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Reserva de vagas no ensino público brasileiro

30 de junho de 2006

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Depois de muitas articulações na Câmara dos Deputados, anuncia-se agora a votação do projeto de Lei 73/99, que implementa o sistema de reserva de vagas no ensino público brasileiro.

O tema, em si polêmico, concentra o debate em torno de dois pontos ou argumentos principais: o primeiro, fundado na idéia de que a inovação proposta importa em privilégio incompatível com o princípio republicano da igualdade. E privilegiar, como dizem os seus opositores mais intolerantes, significa tratar com regalias excepcionais, pessoas já muitas vezes contempladas na área privada, ou através de benesses do próprio Poder Público, inserindo no ensino superior minorias beneficiárias de uma política injustificadamente protecionista.

Tal linha de argumentação, todavia, não resiste a maior exame, porquanto o Projeto de Lei 73/99 visa apenas transformar em política nacional os legítimos anseios da sociedade brasileira, no sentido de construir uma universidade mais democrática, por isso mesmo que acessível a maior número dos excluídos sociais, e capaz de resgatar jovens de classes, raças, ideologias, crenças religiosas e outros confinamentos econômicos e sociais, preparando-os para o mercado de trabalho e o  pleno exercício da cidadania.

Esse, aliás, é um dos mais nobres objetivos na Nova República, inaugurada, ou preconizada pela festejada Constituição de 1988. Sob tal inspiração, o Projeto pode se transformar em instrumento valioso no esforço de superação do problema do “não cidadão”, daquele que não participa política e democraticamente dos bens sociais, como lhes assegura a letra da Carta Magna. E isso ocorre exatamente por falta de oportunidade e de meios efetivos para se igualar com os demais. Por isso, é mister lembrar que cidadania não combina com desigualdades, república não combina com preconceito e democracia não combina com discriminação.

Em verdade, a política de reserva de vagas no ensino superior atende, neste particular, ao objetivo fundamental da própria República, da nação brasileira. Objetivo que consiste em promover a justiça social e alcançar uma sociedade solidária, facultando-se o acesso aos bens públicos, sobretudo para os que mais necessitam dessa almejada igualação. Ainda que, para tanto, o Estado tenha que redistribuir oportunidade, recursos, bens e direitos de modo desigual com a finalidade de possibilitar entre os cidadãos uma distribuição paritária e mais justa de seus benefícios sociais.

O segundo argumento está em se pré-questionar, desde logo, a constitucionalidade do Projeto.

Ora, isso seria o mesmo que afirmar que o controle preventivo de constitucionalidade exercido no processo político de elaboração das leis, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, é ilegítimo, ou inútil. Além do que, no sistema jurídico brasileiro, é o Supremo Tribunal Federal que decide sobre a constitucionalidade, ou não, das normas legais em vigor. Decisão esta que tem efeito vinculante, geral e obrigatório.  Enquanto essa manifestação do STF não ocorre, todas as normas gozam da presunção de constitucionalidade. Portanto, a aprovação do Projeto de Lei 73/99 manifestada nas Comissões Temáticas e na Comissão de Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados já o reveste de constitucionalidade prévia para refutar os posicionamentos mais conservadores, e subsidiar a decisão final do STF com a força  constitucional que se traduz também na necessidade de implementação de políticas de diversidade e diferenças no acesso ao ensino superior, como forma de se chegar mais próximo da igualdade constitucional.

Assim, o preceito constante do art.5o. da CF/88 não difere dos contidos nos incisos I, III e IV, do art.206 da mesma Carta Política. Pensar-se o inverso é prender-se a uma exegese cega, meramente formal, ou seja, a uma exegese de igualação dita estática, negativa, na contramão com a eficaz dinâmica, apontada pelo Constituinte de 1988 ao traçar os objetivos fundamentais da República Brasileira.

Neste cenário político-institucional, não seria efetivamente democrática a leitura sem profundidade e preconceituosa da Constituição, nem seria cidadão o leitor que não lhe buscasse o verdadeiro sentido, apregoando o discurso fácil dos bens posicionados, ou superiormente posicionados, quase sempre pelas mãos calejadas dos discriminados. É preciso enfatizar que a correção das desigualdades é possível, mas para isso é necessário que façamos o que está a nosso alcance, o que está previsto na Constituição Federal, pois somente construiremos uma sociedade livre, justa e solidária, quando conseguirmos uma igualdade escolar entre brancos e negros, resgatando essa parcela significativa dos que ainda se desesperam por vencer as dificuldades criadas pelo preconceito e pela incompreensão da própria sociedade brasileira.