos são também discriminados pelo sexo.

Sobre tal questão é relevante o entendimento ministrado pelo insigne e respeitado jurista Miguel Reale, em parecer publicado em seu livro “Aplicações da Constituição de 1988, Ed.Forense, pags. 111 e seguintes”:

“À primeira vista, pode parecer que essa última determinação não comporta dúvida, a tal ponto que alguém poderia invocar a superada parêmia: interpretatio cessat in claris, mas, estariam, a meu ver, em irrecusável erro de hermenêutica, quer sob o ponto de vista lógico-sistemático, quer sob o prisma teleológico-político de fundamental importância na interpretação dos textos constitucionais”.

E adiante:

“Efetivamente, analisando-se o citado art. 230 como norma autônoma, verifica-se que a mens legis atende finalidade assistencial às pessoas idosas, estabelecendo o dever de ampará-las, exigível da família, da sociedade e do Estado, tal como é enunciado no caput da norma, sendo sabido que é nele que reside o valor básico da regra jurídica”.

O que o legislador constituinte teve em vista foi evitar o desamparo do idoso, não havendo necessidade de invocar mestres da língua para reconhecer-se que amparo significa auxílio ou ajuda a quem esteja em estado de necessidade.

Ora, como os parágrafos devem ser necessariamente interpretados em função da norma principal, por visarem a especificar ou excepcionar algo em razão do disposto naquela, parece-me imperativo concluir-se que a gratuidade dos transportes coletivos urbanos, declarada no § 2º, somente se refere aos idosos carentes de amparo.”

Destarte, quando a Constituição Federal estabelece que é garantida aos idosos a gratuidade nos transportes públicos, a interpretação sistemática e teleológica da norma indica que tal benefício será dado aos idosos que dele necessitarem, como forma de amparo.

2. em relação aos estudantes, determina a Constituição Federal:

“Art. 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Art. 208 – O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

VII – atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

E também a Constituição do Estado do Rio de Janeiro:

Art. 306 – A educação, direito de todos e dever do Estado, e da família, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade…etc.

Art. 308 – O dever do Estado e dos Municípios com a educação será efetivado mediante garantia de:

IX – atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

No mesmo sentido vai a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional:

Art. 4º – O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:

VIII – atendimento ao educando, no ensino fundamental público, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde;

Finalmente, no que se refere à gratuidade para pessoas portadoras de deficiências ou doença crônica, o benefício está previsto na Constituição do Estado, artigo 14:

Art. 14 – É garantida, na forma da lei, a gratuidade dos serviços públicos estaduais de transporte coletivo, mediante passe especial, expedido à vista de comprovante de serviço de saúde oficial, a pessoa portadora:

I – de doença crônica, que exija tratamento continuado e cuja interrupção possa acarretar risco de vida;

II – de deficiência com reconhecida dificuldade de locomoção.

De se anotar que, quando os serviços em causa forem prestados por empresa pública, a Constituição do Estado não condiciona a gratuidade à lei posterior, senão vejamos:

Art. 338 – É dever do Estado assegurar às pessoas portadoras de qualquer deficiência a plena inserção na vida econômica e social e o total desenvolvimento de suas potencialidades, obedecendo aos seguintes princípios:

X – conceder gratuidade nos transportes coletivos de empresas públicas estaduais para as pessoas portadoras de deficiência, com reconhecida dificuldade de locomoção, e seu acompanhante;

Tem-se que os serviços públicos podem ser prestados de forma direta, ou seja, pelos próprios órgãos ou empresas públicas encarregadas dos mesmos, ou de forma indireta, de acordo com a Lei Federal que dispõe sobre o regime de concessões e permissões da prestação de serviços públicos previsto no artigo 175 da CF, que prevê as duas formas:

Art. 175 – Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Na forma indireta, a concessão de serviços públicos é feita mediante delegação (a título precário, se for permissão), feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, para pessoa jurídicas ou consórcio de empresas (Lei n. 8987, de 13 de fevereiro de 1995, artigo 2º, incisos II e IV).

Pois bem, ao tratar desta forma indireta, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, no parágrafo 2º do artigo 112 é taxativa:

“Não será objeto de deliberação proposta que vise conceder gratuidade em serviço público prestado na forma indireta, sem a correspondente indicação da fonte de custeio”.

Também a nível federal colhe-se nas disposições da Lei n. 9.074, de 7 de julho de 1995, que estabelece normas para a outorga e permissão de serviços públicos, nos termos da Lei n.8987/95, ao dispor sobre a concessão de qualquer benefício tarifário a uma classe ou coletividade de usuários dos serviços que:

“Art. 35 – A estipulação de novos benefícios tarifários pelo poder concedente, fica condicionada à previsão, em lei, da origem dos recursos ou da simultânea revisão da estrutura tarifária do concessionário ou permissionário, de forma a preservar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato”.

A Constituição do Estado do Rio de Janeiro, sobre o tema é mais estrita e taxativa: não se concede a gratuidade de serviço público, na forma indireta, sem a correspondente indicação da fonte de custeio.

Assim, no Estado, todas as normas infraconstitucionais que desatenderem este comando, com ele se confronta.

E não poderia ser de outra forma. Tais benefícios, que visam uma política de assistência social, consubstanciam dever do Estado e por tal, com previsão orçamentária, ou, se delegados a particulares, na forma indireta, devem ter a correspondente fonte de custeio.

E tais ações de assistência social, como dever do Estado e sociedade como um todo, não podem ser imputadas, como ônus, a apenas uma parte da sociedade – exatamente aquela que tem menor poder aquisitivo e aos trabalhadores, ou seja, os passageiros que pagam, fazendo-se o repasse das gratuidades para o valor das tarifas.

Neste sentido vale transcrever entendimento manifestado no julgamento do MS 1073/93 pelo 1º Grupo de Câmaras Cíveis deste Tribunal, pelo douto Relator Des. Carpena Amorim:

“Não se discute e nem isso cabe aqui apreciar a justeza da isenção e seu caráter social, mas há que se definir a quem arcar com esse ônus, pois tudo tem um custo operacional. Assim, o legislador da lei orgânica foi cauteloso ao remeter para a reserva legal o assunto, com a participação de ambos os poderes locais, Executivo e Legislativo, e fez precisa indicação da fonte de custeio. Logo, ou o Município subsidia os transportes coletivos de estudantes, que é o caso em foco, concedendo-lhes, por exemplo, vale transportes, distribuindo os custos entre todos os contribuintes locais de tributos (abro parênteses para afirmar, a meu juízo, consubstanciar esta a solução jurídica adequada ao sistema) ou, procede, dentro da sua competência, o correspectivo ajuste de passagens, de modo que os usuários que pagam pelo transporte também custeiem os que não pagam.”(a meu ver solução socialmente injusta e violadora dos princípios norteadores da política nacional de assistência social, preconizada na Carta Magna).

Enfatizo a perversidade de qualquer das soluções diversas da distribuição dos ônus por toda a coletividade, quer na pretensão de carrear para os contratados para a exploração dos serviços de transportes coletivos o ônus de tais custos, com a inevitável quebra do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos de concessão, que ostentam, por igual, os princípios do formalismo (só a lei pode alterar a estrutura das tarifas), a comutatividade e a boa fé; quer, pela solução de se carrear estes ônus para os consumidores pagantes de tais serviços.

A solução adequada deriva da aplicação correta dos princípios que regem a política de assistência social na estrutura constitucional da nação, qual seja, a assunção de tais obrigações como um dever do Estado e da coletividade como um todo.

Os precedentes jurisprudenciais coligidos não se afastam desta linha, a começar pelas decisões deste mesmo E. Órgão Especial.

Assim, na Representação por Inconstitucionalidade n° 01/91, tratando de transporte coletivo municipal e gratuidade concedida a colegiais e outros grupos, à unanimidade, o Colendo Órgão Especial acolheu a representação contra a Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis, com a seguinte ementa:

“Viola o disposto nos artigos 112, § 2º, e 342 da Constituição Estadual a gratuidade concedida pela Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis (art. 214, incisos II a VIII), sem a correspondente fonte de custeio.”

No acórdão, o E.REL. Des. Doreste Baptista enfatizou:

“Ocorre que, além de ter estabelecido forma de intervenção no domínio econômico (a gratuidade) sem obediência ao parâmetro da Constituição Federal (art. 173), a inovação introduzida nos itens II a VIII do artigo 214 da referida Lei Orgânica, não tendo discriminado a fonte de custeio relativa à gratuidade criada, violou, às escâncaras, o mandamento da Constituição Estadual, que exige a correspectiva indicação da fonte de custeio.”

Assinale-se que, entre outros beneficiários, estavam incluídos, no item II, “colegiais de 1º grau, devidamente documentados, em dias úteis e horários escolares”, e no item IV, “pessoas portadoras de deficiência, com reconhecida dificuldade de locomoção, deficientes mentais com documento oficial de identificação”.

Também na Representação por Inconstitucionalidade n. 18/90, apreciando a Lei Estadual n.1.607, de 08.01.90, que concedeu gratuidade nos transportes intermunicipais, entre outros, aos usuários com 60 anos ou mais e aos deficientes físicos, o Órgão Especial acolheu os pareceres das Procuradorias Gerais do Estado e da Justiça, reconhecendo a violação do § 2º do artigo 112 e também pela regra constitucional que prevê a competência ao Poder Legislativo, limitado às normas gerais para fixação de tarifas de serviços concedidos ou permitidos, não podendo fixar tarifas ou conceder isenções da mesma, à consideração que estes atos se inserem no âmbito do poder geral de administração conferido ao Poder Executivo.

De conseqüência vê-se que, tanto pelas regras de interpretação sistemática e teleológica, como pelos fundamentos jurídicos adotados e, finalmente, pelos precedentes deste Tribunal, nos julgamentos efetuados pelo Colendo Órgão Especial, padecem do vício de inconstitucionalidade frontal, quaisquer normas infraconstitucionais que desatendam ao comando de indicação de fonte de custeio, na concessão de gratuidades nos serviços de transporte coletivo concedidos ou permitido.

No caso em exame, o legislador estadual, sabedor da regra impositiva da necessidade de fonte de custeio, buscou contornar, de forma falsa, a exigência constitucional, estabelecendo no artigo 4º da lei inquinada (n°3399/95):

“Art. 4º – Constitui fonte de custeio para fazer frente a gratuidade à que se trata esta Lei (sic), 10% (dez por cento) do lucro obtido da comercialização do vale-transporte, na forma do art. 85 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Estadual do Estado do Rio de Janeiro.”

Ocorre que, a Lei Federal n° 7.418, de 16 de dezembro de 1985, veda expressamente qualquer margem de vantagens sobre o vale-transporte, como se lê:

“Art. 5º – A empresa operadora do sistema de transporte coletivo público fica obrigada a emitir e a comercializar o Vale-Transporte, ao preço da tarifa vigente, colocando-o à disposição dos empregadores em geral e assumindo os custos dessa obrigação sem repassá-los para a tarifa dos serviços (grifei).”

Por outro lado, é consabido que os aumentos tarifários são decorrentes menos de uma análise técnica adequada do que de tratativas políticas que não visam o verdadeiro interesse público.

De qualquer modo, ainda que houvesse um tratamento tarifário adequado ao problema das gratuidades, o que de fato não há, voltaríamos ao problema básico: o transporte urbano é chamado a atender,  prioritariamente , às populações de baixa renda, as quais, por isso mesmo, não podem ser oneradas com a obrigação de pagar mais, para subsidiar as gratuidades.

Toda a gratuidade (impropriedade de designação, pois sempre alguém terá que arcar com os custos do benefício) tem a natureza jurídica de medida assistencial, ou seja, é prestada a quem dela necessita, independente de contribuição, como objetivo de atingir o bem-estar e a justiça social, e como tal, é obrigação do Estado e da coletividade como um todo e não de qualquer dos segmentos deste processo, tais como, as empresas prestadoras dos serviços, pelo desequilíbrio evidente da regulação contratual, ou dos demais usuários, pela flagrante injustiça e inconstitucionalidade mesma, desta solução.

Por tais razões,  enfatizando que o Poder Judiciário não se coloca contra a política de benefícios sociais que visa a amparar os necessitados, quer sejam os idosos, quer os deficientes ou estudantes, mas, coloca, com a interpretação adequada das normas constitucionais referentes aos direitos sociais, a questão nos seus devidos termos, ou seja, faça-se política de assistência e não assistencialismo político, através de mecanismos legais que distribuam os ônus daquela, como deve ser, com o Estado e a sociedade como um todo.

Por isso, meu voto é no sentido do acolhimento integral da representação de inconstitucionalidade.